Angola: “Há um combate que vencemos”, dizem sobreviventes do 27 de Maio

27 de maio 2021 - 23:26

João Lourenço reconhece que atuação do Estado, ao executar “um número indeterminado de cidadãos angolanos” foi “desproporcional e levada ao extremo”, e por isso pede desculpas públicas. Por Luis Leiria.

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Foto de Governo da República de Angola

Numa reviravolta surpreendente, o presidente de Angola, João Lourenço, pediu, em nome do Estado angolano, desculpas públicas e o perdão “pelo grande mal que foram as execuções sumárias” ocorridas após os acontecimentos do dia 27 de maio de 1977.

Naquele dia, na sequência de ações militares e de uma tentativa de manifestação popular diante do palácio presidencial, tropas governamentais, apoiadas por militares cubanos, desencadearam um massacre que nos dias e meses seguintes terá custado a vida a mais de 30 mil pessoas.

No seu discurso à nação angolana, nesta quarta-feira, 26 de Maio, João Lourenço admitiu pela primeira vez que “a reação das Autoridades de então foi desproporcional e levada ao extremo, tendo sido realizadas execuções sumárias de um número indeterminado de cidadãos angolanos, muitos deles inocentes.”

O presidente angolano insistiu que “este pedido público de desculpas e de perdão não se resume a simples palavras, ele reflete o nosso sincero arrependimento e vontade de pôr fim à angústia que ao longo destes anos as famílias carregam consigo, por falta de informação sobre o destino dado aos seus entes queridos.”

João Lourenço anunciou ainda que nos próximos dias, as autoridades angolanas darão início ao processo de localização dos restos mortais (ossadas) de Alves Bernardo Baptista (Nito Alves), Jacob João Caetano (Monstro Imortal), Ernesto Eduardo Gomes da Silva (Bakalof), Sita María Dias Valles (Sita Valles), José Jacinto da Silva Vieira Dias Van Dunem (Zé Van Dunem) (...), vítimas do 27 de Maio de 1977, para a exumação e entrega aos familiares.”

É a primeira vez que um presidente de Angola, após Agostinho Neto, pronuncia os nomes “malditos” de Nito Alves, Sita Valles ou José Van Dunem, os principais dirigentes de uma corrente de opinião interna ao MPLA que os partidários do então presidente batizaram de “fraccionistas”.

Finalmente, João Lourenço anunciou para os próximos dias “as primeiras escavações” para a “materialização do que acaba de ser anunciado”.

Reações de órfãos e sobreviventes

José Reis
José Reis.

“Há um combate que vencemos”, reagiu ao Esquerda.net José Reis, um dos sobreviventes do 27 de Maio. Mesmo criticando passagens do discurso presidencial, nomeadamente a parte em que ele responsabiliza os partidários de Nito Alves pelo assassinato de nove militares e dirigentes do MPLA, em circunstâncias que até hoje não foram esclarecidas, José Reis afirma: “há uma coisa que ficou: ele pediu perdão”.

Para João Van Dunem, o “Che”, filho de Sita Valles e de José Van Dunem, o mais importante a reter do discurso de João Lourenço “é a promessa de entrega dos restos mortais dos nossos pais”. Para o professor da Universidade Católica de Luanda, trata-se agora de “aguardar serenamente pelo cumprimento dessa promessa, que vai ao encontro das nossas preocupações enquanto filhos, ao longo dos últimos 44 anos”.

José Van Dunem "Che"
João Van Dunem

Outra reivindicação dos sobreviventes e órfãos do 27 de Maio que o presidente angolano aceitou, foi a de serem entregues às famílias as certidões de óbito das vítimas. José Reis adverte que as certidões não podem ser entregues “avulsas”. “Têm de ser acompanhadas dos restos mortais. É preciso agora “um enorme trabalho forense para pesquisar, para saber se de facto são aquelas pessoas.”

“Receber os restos mortais dos nossos pais irá permitir às nossas famílias prestar uma derradeira homenagem, honrando a sua luta e a sua memória”, explica João Van Dunem, que teve pai e mãe executados após o 27 de Maio, quando não tinha ainda um ano de vida.

Numa nota de humor, José Reis disse já ter recebido inúmeros telefonemas de amigos que lhe diziam: “Tu eras o ‘maluqinho’ que andavas sempre a falar do 27 de Maio. Mas afinal, tinhas razão”.

Carta Aberta

No início da semana, a Plataforma 27 de Maio, que junta a Associação 27 de Maio, a Associação M-27 e o Grupo de Sobreviventes da repressão de 1977, anunciou o rompimento com a CIVICOP (Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vitimas dos Conflitos Políticos), presidida pelo ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, por considerarem uma “encenação teatral” as atividade programadas para este dia 27 de Maio, que incluíram uma romagem ao Cemitério de Santa Ana, a ida até à estátua de Agostinho Neto, na Praça da Independência, para depositar uma coroa de flores e entregar certificados de óbito a órfãos.

Em carta aberta dirigida ao presidente da República no dia 25, a Associação 27 de Maio e o Grupo de Sobreviventes reafirmaram a necessidade de “um pedido de perdão de V. Exa, enquanto mais alto magistrado da Nação e Presidente do MPLA” e recordaram que o Papa Francisco fez esse pedido em relação aos massacres do Ruanda, unicamente pelo facto de a Igreja Católica ter demonstrado passividade. “No caso de Angola, mais se justificava, pois houve autoria dos responsáveis políticos, com responsabilidades diretas de Agostinho Neto, que deu luz verde aos massacres, com a incendiária frase ‘Não vamos perder tempo com julgamentos’”.

O discurso inesperado de João Lourenço parece uma resposta ao que era pedido na Carta Aberta.

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