Itália

Seguramente não! Milhares nas ruas contra criminalização do protesto social

15 de dezembro 2024 - 11:52

Terão sido 100.000 as pessoas que nas ruas de Roma responderam ao apelo de mais de 200 movimentos sociais e sindicatos. Foi a maior manifestação contra Meloni desde que governa organizada para responder a “um ataque sem precedentes contra os direitos fundamentais e a democracia”.

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Manifestação contra lei de segurança em Itália
Manifestação contra lei de segurança em Itália. Foto MilanoinMovimento/X.

É um decreto lei “inclusivo”, brincava um dos manifestantes citado pelo Il Fatto Quotidiano, porque “irrita toda a gente: os sindicalistas e os cultivadores de cânhamo, o movimento de habitação e os ambientalistas”. E assim não podia deixar de ser porque se trata, para o conjunto de mais de 200 movimentos sociais e sindicatos que convocou uma manifestação para este sábado em Roma, de uma criminalização do protesto pacífico. O que vai desde bloquear uma estrada com o seu corpo até vender um cartão de telemóvel a um migrante indocumentado.

A resposta ao apelo “seguramente não!” foi assim significativa com perto de 100.000 pessoas, de acordo com a organização, nas ruas contra o decreto lei sobre segurança aprovado na Câmara de deputados em setembro e atualmente a ser examinado em comissões no Senado. Espera-se a aprovação até ao fim do ano.

Num país em que vários dos principais meios de comunicação social insistem em classificar o Governo de Meloni, liderado pela extrema-direita, como sendo apenas uma coligação de direita ou até de “centro-direita”, muitos dos manifestantes não hesitam em utilizar a palavra fascista. Perto da cabeça do cortejo, uma pancarta não ligada à organização fazia sucesso, mostrando uma fotomontagem com Giorgia Meloni a beijar Benito Mussolini. Vários dos manifestantes, entrevistados pela RFI, diziam isso. A professora reformada Franca criticava a criminalização do protesto, dirigindo-se especificamente à medida sobre a venda de cartões SIM a migrantes sem título de residência que dizer ser “fascista” e “uma violação dos direitos humanos”. Um escritor romano, também presente no desfile, falava numa “viragem autoritária e de certa maneira uma viragem fascista adaptada ao terceiro milénio” de um Governo que “não para de reduzir os nossos direitos, de reduzir a democracia”.

Cartaz de Meloni com Mussolini
Cartaz de Meloni com Mussolini. Foto de MilanoinMovimento.

A organização da manifestação não usa a mesma palavra mas partilha a indignação. Dizem tratar-se de “um ataque sem precedentes contra os direitos fundamentais e a democracia” que “criminaliza a dissidência, reprime os conflitos sociais e atinge trabalhadores, estudantes, migrantes e quem luta pela justiça social e ambiental”. Mostram-se ainda dispostos a “defender a democracia contra quem quer transformar a Itália num país autoritário” e consideram que “não há segurança neste projeto de lei, apenas medo da dissidência e das praças públicas”.

“Somos cem mil!”

O desfile de várias horas entre a Piazzale del Verano e a Piazza del Popolo esteve repleto. E o Il Manifesto chamou-lhe “um dia que muitos esperavam há demasiados anos” com uma convocatória “a partir de baixo, dos movimentos” a juntar uma multidão plural e a arrastar todos os partidos da oposição.

A informação da estimativa de que havia 100 mil pessoas nas ruas correu de boca e boca e passou-se a gritar “Somos cem mil!”. “Esta é a primeira grande manifestação de oposição ao governo de Meloni”, lançava o ativista social Christopher Ceresi a partir de um camião da organização, acrescentando que “este projeto de lei vem impedir-nos de transformar a sociedade com a luta.”

O secretário-geral da CGIL, Luigi Giove, dizia por sua vez que “o projeto de lei de segurança afeta a democracia, deve ser retirado imediatamente”.

E o mesmo consideraram os vários partidos políticos presentes, de Giuseppe Conte do Movimento Cinco Estrelas, a muitas das figuras mais conhecidas do Partido Democrata, com a sua líder Elly Schlein a ter de emitir uma nota a explicar que não tinha podido ir, a Nicola Fratoianni, secretário-geral da Sinistra Italiana, aos dirigentes da Refundação Comunista entre outros.

De entre estes, Fratoianni é dos poucos chamado a falar para os manifestantes de megafone na mão. Exige então que se olhe para “os problemas reais do país”: “se querem segurança, deem casa às famílias menos abastadas, garantam um salário digno aos trabalhadores e eliminem a precariedade, lidem com a cultura do patriarcado, deixem de negar o direito à saúde e à escola pública”.

Conte, da manifestação antifascista ao festival neofascista

Mais discreta era a delegação do Movimento Cinco Estrelas com um “grupo modesto” que não levava “nenhum grande nome entre eles, exceto o vice-líder do grupo no Montecitorio Vittoria Baldino, que se junta a meio do caminho”. Depois entrou o seu líder, Conte, especificamente para falar para a imprensa. A esta, assegura que “estamos nas ruas com todo o M5S”, apesar das evidências que mostravam o contrário.

O líder do movimento populista, que afastou a direção anterior e o parecia estar a ligar à esquerda com uma aproximação aos sociais-liberais enfrentou, contudo, assobios e vaias, com alguns a lembrar que fez parte do Governo com a Liga de Salvini, de extrema-direita.

Não esteve muito tempo no cortejo. Tinha de compromisso marcado do outro lado do espetro político, convidado para estar no conhecido festival da juventude dos “Irmãos de Itália” de Meloni, o Atreju, que se tornou um polo aglutinador da extrema-direita.

Nele participavam como sempre várias estrelas daquela área política. Destaque este ano para o presidente argentino, Milei, que partilha a mesma vontade de reprimir os protestos sociais e a quem a primeira-ministra italiana atribuiu a cidadania do seu país. Uma decisão que contou com as críticas dos movimentos que lembram que o Governo faz tudo para evitar conceder nacionalidade às crianças nascidas em Itália filhas de pais estrangeiros.

Numa entrevista pública numa sala cheia do festival da extrema-direita, o líder do M5S não parecia destoar e arranca palmas entusiasmadas ao proclamar: “se a esquerda quer lutar contra este governo apenas em nome do antifascismo, eu não estou aí! Se isso significa acolher todos indiscriminadamente, não sou a favor. Se isso significa preocupar-me apenas com aqueles que vivem em zonas de tráfego restrito, não estou nisso.”

O teor das declarações leva o jornalista que o entrevistava, o diretor do jornal Libero, a ironizar: “presidente, está prestes a receber o seu cartão dos Irmãos de Itália?”

Conte corrige o tiro para esclarecer “somos progressistas independentes, temos uma visão diferente da direita e trabalhamos por uma alternativa governativa baseada no combate à injustiça, à corrupção, pelos valores da honra e da disciplina”. Mas não deixa de acrescentar:”não somos a favor de uma aliança orgânica com o Partido Democrata porque distorceria as nossas batalhas”.

Finalmente, algumas críticas às “piruetas e reviravoltas de Meloni” para tentar salvar a honra, afirmando que “a Itália está paralisada, não há medidas de crescimento, mas apenas de armamento, os únicos estaleiros de obras abertos são graças aos fundos do PRR”, que Meloni “cancelou a Nova Rota da Seda e agora vai para a China de chapéu na mão” e questionando porque esta precisa de reprimir a dissidência para governar”, algumas das quais pautadas por assobios da audiência que esperava Milei mas que não estaria muito desagrada por esta intervenção.