A Revolta de “3 de Fevereiro de 1927”

03 de fevereiro 2021 - 15:18

Pode dizer-se que a República nunca tivera tantos defensores armados, nem mesmo no “5 de Outubro de 1910”. Também nunca tivera tantos adversários e por isso o movimento revolucionário sucumbiu. Por Luís Farinha.

porLuís Farinha

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Barricada no Porto. Em pé, o sargento Emídio Guerreiro.

Uma Guerra Civil larvar e intermitente – o Reviralho

A primeira frente anti-ditatorial e antifascista constituiu-se logo no verão de 1926, a partir do momento em que ficou claro que a fronda militarista que subverteu o regime republicano em maio de 1926 não queria apenas um câmbio de governo, mas antes a subversão completa do regime.

O bloco anti-ditatorial reunia a esquerda republicana (civil e militar), a intelectualidade seareira, um escol de antigos líderes republicanos (ex-ministros, deputados, governadores e um Presidente da República), o mundo estudantil e muitos liberais, comunistas e anarquistas desagregados. Em mais de 10 revoltas ou simples intentonas falhadas, com relevo para a “Revolta de 3 de Fevereiro de 1927”, de “20 de Julho de 1928” e para as revoltas de 1931 (Revoltas Ilhas e Revolta de 26 de Agosto de 1931), estes setores radicais mantiveram acesa uma guerra civil larvar e intermitente que veio a ser conhecida como o “Reviralho”.

O bloco revolucionário de 1927 não é uma novidade absoluta. Na sua base estão setores da esquerda republicana, dos socialistas, dos republicanos radicais e de movimentos culturais como a “Seara Nova” que, desde 1923/1924, tentavam constituir uma alternativa democrata-social - o “bloco das esquerdas” -, com força suficiente para constituir uma alternativa de governação ao “partido dominante” e às direitas nacionalistas, onde ganhavam cada vez mais força os simpatizantes do fascismo. É uma frente que pode aspirar a um bom apoio de setores militares republicanos, democratas e antifascistas, em particular de militares que participaram na I Guerra Mundial.

Unia-os um programa mínimo que incluía a formação de um Governo Provisório, composto por «homens competentes», a demissão dos ditadores e a reposição das liberdades públicas e do Estado Constitucional.

Jaime Cortesão – um dos líderes do Comité Revolucionário do “3 de Fevereiro de 1927”

«Acusaram-nos tanto de querer favorecer certos partidos políticos da República como de bolchevistas e mercenários de Moscou; de ter cometido com baixeza as piores violências; e de representarmos uma minoria de ambiciosos, sem apoio da nação, que desejava apenas assaltar o poder e locupletar-se. Ao contrário, nunca em Portugal se fez um movimento depois da proclamação da República com tamanha extensão, com mais alto idealismo de propósitos e nobre cavalheirismo dos combatentes.

Devemos começar por frisar que todos quantos na madrugada de 3 de Fevereiro verdadeiramente apareceram à frente do movimento são republicanos, cuja atividade se tem exercido fora da estrita esfera da política, da vida partidária e da ambição de governar. Notemos ainda e com orgulho que nunca movimento algum em Portugal conseguiu, como este, interessar uma tão forte elite de escritores e daqueles cuja ação política tem sido quase exclusivamente de propaganda de ideais reformadores. Movimento, que visava a restauração do regime e da Constituição, desejava a formação dum forte governo nacional, composto por algumas dentre as mais competentes e honradas figuras da República.»

(Jaime Cortesão, in A Liberdade. “Palavras de combatentes. O aniversário do Movimento de 3 de Fevereiro”, 30.02.1930

Na verdade, este “bloco das esquerdas” – que chegou a organizar comícios contra o fascismo com milhares de pessoas na rua (1923-1925) – ambiciona muito mais do que um câmbio do poder. Defende uma “Revolução” profunda para o país, embora realizada de forma pacífica. Tal desiderato exigia, no entanto, a recuperação das rédeas do poder, nas mãos de militares desde maio de 1926. E, para tal, seria preciso reunir forças militares e civis favoráveis à reposição do regime constitucional democrático, com recurso às armas.

Dois anos depois da “Revolta 3 de Fevereiro de 1927”, já no exílio parisiense, Jaime Cortesão – um dos ideólogos da Resistência Republicana -, afirma que “…nem por um momento se arrepende[u] de [se] ter revoltado, em Fevereiro de 1927, contra a tirania caserneira que impera[va] em Portugal”. Porém, a sua revolta não pugnava pela recuperação de um passado de que não se orgulhava, mas antes pela construção de um outro futuro: “O meu ideal em política nacional não é o regresso ao statu quo ante. Não há democracia quando os partidos políticos colocam os seus interesses de grupo acima do ideal comum que devia animá-los, quando se tornam fações, divididos por ódios e não por ideias. Aspiro a uma democracia portuguesa em que os partidos saibam antes de mais cooperar para o ideal comum de alcançar pela reforma interna – educativa e económica, na metrópole e nas colónias, a plena soberania nacional (…)”.

A Revolta de “3 de Fevereiro de 1927” - Palcos dos acontecimentos

O movimento revolucionário que se inicia no Porto em 3 de Fevereiro, e depois continua por Lisboa de 7 a 9 de Fevereiro – os dois principais palcos dos acontecimentos -, teve ainda manifestações na Figueira da Foz no dia 3, em Vila Real de Sto. António, Tavira e Faro nos dias 4 e 5 e intentonas em Évora, Setúbal, Barreiro, S. Julião da Barra, Amadora, Queluz, Mafra, Abrantes, Tancos, Entroncamento, Leiria, Castelo Branco, Coimbra, Mealhada, Cantanhede, Aveiro, Viseu, Alijó e Valpaços.

Pode dizer-se que a República nunca tivera tantos defensores armados, nem mesmo no “5 de Outubro de 1910”. Também nunca tivera tantos adversários e por isso o movimento revolucionário sucumbiu.

A “Revolução da Semana Sangrenta”

O primeiro grande afrontamento entre a resistência republicana e a Ditadura Militar (e o único que verdadeiramente fez tremer a situação), ocorreu no Porto, de 3 a 7 de de Fevereiro de 1927 – a “Semana Sangrenta”.

O Comité Revolucionário era chefiado pelo general Sousa Dias, pelo coronel Fernando Freiria, pelo tenente-coronel Pinto da Fonseca, pelo comandante Jaime de Morais, pelo capitão-médico Jaime Cortesão, pelo capitão João Pereira de Carvalho e pelo capitão Sarmento Pimentel.

Durante cinco dias, a guerra civil instala-se na Praça da Batalha, coração do Porto. Os revolucionários de Caçadores 9 contaram com outras unidades militares da cidade, de Penafiel, Valença, Vila Real, Lamego e Chaves, bem como da GNR, tendo-se apoderado do Quartel-General, do Governo Civil e dos Correios e Telégrafos. Ao mesmo tempo eram presos o Governador Civil do Porto, o presidente da comissão local de censura, os 1º e 2º comandantes da Região Militar e os ministros do Comércio e da Instrução, para além de outros oficiais.

Para combater a revolta é designado o próprio ministro da Guerra, coronel Passos e Sousa, que desde o primeiro dia se encontra no Porto, dirigindo as tropas fiéis de Artilharia 5 da Serra do Pilar, às quais se juntaram reforços militares da Covilhã e Braga e um contingente de 1200 homens idos de Lisboa, desembarcado em Leixões, sob o comando do general Farinha Leitão.

Aos militares revoltados juntaram-se algumas centenas de civis – funcionários públicos, estudantes, jornalistas e homens de letras, operários e elementos de profissões liberais -, sob a coordenação de José Domingues dos Santos, líder da Esquerda Democrática.

Calcula-se que no Porto estiveram frente a frente cerca de 2,5 milhares de resistentes constitucionais e cerca de 4 milhares de efetivos governamentais, no uso de toda a sorte de armas ligeiras e pesadas, incluindo bombardeamentos aéreos e marinha.

“A Revolução do Remorso”

Assim designou Sarmento Pimental – um dos líderes do Porto -, a revolta que saiu à rua em Lisboa no dia 7, quando já se haviam rendido os revolucionários da “Invicta”.

O movimento havia saído de forma descoordenada em diferentes pontos do país, o que permitiu a resposta atempada da Ditadura.

A Revolução em Lisboa sob o comando de Agatão Lança

Na capital, o movimento foi comandado pelo coronel Mendes dos Reis, que se instalou no Hotel Bristol, a S. Pedro de Alcântara. Era coadjuvado pelo tenente-coronel Justiniano Esteves, pelos majores Viriato Lobo, Sangreman Rodrigues e Batista Pereira, pelos capitães Eduardo da Cruz Nunes, Manuel António Vieira e pelos tenentes Abílio dos Reis Morais, Joaquim de Oliveira Lima, Joaquim Videira e Ismael Saraiva.

Sem apoios do Exército, serão os marinheiros de Alcântara e do Arsenal da Marinha que iniciam a revolta, na manhã do dia 7, sob o comando do almirante Câmara Leme e do tenente da Armada Agatão Lança.

Destruição nas imediações do Largo do Rato

Cerca de 150 marinheiros partem da Praça da Armada, a Alcântara, e conseguem a adesão das 2ª, 3ª e 4ª companhias da GNR e de várias esquadras de polícia, num total de cerca de 600 homens, para além de algumas dezenas de civis. Impedidos nos seus avanços para a Rotunda e para Campolide, constroem barricadas no Largo do Rato, Rua Alexandre Herculano, Rua da Escola Politécnica, Praça do Príncipe Real e Bairro Alto, até á calçada da Glória. Descem ainda à beira-Tejo e tomam o Arsenal da Marinha e os Ministérios da Marinha e da Guerra, onde coordena as ações o ex-Comissário da Emigração Filipe Mendes.

No Tejo, adere à revolução o navio “Carvalho Araújo”, comandado pelo capitão João Manuel de Carvalho.

A defesa governamental iniciou-se com forças de Caçadores 5 de Campolide, que desceram a Rua das Amoreiras e peças de Artilharia 3 e Metralhadoras, colocadas na Rotunda e no Jardim do Torel. Da mãe-de-água das Amoreiras flagelam impiedosamente os Largos do Rato e de S. Mamede, onde os marinheiros, comandados por Agatão Lança, combatem até à exaustão de homens e munições. No dia 8, reforços de milhares de homens, vindos de Amadora, Mafra e Entroncamento sufocam completamente os resistentes.

Rescaldo dos acontecimentos em Lisboa

Repressão brutal dos vencidos

Esta fronda político militar regeneradora e modernizante nunca conseguirá sequer vislumbrar um sinal de vitória. Contra si tinha dois poderosos inimigos – a disposição tirânica do bloco das direitas anti-liberais e fascizantes por um lado, e por outro o indiferentismo do aparelho político-militar do “partido dominante”, desinstalado pela força militar e muito combatido pelo “bloco das esquerdas” pelos vícios adquiridos de “partido único”.

A “Revolta de 3 de Fevereiro de 1927” redundou numa derrota desastrosa do bloco revolucionário: os implicados foram presos e deportados aos milhares e demitidos dos seus cargos públicos ou afastados da sua vida comum, alguns por muitos anos.

Prisões e deportação dos implicados

Em declarações ao jornal La Nation, Passos e Sousa considera a “Revolta de 3-7 de Fevereiro” como um “incidente lastimável, mas talvez providencial”. Na verdade, a situação de estado de sítio que foi imposta ao país em fevereiro e se prolongou por todo o mês de março de 1927 vai permitir a dissolução de todas as unidades militares e outros organismos implicados. Nos dias que se seguiram à Revolução, os líderes revolucionários são demitidos dos seus serviços: Jaime Cortesão, Raul Proença e David Ferreira da Biblioteca Nacional, Álvaro de Castro da Escola Colonial, José Domingues dos Santos da Faculdade de Engenharia do Porto, Filipe Mendes do Comissariado dos Serviços de Emigração, Jaime de Morais do Conselho Superior de Colónias.

O Decreto-lei nº 13 137, de 15 de fevereiro, que previa a separação de serviço, com 50% do vencimento de “todos os magistrados, funcionários civis e oficiais do Exército e da Armada que tomaram parte nos acontecimentos” permite a seleção sumária por uma “comissão militar ad-hoc”, nomeada pelo Governo, de centenas de militares, entre oficiais, sargentos e praças, os quais embarcarão em direção à deportação nos dias 19 e 22 de fevereiro: 500 a bordo do “Infante de Sagres” e 570 a bordo do navio Lourenço Marques”. Com destino ao longínquo Timor, os navios vão largando os principais líderes militares pelas diferentes colónias atlânticas. O tenente Agatão Lança será depositado em Angola, ao passo que o general Sousa Dias, o almirante Câmara Leme, o coronel Freiria, o major Tamagnini Barbosa, o capitão-tenente Sebastião Costa e o tenente Joaquim Videira foram deixados em S. Tomé e Príncipe.

Para as praças da GNR e unidades da PSP foi decidida a expulsão pura e simples, sem quaisquer direitos, ao mesmo tempo que muitos militares não deportados se mantiveram presos na Penitenciária de Lisboa e nos fortes de Sacavém e de Elvas pelos meses seguintes.

Encerramento de sindicatos e dissolução de partidos e associações

Por seu lado, pelo Decreto-Lei nº 13 138, de 16.2.1927 procede-se à dissolução das unidades da GNR implicadas e à dissolução de “todos os centros políticos ou organizações de qualquer natureza” que tivessem participado nos acontecimentos. Nestas circunstâncias, são encerrados os Sindicatos dos Profissionais de Imprensa, do Pessoal da Câmara Municipal de Lisboa, dos Marinheiros e Moços da Marinha Mercante e os Centro Republicano Almirante Reis, José Domingues dos Santos e Afonso Costa, ao mesmo tempo que é revista a lei da greve.

Do ponto de vista judicial simplificam-se os processos de investigação e incriminação e a interferência do poder ditatorial consubstancia-se com a criação de um Tribunal Militar Especial (Decreto-Lei nº 13 392, de 02.04.1927), para o qual são nomeados responsáveis da Ditadura Militar.

No seu conjunto, a “Revolta de 3 de Fevereiro de 1927” tinha redundado em quase duas centenas de mortos e cerca de um milhar de feridos. Nas prisões acumulou-se cerca de um milhar de prisioneiros ao mesmo tempo que mais de um milhar de “revolucionários”, civis e militares foram colocados nas Ilhas Atlânticas e nas Colónias, presos ou em estado de residência fixada.

Em certo sentido, a “Revolução de 3-9 de Fevereiro de 1927” constituiu o verdadeiro ponto de viragem da República Democrática para a “Ditadura Militar” e depois “Nacional”. Os situacionistas tiveram sempre disso inteira consciência. Nos anos seguintes, a “Revolução de Fevereiro” foi comemorada pelos ditadores como um momento chave de implantação da Ditadura.

Uma década depois da Revolta, num almoço comemorativo que reuniu os vencedores, o major Ricardo Durão referia-se àquele momento como “…o batismo de sangue do 28 de Maio; infelizmente – afirmava-, sem a argamassa gloriosa do sangue não há construções sociais que perdurem”.

Luís Farinha
Sobre o/a autor(a)

Luís Farinha

Ex-Diretor do Museu do Aljube Resistência e Liberdade. Investigador no Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
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