Sita, a história que não será esquecida

26 de maio 2022 - 11:00

Documentário da cineasta Margarida Cardoso é um enorme contributo para que não caia no esquecimento a história de Sita Valles, a jovem médica que quis viver em pleno duas revoluções, a portuguesa e a angolana e acabou devorada por esta última. Por Luis Leiria.

porLuís Leiria

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Sita Valles. Imagem Midas Filmes.

Margarida Cardoso conheceu a história de Sita Valles há cerca de 11 anos, e apaixonou-se. A jovem angolana de origem goesa vivera duas revoluções na sua curta vida – a portuguesa, que pôs fim a 48 anos de ditadura, e a angolana, que conquistou a independência. Acabou devorada por esta última: aos 25 anos, em data incerta entre junho e agosto de 1977, foi fuzilada, em local também incerto, e sem que pudesse defender-se das acusações que contra ela pesavam. O governo angolano considerava-a uma das principais cabecilhas de uma tentativa fracassada de golpe de Estado, ocorrido em 27 de maio de 1977.

A cineasta portuguesa viu nesta terrível história material para um documentário e começou a trabalhar para isso. Mas logo percebeu as dificuldades que o projeto apresentava. Naquela altura, o nome de Sita Valles era maldito em Angola. O ex-presidente José Eduardo dos Santos, em todo o seu mandato de 38 anos, nunca o terá sequer pronunciado. Oficialmente, o governo não reconhecia que a jovem médica fora fuzilada. Também negava a existência dos pelotões de fuzilamento que assassinaram milhares e milhares de militantes na caça aos “fraccionistas”, uma orgia de sangue que durou dois anos e que se terá saldado em 30 mil mortos.

Por isso mesmo, a simples alusão ao 27 de maio de 1977 poderia criar muitas complicações a quem se atrevesse. Aquela data, e os factos que lhe sucederam, eram um tema completamente tabu. Como encontrar pessoas que aceitassem falar, em Angola, sobre Sita e o seu tempo?

Por outro lado, em Portugal, o PCP, partido de que Sita fora militante destacada antes de regressar a Angola, participava do tabu e não falava da ex-dirigente da juventude comunista.

O enigma do 27 de Maio

Além disso, havia ainda o enigma do próprio 27 de maio de 1977. O que realmente aconteceu nesse dia em Luanda? Pela versão oficial, Nito Alves e seus seguidores tentaram dar um golpe de Estado contra o governo do presidente Agostinho Neto, e fracassaram.
Já os sobreviventes do 27 de maio – militantes do MPLA que foram acusados de “fraccionismo” e, quase por milagre, escaparam à matança, muitos deles depois de penas de prisão de mais de dois anos e sem alguma vez terem sido acusados fosse do que fosse – negam a existência de golpe. Dizem que foram poucos os setores militares que entraram em ação na tomada da Cadeia de S. Paulo e da Rádio Nacional, e que os seus objetivos eram limitados: libertar os seus camaradas presos e fazer a convocatória de uma grande manifestação popular.

Para complicar ainda mais, as forças decisivas para a derrota dos nitistas foram as tropas cubanas estacionadas no país, e mais especificamente os tanques da Guarda Presidencial, um corpo militar que fora criado por sugestão de Raúl Castro em pessoa. Se os cubanos tivessem mantido a neutralidade, a história poderia ter sido outra.

Os nitistas por sua vez, afirmavam-se comunistas e levantavam a bandeira do modelo soviético, acusando o número dois do governo, Lúcio Lara, de ser antissoviético. A União Soviética, porém, não mexeu um dedo para defendê-los, embora seja certo que Moscovo demorou dias até tornar pública uma posição oficial sobre os acontecimentos. Demasiadas complicações para um documentário, não?

Mas Margarida Cardoso não desistiu. O tempo foi confirmando o acerto da decisão. Uma pequena mas densa bibliografia sobre o episódio maldito foi ganhando a luz do dia, pelo labor dos próprios sobreviventes, por jornalistas e historiadores. O tema “27 de Maio” começou a ser mencionado nos média. Foi publicada uma excelente biografia de Sita Valles, de autoria da jornalista Leonor Figueiredo (2010). Em Portugal e Angola surgiu uma associação que reúne sobreviventes. Os órfãos do 27 de Maio organizaram-se, entre eles o filho de Sita, João Van Dunem (o “Che”), hoje com 45 anos, para exigir do governo angolano o reconhecimento do falecimento dos seus entes queridos, a entrega dos seus restos mortais depois de feitos exames de ADN e as respetivas certidões de óbito, para que os seus familiares possam fazer finalmente o seu luto.

Esta sucessão de acontecimentos mostrava que já estavam reunidas as condições para o documentário. E Margarida Cardoso avançou. O resultado, o filme “Sita – A vida e o tempo de Sita Valles”, pode ser visto no cinema Ideal, em Lisboa, passa na RTP 2, em duas partes, nos dias 26 e 27 de maio de 2022, está disponível na plataforma FilmIn e nos videoclubes das operadoras, e ainda está à venda em formato DVD.

O documentário é sobre Sita e o seu tempo

Margarida Cardoso fez questão de esclarecer que o documentário não é sobre o 27 de Maio de 1977, embora este episódio, inevitavelmente, tenha muita importância, mas sobre Sita Valles e o seu  tempo. Daí o título extenso.

A opção pelo formato de entrevistas era praticamente inevitável, correndo a realizadora o risco de fazer um filme de “Talking Heads” (cabeças falantes), uma fórmula que de tanto ser usada já cansa. No entanto, a realizadora fez uma apurada pesquisa de arquivo e conseguiu muitas imagens e pequenos trechos de filmes e cenas de rua, além dos filmes da família Valles a registar passeios, férias, cenas de festas. Além disso, usou um recurso interessante: imagens sombrias, captadas de um carro que deambula pelas ruas, de noite, acompanham a leitura de comunicados de organizações de direitos humanos acerca de Sita Valles e do seu desaparecimento.

O filme começa com imagens de impacto captadas no 27 de Maio, uma grande massa humana em correria, com tiros de armas pesadas em fundo, soldados disputando entre si, um desarmando outro, um blindado a circular nas ruas de Luanda, um comunicado emitido na Rádio Nacional, do dia 28 de maio de 1977, afirmando que o que se passou no dia anterior foi grave, tratando-se de uma “tentativa reacionária” de mudar o poder em Angola. Logo a cena passa para a leitura de uma carta da mãe de Sita, dirigida a Maria Eugénia Neto, esposa do presidente Agostinho Neto, alegando a sua condição de mãe, garantindo que não entende nada de política mas pedindo clemência para a filha, porque “ela merece viver” (a carta nunca teve resposta).

Luís Leiria
Luís Leiria

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Segue-se Edgar Valles, refletindo sobre a terrível situação dos familiares de alguém desaparecido, sendo o seu sofrimento prolongado indefinidamente por não poderem fazer o seu luto. Será Edgar quem nos acompanhará por todo o documentário: as suas falas são o fio que tece todos os depoimentos.

Edgar Valles é o único sobrevivente dos três irmãos Valles: Edgar, Sita e Ademar; este último, um engenheiro sem intervenção política, responsável pela Indústria Pesada do Ministério da Indústria, foi assassinado depois de ter estado preso durante dez meses. O seu crime? Justamente ser irmão da Sita e do Edgar.

Três fases da vida de Sita

Depois desta introdução, o documentário passa a ser cronológico, dividindo-se em três partes:

– A Sita em Angola, nascida em Cabinda, mas de uma família goesa, de classe média, bem aceite entre os colonos brancos.

– A Sita que ganha consciência política, muda-se para Portugal e aí abraça o ativismo contra a ditadura salazarista/marcelista e milita na juventude do PCP, destacando-se de imediato.

– A Sita que, em pleno “Verão Quente” do PREC português, decide regressar a Angola, para ajudar à revolução no seu país de origem. Lá, atravessa o turbilhão angolano até ser presa junto com o marido, José Van-Dunem, acusados ambos de serem os “cabecilhas” do alegado golpe de Estado para derrubar Agostinho Neto, e fuzilada em dia incerto, entre junho e agosto daquele ano de 1977.

Montagem de mestre

No total, o documentário tem duas horas e quarenta de duração, mas não se sente o tempo a passar. As vozes dos entrevistados são muito bem encadeadas, tecendo a história de frase em frase, de depoimento em depoimento. Como era inevitável, a maioria dos entrevistados vive em Portugal e fazia parte da comunidade de filhos de colonos portugueses brancos que nasceram em Angola e abraçaram a nacionalidade angolana. Presos na sequência do 27 de Maio, acusados de “nitistas”, torturados de todas as formas, acabaram por ser libertados ao fim de mais de dois anos de detenção sem que contra eles fosse formulada qualquer acusação concreta. Não deixa, aliás, de ser curioso que houvesse tantos “nitistas” brancos: eles são uma negação viva da acusação mais repetida pelos partidários de Agostinho Neto contra Nito Alves: a de que ele seria racista.

Também quase não se nota que há depoimentos do mesmo entrevistado gravados duas vezes, sendo que entre uma e outra gravação passaram-se dez anos. Na verdade, dez anos depois, Margarida Cardoso fez uma segunda rodada de entrevistas e nalguns casos aproveitou partes de ambas.

Uma confusa história do 27 de Maio

Se o leitor não tem algumas noções do que aconteceu no 27 de Maio de 1977, é provável que fique um pouco perdido quando este tema começar a ser discutido. Se for esse o seu caso, não se impressione: a culpa não é sua, e também não é de Margarida Cardoso. É que até hoje não há consenso sobre o que foi o 27 de Maio. O governo angolano e o MPLA não têm dúvidas: foi um sanguinário golpe de Estado que fracassou porque o povo não apoiou os “fraccionistas nitistas”. Foi sanguinário porque morreram sete “comandantes” assassinados por Nito e seus partidários.

Opondo-se a eles, os acusados respondem que não houve qualquer golpe de Estado mas sim uma resposta à armadilha orquestrada pelo número dois do regime, Lúcio Lara, que na noite da véspera, em nome do Bureau Político, acusou Nito Alves e José Van Dunem de serem os cabecilhas de um golpe de Estado já em curso, o que levou os “nitistas” a reagirem e convocarem uma manifestação popular. Os mesmos tendem a desvalorizar as ações militares pró-Nito que também marcaram aquela jornada. E recordam que nada, mesmo nada justifica a matança que se seguiu a este episódio, com milhares e milhares de militantes do MPLA, muitos com responsabilidades na Juventude do MPLA, na organização feminina do partido, na central sindical UNTA, nos governos provinciais a serem detidos e sumariamente executados em pelotões de fuzilamento.

Agostinho Neto disse no dia 26 de Maio: “Nós não vamos perder tempo com julgamentos!” A carnificina terá chegado a 30 mil vítimas mortais.

Finalmente, há os que afirmam que houve uma combinação de ação militar e insurreição popular que fracassou. As principais ações militares foram o assalto à cadeia de S. Paulo, para libertar os “nitistas” que entretanto tinham sido presos, e envolveu blindados do batalhão feminino da 9ª Brigada, o mais importante destacamento militar da capital. Houve quem dissesse que Nito e Van Dunem estariam entre os presos, mas tudo indica que não.

Militares fiéis a Nito tomaram também pela força a Rádio Nacional, que passou a emitir em consonância com os “nitistas”, fazendo apelos à manifestação do povo, anunciando “um novo processo revolucionário marxista-leninista” e o fim do “conluio dos sociais-democratas e dos maoístas” do governo. A rádio foi reconquistada para Agostinho Neto pelos cubanos, que entraram em ação depois de o presidente angolano ter pedido ajuda diretamente a Fidel Castro. Os tanques da Guarda Presidencial, comandada pelo coronel Rafael Moracén Limonta, não tinham quem se lhes pudesse opor: nem a 9ª brigada, cujos blindados eram muito inferiores.

Apoios internacionais

Mais confusa a história do 27 de Maio fica se atentarmos aos apoios internacionais às fações em luta. Quem decidiu o desfecho do 27 de Maio foram as tropas cubanas estacionadas na capital. Dispersaram a tiro a  mobilização em frente ao palácio Presidencial (até hoje não se consegue saber de fonte fidedigna se a matança começou aí ou não, isto é, se os cubanos dispararam para o alto ou para matar), em seguida entraram em combate com os militares que faziam a guarda à Rádio Nacional e retomaram o controlo da rádio para os fiéis a Agostinho Neto. Terão também negociado e obtido a rendição da 9ª Brigada. À tarde terão avançado pelo musseque Sambizanga, onde Nito tinha enorme apoio. Estas últimas informações nunca puderam ser confirmadas, embora haja menção a elas em telegramas de várias embaixadas, entre elas a portuguesa.

Não há dúvidas de que Agostinho Neto contou com o apoio da liderança cubana. Fidel já tinha dito, durante a sua visita a Angola em 27 de Março do mesmo ano, que “O imperialismo muitas vezes conspira para liquidar os dirigentes revolucionários porque sabe que o povo precisa de chefes, precisa de líderes no combate revolucionário. (…) Na fase em vive o povo de Angola, os dirigentes têm um papel fundamental e é por isso que digo que é preciso apoiar o companheiro Neto, é preciso defendê-lo e protegê-lo.”

E os “nitistas” eram apoiados por quem? Nito Alves e José Van Dunem, bem como Sita Valles,  não escondiam ser comunistas soviéticos, que seguiam as orientações de Moscovo. E acusavam a “ala social-democrata” do MPLA de ser antissoviética. Porém, no dia 27 de Maio, os russos ficaram quietos e certamente não apoiaram os “nitistas”. Por documentos cubanos, sabemos que um funcionário da embaixada soviética terá dado guarida a um “nitista”. E é só.

Finalmente, os primeiros telegramas da agência de notícias Tanjung, da Jugoslávia, mostraram simpatia pelos revoltosos, a quem chamaram de “militantes consistentes do MPLA”, que libertaram da cadeia “combatentes da Revolução do Povo”. Em resumo, os “nitistas esperavam contar com o apoio da União Soviética mas não tiveram; e a simpatia da agência de notícias oficial da Jugoslávia de pouco lhes valeu quando os cubanos ligaram os motores dos seus tanques. E sufocaram as ações militares e a tentativa de insurreição popular.

Insuficiências

No documentário, Margarida Cardoso procura relatar da melhor forma os acontecimentos, mas acaba recolhendo mais depoimentos a dizer o que o 27 de Maio não foi, do que a afirmar o que realmente foi. E aqui ocorre a primeira insuficiência do filme: não há referência a uma das principais ações militares dos “nitistas”, o assalto à cadeia de S. Paulo.

A afirmação de que foram os cubanos a definir o vencedor aparece sim, num depoimento, mas pouco mais se fala disso. Também nada se diz sobre a atitude da embaixada soviética.
Dá impressão que Margarida Cardoso quis fugir a este labirinto de relações internacionais cuja exploração nos pode levar ao beco, por enquanto sem saída, dos arquivos históricos que permanecem fechados.

Outra falta que se sente é a quase ausência de José Van Dunem, com quem Sita se casou, e do filho “Che”, hoje com 45 anos, que foi o primeiro signatário de uma petição dirigida ao governo de Angola pelos órfãos do 27 de Maio.

Finalmente, o final do documentário mostra o discurso do atual presidente João Lourenço a pedir perdão, em nome do Estado angolano, e nomeando algumas das principais vítimas do 27 de Maio, citando explicitamente Sita Valles. Na minha opinião, não basta inserir uma pintura mural onde se lê “A luta continua” para desfazer a falsa impressão que este final dá: que o governo angolano está realmente empenhado num processo de reconciliação que ponha um fim a anos de tabu e de sofrimento dos familiares das vítimas. Bastava depois recolher o depoimento do próprio Edgar  Valles, por exemplo, que mostraria o que tem de encenação a iniciativa de João Lourenço.

Seja como for, o documentário é extremamente bem feito e fará muito pela causa daqueles que buscam a reposição da verdade, dos sobreviventes e órfãos do 27 de Maio. A própria Margarida Cardoso disse na pré-estreia do filme que apenas pretende levantar a discussão e que espera ter contribuído para que outros documentários sobre o 27 de Maio sejam feitos.

A julgar pela pré-estreia, que abarrotou a sala maior do cinema São Jorge, “Sita – A vida e o tempo de Sita Valles” está a despertar a atenção em Portugal. Com uma distribuição muito ampla, só ficará sem ver o filme quem realmente o quiser evitar. Em Angola, onde não há estreia prevista no cinema, o DVD já estará a circular. Ainda bem.

Luís Leiria
Sobre o/a autor(a)

Luís Leiria

Jornalista do Esquerda.net
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