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Sahara Ocidental: caminho árduo até à liberdade

O poeta, jornalista e ativista saharaui Malainin Lakhal descreve as dificuldades vividas pelo seu povo a partir dos testemunhos de três pessoas diferentes.
Manifestação a favor do povo saharaui em Bilbo em 2009.
Manifestação a favor do povo saharaui em Bilbo em 2009. Foto de Zarateman. Wikicommons.

A história do Sahara Ocidental, a última colónia em África, é a história da violação flagrante do direito internacional e da persistência da ocupação militar durante quatro décadas por parte de um país africano sobre outra nação africana. Mas também é a história da violação sistemática dos direitos humanos, de milhares de histórias de famílias separadas pela força, de vidas e sonhos roubados, mas com um sabor de resistência e a recusa do povo deste território de abdicar.

Desde os primeiros dias da invasão do território por Marrocos em outubro de 1975, milhares da saharauis fugiram dos bombardeamentos e assassinatos massivos, procurando refúgio na vinha Argélia sob a proteção e organização do movimento de libertação saharaui, Frente Polisario. E ainda aí continuam, vivendo no segundo campo de refugiados políticos mais antigo do mundo a seguir aos dos palestinianos. Para piorar ainda mais a situação, o exército marroquino construiu um muro militar de 2.700 km de distância semeado de milhões de minas terrestres e de milhares de soldados, intensificando assim a separação das famílias.

A mulher saharaui foi sempre um pilar forte da cultura nómada e beduína saharaui, não apenas a nível social, mas também a nível da participação política na vida coletiva. Inclusivamente era consultada em situações de guerra porque na cultura tradicional saharaui, todos devem participar na tomada de decisiões, até às crianças, as quais são motivadas desde muito tenra idade a construir uma personalidade forte, necessária para enfrentar as dificuldades do deserto. Desde que começou a invasão, as mulheres e os jovens saharauis foram os principais objetivos da opressão marroquina, mas também foram os primeiros a levantar e a resistir com o rigor da juventude, o apego à identidade e a recusa da dominação e da agressão estrangeiras.

Mulheres saharauis: o mesmo sofrimento, o mesmo destino

Elghalia Djimi e Mbarka Mehdi, duas mulheres de meia idade refletem a história deste conflito mal coberto nos principais meios de comunicação. Mbarka fugiu da invasão com a sua família quando era menina, para viver nos campos de refugiados. É jornalista na televisão saharaui. Perdeu de vista muitos membros da sua família que ficaram na cidade ocupada de Smara desde 1975 e a partir dí não pôde voltar a ver a sua terra natal.

Do outro lado do muro militar, Elghalia vive na capital ocupada do Sáhara Ocidental, El Aaiún. Ainda era jovem quando se tornou vítima de desaparecimento forçado numa prisão secreta marroquina durante quatro anos, de 1987 a 1991. Depois da sua libertação, começou uma longa e valente luta contra as violações dos direitos humanos no seu país, convertendo-se em vice-presidente de uma associação saharaui de direitos humanos que trabalha sob a dominação colonial marroquina.

“Quando vi as vergonhosas fotos de prisioneiros iraquianos em Abou Ghraib em 2004, não me surpreendi realmente porque vivi humilhações semelhantes com muitos dos meus compatriotas saharauis, homens e mulheres, num campo de detenção secreto em El Aaiún, a capital do Sáhara Ocidental, em 1987”, disse El Ghalia Djimi, condenando o que descreve como o uso sistemático da tortura e da opressão por parte das autoridades marroquinas no seu território, desde a sua ocupação até hoje.

“Nada mudou”, diz Elghalia. “A mesma atitude rançosa de negação de todos os direitos, a mesma arrogância rançosa e crueldade que se continua a exercer contra qualquer saharaui que se atreva a protestar contra a ocupação marroquina. E isto acontece todos os dias, mas ninguém fala disso, exceto poucas organizações, observadores internacionais ou jornalistas que visitam o território nesse momento. Ainda assim, poucas vezes se ouvem se é que os ouvem alguma vez!”, acrescenta.

De facto, todas as organizações internacionais relevantes como a Human Rights Watch, a Amnistia Internacional, a Fundação Robert F. Kennedy, a Front Line Defenders e muitas outras, informaram-nos sobre estas violações nos últimas 20 anos, frequentemente com evidências e provas muito contundentes dos abusos cometidos por funcionários marroquinos. Sem dúvida, as Nações Unidas não protegem o povo do Sáhara Ocidental que ainda está na lista da Quarta Comissão de Descolonização da Assembleia Geral.

“Conheço muitos compatriotas que foram assassinados sob tortura ou devido a umas condições de detenção inumanos apenas porque eram saharauis”, acrescenta Elghalia. “A minha própria avó, de 60 anos, faleceu num campo de detenção secreto marroquino em meados da a década de 1980 e ainda não sei como morreu. Quem é o responsável por isso? E, primeiramente, porque foi detida? A única coisa que sei é que o Conselho Consultivo Marroquino para os Direitos Humanos, depois de anos a negar a relação do Estado com o seu desaparecimento, de repente, em 2010, colocou o seu nome numa lista de mais de 350 saharauis que morreram em prisões secretas entre 1975 e 1993. Mas não houve nenhuma reação internacional depois deste reconhecimento de responsabilidade. Não parece importa a ninguém”, disse com lágrimas escorrendo na sua face que limpou imediatamente para não dar aspeto de fraqueza.

Outra cara da moeda

A história de Mbarka Mehdi é diferente. Tinha apenas seis anos quando teve que fugir, em 1975, com alguns membros da sua família, dos ataques militares marroquinos contra a cidade agora ocupada de Smara, para viver desde então nos campos de refugiados do sudoeste da Argélia.

Os saharauis construiram os únicos campos de refugiados do mundo completamente organizados e administrados pelos próprios refugiados. Constituiram o seu governo no exílio, a la República Saharaui, em 1976, para auto-organizar-se em pequenas cidades ou acampamentos de refugiados que têm o nome das suas cidades ocupadas que tiveram de abandonar.

Construiram escolas, hospitais, ministérios e administrações para proporcionar o básico a cerca de 200.000 refugiados. E desta forma deram um exemplo único de determinação e vontade de resistir à ocupação estrangeira, não apenas a nível político, mas a todos os níveis que preservam a sua identidade e cultura como una autêntica nação africana que luta pela liberdade, recusando a dominação cultural e política ou a rendição a um Marrocos fortemente apoiado pelo Ocidente.

“Eu era jovem, mas podia ver e sentir um terror que ainda vive no mais profundo de mim. Em particular, tinha recordações confusas da atmosfera de pânico, gritos e longas noites de medo que não podia entender e principalmente recordo como tivemos de fugir da nossa casa, deixando tudo para trás, levando apenas a roupa que tínhamos vestida e algumas outras coisas essenciais. E, sobretudo, ainda recordo os meus primos, os quais perdi de vista desde então, os meus amigos e vizinhos de infância, que morreram durante a invasão ou anos depois nas prisões”, disse Mbarka com una voz suave mas firme.

Descreve os primeiros dias nos campos de refugiados com um brilho de nostalgia nos olhos, admitindo que foram dias muito difíceis porque houve muitos sofrimentos que acompanharam o êxodo forçado dos refugiados mas também dias de um alto espírito de resistência, confraternização e humanidade.

“Era novembro e dezembro de 1975. O deserto era cruel e frio e realmente não tínhamos nada para comer, beber ou vestir. Sem dúvida, recordo principalmente aqueles orgulhosos e generosos homens e mulheres jovens que se ofereceram como voluntários para organizar o nosso pobre campo, distribuindo a escassa comida entre as famílias, dando prioridade aos anciãos e crianças e, ao mesmo tempo, protegendo-nos dos ataques militares marroquinos. Eram os heróis e heroínas do movimento de libertação saharaui POLISARIO, tornaram-se na minha fonte de inspiração. Creio que a sua atividade explica o facto de que a minha geração se tenha tornado exemplar em tudo, nos estudos, na produtividade, no voluntariado, na determinação de continuar a luta, porque vimos de tudo: a injustiça, a crueldade do invasor, a morte e a negação dos nossos direitos mais básicos mas também a vontade de levantar-nos e lutar”, enfatiza Mbarka.

El Ghalia tem outro enfoque da história sob ocupação para contar. Não podia esquecer como foi torturada e “tratada como um animal” na prisão secreta marroquina de PC-CM na capital do Sáhara Ocidental.

“Imaginas homens e mulheres jovens, vivendo durante quatro longos anos com a mesma roupa e mesma muda interior, com os olhos vendados e em celas pequenas e sujas que tinham sido utilizadas durante a época colonial espanhola como pocilga para criar porcos, sem nenhum tipo de alimentação adequada, medicamentos ou espaço para as necessidades de higiene? Fomos quase despojados da nossa humanidade, se não fora pela raiva de viver e sobreviver e a vontade de resistir às suas tentativas de quebrar a nossa dignidade.

Uma comunidade internacional desinteressada

O pior é que a comunidade internacional é indolente ante estas quatro décadas de sofrimento humano. Em abril de 2013, França e Espanha uniram as suas forças no Conselho de Segurança da ONU para opor-se a um projeto de resolução proposto pelos EUA, no qual Washington, pela primeira vez, apoiava a exigência internacional de incluir supervisão permanente, independente e exaustiva dos direitos humanos no mandato da missão da ONU na Sáhara Ocidental. França, que joga o papel de defensora da democracia e dos direitos humanos e muitos outros conflitos e crises, como na Líbia ou no Mali, sempre foi manifesta e ferozmente hostil a estes mesmos princípios no que diz respeito aos direitos humanos no Sáhara Ocidental.

O Enviado Pessoal do Secretário Geral das Nações Unidas para o Sáhara Ocidental, embaixador Christopher Ross, estava alarmado com a estagnação persistente da situação e tentou, nos seus dois últimos relatórios ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, chamar a atenção dos Estados membros sobre o perigo de “manter o status quo” nesta última colónia em África, especialmente depois da explosão de conflitos, distúrbios e terrorismo em países do Sahel, como o Mali, mas também na Líbia, e a possível influência que esta situação pode ter no Sáhara Ocidental.

Com razão, disse que foi um erro pensar que a estagnação beneficiaria alguém. Acabou por renunciar ao seu cargo em 2015m depois de ter sido boicotado por Marrocos e não apoiado realmente pela ONU ou pelos principais membros permanentes do Conselho de Segurança.

O novo secretário geral da ONU, António Guterres, nomeou o ex-presidente alemão, Hans Köhler, como seu enviado pessoal. Este político europeu conseguiu organizar duas rondas de conversações diretas entre as duas partes em conflito, o Reino de Marrocos e a la República Saharaui (RASD), com a participação dos dois países vizinhos, Argélia e Mauritânia. Mas novamente, apenas passou um ano no seu posto antes de chegar à conclusão de que o verdadeiro problema radica na relutância da chamada comunidade internacional para implementar o direito internacional. Guterres disse claramente no seu último relatório ao Conselho de Segurança, em abril de 2019, que: “uma solução do conflito é possível. Contudo, encontrar uma solução política justa duradoura e mutuamente aceitável que permita a autodeterminação do povo do Sáhara Ocidental irá requerer um vontade política forte não apenas dos partidos e dos Estados vizinhos mas também da comunidade internacional”.

Aparentemente, tanto Guterres como Köhler tentaram fazer algo sobre a grave situação dos direitos humanos, pelo menos pressionando o Conselho para que incluísse a supervisão e proteção dos direitos humanos no mandato da Missão da ONU para o referendo no Sáhara Ocidental (MINURSO), vigente desde 1991, e amplamente criticada pelas organizações internacionais de direitos humanos porque até agora não se conseguiu cumprir o seu mandato inicial. Finalmente, Köhler demitiu-se a 22 de maio. As razões concretas dadas por Guterres para explicar essa renúncia carecem de relevância, uma vez que a própria situação diz tudo.

“Não nos veem porque não colocamos bombas!”

“É perigoso jogar com o destino, os sentimentos e a paciência das pessoas, afirma Mbarka. E crê que os jovens saharauis “podem muito bem perder a paciência e optar pela violência para libertar o seu país. Não veem esperanças de futuro; não veem uma verdadeira reação por parte da chamada comunidade internacional, apenas conversações e palavras vazias e resoluções que não resolvem nada”.

Nas zonas ocupadas, no lado ocidental do muro militar marroquino, Elghalia compartilha a mesma opinião e acredita que a opressão e a inaudita violência marroquina contra manifestantes pacíficos pacíficos saharauis têm como objetivo empurrar a geração mais jovem para a violência. “É assim como o compreendo, de outra forma seria incompreensível”, assinala.

Esta possibilidade é especialmente perigosa porque toda a região do norte de África está em ebulição. “Tunísia e Egito são exemplos para os quais os jovens olham”, disse Hamdi Toubali – um saharaui de 27 anos que foi para os campos de refugiados em 2005 fugindo da perseguição policial em El Aaiún –, quando se lhe pediu que comentasse a falta de atenção que a falta de atenção da comunidade internacional parece prestar à luta e às atividades pacíficas dele e dos seus amigos.

“Simplesmente não nos veem; sinceramente, não lhes interessa. Talvez seja porque protestamos pacificamente contra o muro marroquino em vez de fazer rebentar bombas ou derramar sangue nas ruas marroquinas. E isto é realmente lamentável”, queixa-se Hamdi, sublinhando que a maioria dos jovens saharauis creem que retomar a luta armada legítima pode ser a única opção que a comunidade internacional vai deixar aos saharauis, ainda que mantendo o espírito de disciplina e o compromisso com a estratégia pacífica geral da direção saharaui.

No há luz no fundo do túnel

A atitude e a posição marroquinas permanecem inalteradas: uma recusa total de aceitar qualquer tipo de solução que possa dar ao povo saharaui a possibilidade de independência. O rei marroquino nunca deixa de o realçar, em todos os seus discursos, especialmente no de 9 de outubro de 2009, no qual enfatizou a determinação do seu país em manter a ocupação, afirmando que “ou se é patriota ou se é traidor. Não há outra possibilidade. Não se pode desfrutar dos direitos e privilégios da cidadania apenas para abusar deles e conspirar com os inimigos da pátria.” Claro que as declarações de Sua Majestade são assimiladas de imediato pelas diferentes autoridades marroquinas e traduzidas em atos de violência, discriminação e opressão contra quem se atreva a opor-se à vontade do rei, os saharauis en primeiro lugar.

A história do Sáhara Ocidental e as histórias individuais de milhares de saharauis como Elghalia, Mbarka ou Hamdi ficarão como uma vergonha nos anais da ONU e da comunidade internacional.

Constitui um desafio ao direito internacional, claro, mas também é um desafio para todos aqueles que pensam que o Estado de Direito, a democracia, a justiça social e os princípios humanos devem prevalecer sobre a lei da selva que as grandes potências sempre tentar impor à humanidade.

Mas o “caminho para a liberdade” nunca foi simples de percorrer. “Requer lutas e sacrifícios amargos, especialmente das nações africanas que sempre foram tão desprezadas e subestimadas pelos seus opressores”, ratifica Elghalia; e acrescenta que a sua geração não tem outra opção senão “manter a luta para os nosso filhos possam recuperar a sua terra e dignidade no futuro porque nós poderemos morre antes de desfrutar da liberdad, mas se assim for, morreremos de pé”.

 

Texto de Malainin Lakhal poeta, jornalista e ativista saharaui que foi vítima de desaparecimento forçado nas prisões marroquinas antes de fugir. É atualmente embaixador saharaui no Botswana.

Tradução a partir da versão castelhana do texto publicada no Viento Sur por Carlos Carujo.

Publicado a 12 de setembro

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