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A revolução russa, o repúdio das dívidas, a guerra e a paz

O quarto artigo da série “Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas” relata a decisão tomada pelo governo soviético, de 1918, de suspender o pagamento da dívida externa e repudiar as dívidas czaristas, assim como as contraídas pelo governo provisório, destinadas a financiar a guerra. Este ato suscitou o protesto unânime das grandes potências aliadas. Por Eric Toussaint.
Manifestação de marinheiros em 1917 em Petrogrado. Créditos: fotografia de Pyotr Adolfovich Otsup. Krasnogorsk.
Manifestação de marinheiros em 1917 em Petrogrado. Créditos: fotografia de Pyotr Adolfovich Otsup. Krasnogorsk.

No início de Janeiro de 1918, o governo soviético suspendeu o pagamento da dívida externa e em inícios de Fevereiro de 1918 decretou o repúdio de todas as dívidas czaristas, assim como das dívidas contraídas pelo governo provisório destinadas a financiar a guerra entre Fevereiro e Novembro de 1917. Ao mesmo tempo decidiu expropriar os haveres dos capitalistas estrangeiros na Rússia, a fim de os restituir ao património nacional. Ao repudiar as dívidas, o governo soviético punha em prática a decisão tomada em 1905 pelo soviete de Petrogrado e pelos partidos que o apoiavam. Este ato suscitou o protesto unânime das grandes potências aliadas.

Decreto sobre a paz

O governo soviético propunha uma paz sem anexação e sem indemnizações de guerra. Juntava a isso a aplicação prática do direito à autodeterminação dos povos. Tratava-se de aplicar princípios totalmente inovadores ou revolucionários nas relações entre Estados. Esta política do governo soviético contrariou e influenciou, ao mesmo tempo, a do presidente Woodrow Wilson |1|, que tinha feito do direito à autodeterminação dos povos um elemento central da política externa dos EUA |2|. As motivações dos bolcheviques e as do governo dos EUA eram bastante diferentes. Os EUA, que não tinham domínios coloniais de monta, estavam interessados em enfraquecer os impérios britânico e alemão, as potências coloniais belga, francesa, holandesa e outras, a fim de ocupar o seu lugar por outros métodos. O melhor argumento diplomático e humanitário era o direito à autodeterminação dos povos africanos, caribenhos, asiáticos que ainda estavam sujeitos ao jugo colonial. Para os bolcheviques tratava-se de pôr fim ao império czarista, que eles denunciavam como uma prisão dos povos.

A vontade de fazer a paz constituía uma das causas fundamentais que provocaram o levantamento revolucionário de 1917. A esmagadora maioria dos soldados russos recusava prosseguir a guerra. Eram quase todos camponeses que desejavam regressar às suas famílias e trabalhar a terra. Além disso, durante muitos anos, muito antes do início efetivo da guerra, os bolcheviques, no quadro da Internacional Socialista, à qual pertenceram até à traição de Agosto de 1914, opuseram-se às políticas de preparação para a guerra, afirmando que era necessário travar um combate comum para pôr fim ao capitalismo e à sua fase imperialista, assim como ao domínio colonial.

Para pôr em prática esta orientação, o governo soviético foi forçado a encetar negociações separadas com Berlim e seus aliados, pois em 1917 Londres, Paris e Washington queriam ir para a frente com a guerra. O governo soviético bem se esforçou por levar essas capitais à mesa de negociações, mas em vão. Depois de assinado o armistício com o império alemão em meados de Dezembro de 1917, as negociações com Berlim arrastaram-se durante mais 5 meses. Os soviéticos tinham a esperança de que vários povos europeus, a começar pelo povo alemão, se sublevassem contra os respetivos governos para obterem a paz. Esperavam, igualmente em vão, que o presidente Wilson apoiasse a Rússia soviética contra a Alemanha. |3| Queriam também mostrar à opinião pública internacional que desejavam uma paz geral, tanto a oeste como a leste, e que só em último recurso assinariam um acordo de paz separado com Berlim.

A partir de Dezembro de 1917 o governo soviético começou a tornar públicos numerosos documentos secretos que mostravam que as grandes potências europeias se preparavam para repartir entre si os territórios e os povos, desprezando o direito à autodeterminação. Tratava-se nomeadamente de um acordo entre Paris, Londres e Moscovo, datado de 1915, que previa, após a vitória, que o império czarista tomaria posse de Constantinopla, a França recuperaria a Alsácia-Lorena e Londres apoderar-se-ia da Pérsia. |4| No início de Março de 1918 o governo soviético assinou o Tratado de Brest-Litovsk com Berlim. O preço foi elevado: o império alemão apoderou-se de uma grande parte do território ocidental do Império Russo: parte dos Países Bálticos, parte da Polónia e a Ucrânia. Em suma, este tratado amputava a Rússia de 26 % da sua população, de 27 % da superfície cultivada, de 75 % da produção de aço e ferro.

A intervenção das potências aliadas contra a Rússia soviética

O apelo do governo soviético à realização da revolução em todas as partes do mundo, combinado com a sua vontade de pôr fim à guerra, com o repúdio das dívidas reclamadas pelas potências aliadas e as medidas de nacionalização, levou os dirigentes ocidentais a lançarem-se numa ação massiva de agressão contra a Rússia soviética, a fim de derrubar o governo revolucionário e restaurar a ordem capitalista. A intervenção estrangeira começa no Verão de 1918 e termina em finais de 1920, quando as capitais ocidentais constatam o seu falhanço e reconhecem que o governo soviético e o exército vermelho tinham retomado o controlo do território. 14 países participaram nessa agressão. A França enviou 12 000 soldados (no mar Negro e no Norte), Londres enviou 40 000 (principalmente no Norte), o Japão 70 000 (na Sibéria), Washington 13 000 (no Norte, com britânicos e franceses), a Polónia 12 000 (na Sibéria e em Murmansk), a Grécia 23 000 (no mar Negro), o Canadá 5300. |5| Note-se que a intervenção japonesa prolongou-se até Outubro de 1922. Segundo Winston Churchill, ministro da Guerra no governo britânico, as tropas estrangeiras aliadas somavam 180 000 soldados.

Parada das tropas aliadas em Vladivostok, em 1918.

O governo francês foi o que mais violentamente se opôs ao governo soviético, desde o início. Várias razões explicam esta sanha: 1. o temor a que o movimento revolucionário iniciado pelo povo russo alastrasse a França, uma vez que entre a população francesa havia uma forte oposição à continuação da guerra; 2. a decisão soviética de repudiar a dívida afetava a França acima de todos os outros países, dado que os empréstimos à Rússia tinham sido emitidos em Paris e eram na sua maioria detidos pela França.

É certo que o Governo francês em 1917 tinha encetado negociações secretas com Berlim, a fim de chegar a um acordo de paz que permitiria ao império alemão estender-se para leste, em prejuízo da Rússia revolucionária, na condição de lhe ser restituída a Alsácia e a Lorena. A recusa de Berlim pôs fim a estas negociações. |6|

O armistício de 11 de Novembro de 1918, assinado entre as capitais ocidentais e Berlim, previa que as tropas alemãs poderiam permanecer provisoriamente nos territórios «russos» que ocupavam. Em virtude do artigo 12º do armistício, a Alemanha teria de evacuar todos os antigos territórios russos «logo que os Aliados julgassem conveniente, tendo em conta a situação interna desses territórios». |7| Isto visava permitir ao exército imperial impedir que o governo soviético recuperasse rapidamente o controlo do território concedido à Alemanha pelo Tratado de Brest-Litovsk. A ideia dos Aliados era permitir às forças antibolcheviques o controlo desses territórios e estabelecer um ponto de apoio para derrubar o governo.

O historiador britânico E. H. Carr relata a que ponto a intervenção contra a Rússia soviética era impopular: «Quando os homens de Estado aliados se reuniram em Paris para a conferência de paz, em Janeiro de 1919, discutiram a ocupação da Rússia pelas tropas aliadas; o primeiro-ministro britânico, Lloyd George, declarou aos seus colegas que “se tentasse atualmente enviar um milhar de soldados britânicos para ocuparem a Rússia, as tropas revoltar-se-iam” e que “se se iniciasse uma operação militar contra os bolcheviques, a Inglaterra tornar-se-ia bolchevique”. A intuição de Lloyd George captava bem os sintomas. No início de 1919 houve graves motins na frota francesa e nas unidades militares francesas desembarcadas em Odessa, assim como noutros portos do mar Negro; no início de Abril foram precipitadamente retiradas. Quanto às tropas multinacionais sob comando inglês na frente de Arcangel, o diretor das operações militares no Ministério inglês da Guerra fez saber que o seu moral era “tão baixo que se encontravam à mercê da propaganda bolchevique, muito ativa e insidiosa, que o inimigo insufla com uma energia e uma habilidade crescentes”. Muito mais tarde, os relatórios oficiais americanos revelaram a situação em detalhe. No 1º de Maio de 1919, as tropas francesas que tinham recebido ordem de avançar revoltaram-se. Alguns dias mais tarde, uma companhia de infantaria britânica “recusou marchar para a frente de batalha”. Pouco depois, uma companhia americana “recusou durante algum tempo regressar à frente”. Perante estes acontecimentos, o Governo britânico decidiu em Março de 1919 retirar do Norte da Rússia – retirada que apenas foi concluída seis meses mais tarde». |8|

Intervenções militares ocidentais no Oeste da Rússia, em 1919 e 1920.

Winston Churchill era um dos principais falcões no campo ocidental. Aproveitando a ausência de Lloyd George e do presidente dos EUA, aquando duma conferência de alto nível em Paris a 19 de Fevereiro de 1919, Churchill meteu-se em campo para convencer os outros governos a completarem a sua intervenção de apoio direto às forças dos generais russos brancos; propôs-lhes o envio «de voluntários, de técnicos de armamento, de munições, de tanques, de aviões, etc.» e «armar as forças antibolcheviques». |9|

Os Aliados tentaram convencer as novas autoridades alemãs (pró-ocidentais) a participarem nas ações contra a Rússia bolchevique. Apesar da forte pressão das capitais ocidentais, em Outubro de 1919, o Reichstag (parlamento alemão), no seio do qual os socialistas (SPD) e os liberais eram maioritários, votou por unanimidade contra a adesão da Alemanha ao bloqueio decretado pelos Aliados contra a Rússia soviética. É preciso acrescentar que ao mesmo tempo alguns generais alemães, como Ludendorff e, em especial, Von der Goltz, que dirigia os derradeiros restos organizados do antigo exército imperial, mantinham atividades militares a leste para auxiliarem os generais russos brancos antibolcheviques. Faziam-no com o apoio das capitais ocidentais. |10|

É evidente que tanto os governos ocidentais como as potências centrais que tinham sido vencidas (Império Alemão e Austro-húngaro) receavam que a revolução alastrasse aos respetivos países. Lloyd George escreveu num documento confidencial no início de 1919: «A Europa inteira foi conquistada pelo espírito revolucionário. Os operários têm um sentimento profundo não só de descontentamento, mas também de cólera e de revolta contra as condições de antes da guerra. A ordem estabelecida nos aspetos político, social, económico, é posta em causa pelas massas duma ponta à outra da Europa». |11| Este medo da revolução não era imaginário e explica em grande medida a violência da agressão contra a Rússia bolchevique.

A intervenção estrangeira deu apoio aos ataques dos generais russos brancos e prolongou a guerra civil, que fez um grande morticínio (provocou mais mortos do que a Guerra Mundial na Rússia |12|). O custo da intervenção estrangeira em vidas humanas e em destruição material foi considerável e o governo soviético exigiu mais tarde que esta questão fosse tida em conta nas negociações internacionais, a propósito do repúdio da dívida (ver adiante).

O bloqueio económico e financeiro contra a Rússia soviética; o bloqueio do ouro russo

A partir de 1918, a Rússia soviética sofreu um bloqueio orquestrado pelas potências aliadas. O governo soviético estava disposto a pagar em ouro a importação de bens de que tinha necessidade absoluta. Mas nenhum dos grandes bancos e nenhum governo do mundo podia aceitar o ouro soviético sem entrar em conflito direto com os governos aliados. De facto, Paris, Londres, Washington, Bruxelas… entendiam que deviam receber o ouro russo para indemnizar os capitalistas que tinham sido expropriados na Rússia e para reembolsar as dívidas. O comércio russo teve muita dificuldade em ultrapassar este obstáculo. Nos EUA, qualquer pessoa ou empresa que quisesse realizar uma transação em ouro ou entrar no país com ouro tinha de fazer a seguinte declaração: «Eu, abaixo assinado, proprietário de um lote de ouro… declaro solenemente, pela presente declaração, que este ouro não tem origem bolchevique e nunca esteve na posse do autoproclamado Governo bolchevique da Rússia. O abaixo-assinado, por outro lado… reclama, doravante, nos Estados Unidos, sem restrição nem reservas, o seu direito sobre o dito ouro.» |13|

É preciso acrescentar que após a capitulação alemã, em Novembro de 1918, a França conseguiu recuperar o forte resgate em ouro que Berlim tinha obtido em resultado do Tratado de Brest-Litovsk, assinado em 1918. |14| A França recusou-se a devolver esse ouro à Rússia, justificando que se tratava duma parte das indemnizações que a Alemanha tinha de pagar a Paris. Note-se que o bloqueio do ouro russo continuou parcialmente durante anos. Foi assim que a França conseguiu em 1928 que as autoridades de Washington proibissem um pagamento em ouro russo, a propósito de um contrato entre a Rússia e uma sociedade privada norte-americana.

Artigo de Eric Toussaint, publicado em www.cadtm.org. Tradução de Rui Viana Pereira.


Notas

|1| Thomas Woodrow Wilson, nascido a 28-12-1856 em Stauton e falecido em Washington, D.C., a 3-02-1924, foi o 28º presidente dos EUA. Foi eleito para dois mandatos consecutivos: 1913 a 1921.

|2| Ver a declaração de W. Wilson de Fevereiro de 1918: «every territorial settlement in this war must be made in the interest and for the benefit of the population concerned, and not as part of any mere adjustment compromise of claims amongst rival states». Ver igualmente esta declaração de 1919, aquando da assinatura do pacto que criou a Sociedade das Nações: «The fundamental principle of this treaty is a principle never aknowledged before… that the countries of the world belong to the people who live in them». Estas duas citações provêm de Odette Lienau, Rethinking Sovereign Debt: Politics, Reputation, and Legitimacy in Modern Finance, Harvard University, 2014, p. 62-63. http://www.hup.harvard.edu/catalog.php?isbn=9780674725065

|3| Em Janeiro-Fevereiro de 1918, o presidente Wilson adotou uma atitude pública aparentemente protetora da Rússia soviética. Ver nomeadamente o ponto 6 da sua declaração em 14 pontos apresentada ao Congresso dos EUA, a 8 de Janeiro de 1918, https://fr.wikipedia.org/wiki/Quatorze_points_de_Wilson

|4| Ver Edward H. Carr. 1952. La révolution bolchevique, Tome 3. La Russie soviétique et le monde, Edition de Minuit, Paris, 1974, cap. 22, p. 24 da edição francesa de 1974.

|5| Ver nomeadamente https://fr.wikipedia.org/wiki/Intervention_alli%C3%A9e_pendant_la_guerre...

|6| Foi Lloyd George que relatou estas negociações nas suas memórias: Lloyd George, War Memoirs, IV, 1934, 2081-2107. Ver Edward H. Carr. 1952. La révolution bolchevique, Tome 3. La Russie soviétique et le monde, Edition de Minuit, Paris, 1974, cap. 22, p. 36 da edição francesa de 1974.

|7| Ver Edward H. Carr. 1952. La révolution bolchevique, Tome 3. La Russie soviétique et le monde, Edition de Minuit, Paris, 1974, cap. 28, p. 317 da edição francesa de 1974.

|8| Edward H. Carr. 1952. La révolution bolchevique, Tome 3. La Russie soviétique et le monde, Edition de Minuit, Paris, 1974, cap. 13, p. 136-137 da edição francesa de 1974.

|9| Citado por E. H. Carr, tomo 3, p. 122 da edição francesa de 1974.

|10| E. H. Carr, tomo 3, p. 316 da edição francesa de 1974.

|11| Citado por E. H. Carr, tomo 3, p. 139 da edição francesa de 1974.

|12| Sobre a guerra civil russa, ler Jean-Jacques Marie, La guerre civile russe (1917-1922), 2005.

|13| The New York Times, 2-04-1921, citado por Alexander N. Sack, «Les réclamations diplomatiques contre les soviets (1918-1938)», Revue de droit international et de législation comparée, p. 301. Versão inglesa: http://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.hoil/dipclsov0001&div=1

|14| Ver: Alexander N. Sack, «Les réclamations diplomatiques contre les soviets (1918-1938)», Revue de droit international et de législation comparée.


Série: Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas

Parte 1 : Rússia: O repúdio das dívidas no cerne das revoluções de 1905 e 1917
Parte 2 : Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas
Parte 3 : A revolução russa, o repúdio das dívidas, a guerra e a paz
Parte 4 : A revolução russa, o direito dos povos à autodeterminação e o repúdio das dívidas
Parte 5 : A imprensa francesa a soldo do czar
Parte 6 : Os títulos de dívida russos após o repúdio

Sobre o/a autor(a)

Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo
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