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Rendas da energia: Leia o capítulo que o bloco central quis esconder

Houve um capítulo do relatório aprovado na comissão de inquérito às rendas da energia que os deputados do bloco central não deixaram passar: o que conta a história da entrega à EDP de 26 barragens sem concurso e a preço de saldo.
António Mexia e Manuel Pinho
António Mexia e Manuel Pinho. Foto Estela Silva/Lusa

As conclusões do relatório preliminar da comissão de inquérito às rendas da energia, da autoria do deputado bloquista Jorge Costa, afirmavam que a outorga à EDP da opção sobre a extensão da utilização do domínio público hídrico (DPH) em 2004 tinha dado à empresa “uma vantagem estratégica: a detenção do monopólio da produção hídrica em Portugal”. A avaliação do valor económico a receber pelo Estado como contrapartida desta extensão resultou numa perda pelo Estado de uma receita de 581 milhões de euros.

Leia aqui o capítulo que PS, PSD e CDS não deixaram que fosse aprovado na comissão:

Capítulo 2: Extensão sem concurso do uso do Domínio Público Hídrico a favor da EDP e metodologia do cálculo da compensação a pagar ao SEN

Com o DL 183/95 a entidade concessionária da RNT (a REN) obteve a concessão por parte do Estado do direito de utilização do Domínio Público Hídrico (DPH) para a produção hidroelétrica. Aquando da celebração dos CAE das centrais hídricas, na sua totalidade detidas pela EDP, estabeleceu-se que a REN subconcederia a utilização do DPH a estas centrais até ao final destes contratos.

Os CAE continham também cláusulas para a negociação da extensão do contrato, bem como cláusulas com direitos e obrigações a observar na resolução do mesmo. Previam também direitos e obrigações da REN relativos à realização, findo o prazo de subconcessão, de concursos para o reequipamento do aproveitamento e exploração destas centrais.

Com a entrada em vigor dos CMEC e a necessidade de cessação antecipada dos CAE, foi necessário estabelecer termos e condições dos direitos de utilização do DPH destas centrais hidroeléctricas. Assim foi aprovada uma série de legislação entre 2004 e 2007 que culminou com uma extensão dos direitos de utilização do DPH à totalidade das centrais hídricas até ao final de vida dos equipamentos (em média, 25 anos para além do previsto nos CAE), abdicando a EDP do valor residual a que tinha direito e  pagando ao Estado 759 M€. Esta posição estratégica foi atribuída à EDP sem a realização de qualquer procedimento concorrencial.

Esta opção é criticada pela ERSE desde a preparação do DL 240/2004 e é ainda hoje objeto de um processo formal de investigação por parte da Comissão Europeia. O comunicado mais recente da Comissão Europeia sobre o tema, com data de 7 Março de 2019, considera que as práticas legislativas de Portugal e França na atribuição sem concurso de barragens violam o direito da UE.

“França e Portugal: A Comissão vai enviar notificações para cumprir a estes dois Estados-Membros, uma vez que considera que tanto a legislação como a prática das autoridades francesas e portuguesas são contrárias ao direito da UE. A legislação francesa e portuguesa permite a renovação ou extensão de algumas concessões hidroelétricas sem recorrer a concurso.”
(Comunicado da CE, 7 de Março de 2019)

Assim, este foi também um assunto central na CPIPREPE, onde foi debatida a possibilidade de a atribuição da utilização do DPH sem concurso estar na origem de vantagens indevidas conferidas à EDP. Duas questões foram levantadas a este respeito: 1) a falta de um procedimento concorrencial na concessão do DPH no período posterior ao prazo do CAE; 2) o método de fixação de uma compensação económico ao sistema elétrico pelo valor dessa concessão.

1. Atribuição à EDP da exploração dos aproveitamentos hidroeléctricos sem concurso

1.1 As definições previstas nos CAE

Os CAE definiam cláusulas para a negociação da sua extensão. Este processo negocial, que poderia ser iniciado tanto pela entidade concessionária da RNT (REN) como pelo produtor (EDP), é estabelecido na cláusula 25.1 dos CAE das centrais hidroelétricas. O ponto 3 da mesma cláusula define que, se não for iniciado um processo negocial, ou no caso de este falhar, o contrato terminaria na data de fim de contrato estipulada para o CAE.  

“Com uma antecedência mínima de 5 anos relativamente à Data de Fim do Contrato, a RNT, ouvida a entidade de planeamento, notificará o Produtor do seu interesse ou não em negociar a extensão do Contrato relativo ao Aproveitamento, devendo o Produtor responder por escrito, num prazo máximo de 1 mês. O Produtor, poderá, até 5 anos antes da Data de Fim de Contrato, apresentar à RNT uma proposta fundamentada para a extensão do Contrato. Nesse caso, a RNT, ouvida a entidade de Planeamento, deverá notificar, o Produtor, no prazo máximo de um mês sobre o seu interesse, ou não, em iniciar negociações para a extensão do Contrato.”
(cláusula 25.1.1 dos CAE das centrais hidroelétricas)

“No caso de nenhuma das partes solicitar a extensão do Contrato, ou no caso de a RNT responder negativamente a uma proposta do Produtor para a extensão, o contrato terminará na Data de Fim de Contrato.”
(cláusula 25.1.3 dos CAE das centrais hidroelétricas)

Neste cenário em que a RNT optasse pela não extensão do contrato, estaria obrigada, pela cláusula 26.1.1, a abrir um concurso para o reequipamento e exploração do aproveitamento hidroelétrico. No caso de o vencedor deste concurso não ser a EDP, a RNT teria de devolver o valor residual do aproveitamento hidroeléctrico, de acordo com a cláusula 26.3.

“A RNT deverá, com a antecedência de pelo menos um ano relativamente à data de fim de Contrato, colocar de novo a concurso o reequipamento do Aproveitamento e respectiva exploração. Em resultado desse concurso a RNT optará entre:
    •    celebrar com o mesmo produtor um novo Contrato de Aquisição de Energia.
    •    celebrar com outra entidade que não o Produtor um novo Contrato de Aquisição de Energia, tomando posse do Aproveitamento e transferindo para o novo produtor seleccionado a posse sobre as instalações e bens pertencentes ao Aproveitamento, sem direito a qualquer indemnização adicional por parte do produtor para além do previsto na cláusula 26.3 deste Contrato ”

 (cláusula 26.1.1 dos CAE das centrais hidroeléctricas)

“[...] se a RNT, em resultado do concurso aberto para o reequipamento e exploração do Aproveitamento, vier a celebrar com outro produtor um novo contrato de aquisição de energia, a RNT pagará ao Produtor o Valor Residual do Aproveitamento, tal como definido no Anexo 10 deste Contrato.”
(cláusula 26.3 dos CAE das centrais hidroeléctricas)

Em suma, os CAE, nos termos da legislação em vigor à data, concediam à REN a opção de estender o contrato de exploração dos centros hidroeléctricos da EDP ou abrir um novo concurso e transferir a exploração para outra entidade, pagando à EDP valor residual do aproveitamento.

O processo de transição para o mercado de electricidade veio obrigar à cessação antecipada dos CAE e à produção de nova legislação que enquadrasse a exploração dos centros electroprodutores. Para fazer face a este processo de transição, como vimos anteriormente, o governo optou em 2003 pela adoção de um mecanismo de manutenção do equilíbrio contratual (CMEC), cuja principal premissa era a neutralidade relativamente aos CAE.

Assim, no que diz respeito às centrais hídricas da EDP, esperava-se que fossem mantidos sob o regime CMEC os mesmos prazos de exploração previstos nos CAE. Todavia, na sequência do Despacho 14 315/2003, o DL 240/2004 concedeu à EDP a opção de explorar os aproveitamentos hidroeléctricos até ao termo de concessão do domínio hídrico (muito além do prazo dos CAE). Mais tarde, em 2005, este novo direito ficou também plasmado como cláusula suspensiva nos Acordos de Cessação dos CAE, dando à EDP o direito de não transitar para os CMEC enquanto não fossem estendidos os prazo de concessão das 27 barragens em território nacional.

Na secção seguinte analisam-se estes dois momentos de atuação do governo, em 2004 e 2005, na preparação e aprovação do DL 240/2004 e na negociação e homologação dos Acordos de Cessação antecipada dos CAE.

1.2 Aspetos decorrentes do DL 240/2004

No artigo 4º ponto 1 do DL 240/2004 é introduzida a possibilidade – já prevista no despacho 14315/2003 – de os produtores hidroelétricos manterem a exploração das centrais até ao termo da concessão do domínio hídrico:

“No caso dos centros produtores hidroeléctricos, e na hipótese de os respectivos produtores pretenderem manter a exploração até ao termo da concessão do domínio hídrico, ao valor do CAE é deduzido o valor residual dos bens que, nos termos do respectivo título de concessão, não devessem reverter gratuitamente para o Estado no final do contrato”.
(artº 4º ponto 1, alínea vii)

No parecer ao DL enviado pela ERSE em 2004, o regulador debruça-se sobre este novo direito de opção conferido à EDP, afirmando que esta prorrogação implícita da licença de produção, por não ser feita através de um procedimento concursal, prejudica a concorrência e não confere aos potenciais interessados igualdade de tratamento. A ausência de previsão de uma tradução económica a favor do sistema elétrico desta nova vantagem concedida à EDP é fortemente criticada:

“Embora o nº 2 [do artigo 20º do Decreto-Lei nº 183/95] disponha que o prazo do contrato de vinculação deva ser igual ao prazo de duração da licença, a verdade é que o prazo de utilização do domínio hídrico é muito superior ao prazo de duração dos contratos de vinculação.
Resulta daqui que, na prática, os termos de formulação da citada alínea [do nº 1 do artigo 4º do DL 240/2004] traduzem uma prorrogação implícita da licença de produção. Assim sendo, esta prorrogação deve ter uma tradução económica a favor do sistema eléctrico, devendo ser levada em linha de conta na determinação dos CMEC. A não ser assim, está-se a conferir aos produtores, sem qualquer correspondência no sistema eléctrico, vantagens que não resultam dos CAE se estes contratos fossem cumpridos nos seus precisos termos. Ora, para além da imediata prorrogação da licença ser questionável à luz dos princípios da Directiva 2003/54/CE, já que não confere aos interessados igualdade de oportunidades e de tratamento, a ausência de correspondência económica no sistema eléctrico torna este acto ilegítimo. Donde, importaria adoptar uma disposição expressamente aplicável à prorrogação das licenças”.

(Parecer ERSE ao DL 240/2004, entregue ao governo em maio de 2004)

Também a REN, nos primeiros comentários ao DL 240/2004 que faz chegar ao governo em Fevereiro de 2004, alerta para este aspeto do diploma:

“O ponto v. da alínea a) do número 1 do artigo 4º ao permitir manter a exploração das centrais hídricas (3903 MW) até ao termo da concessão do domínio hídrico está a beneficiar a EDP, atendendo a que, no termo de cada CAE, a REN iria colocar a concurso a exploração do sítio (DL 183/95, nº 4 do artigo 13º, texto consolidado pelo DL 56/97 de 14 de março”.
(Comentários REN, enviados em Fevereiro de 2004)

A EDP desvaloriza o facto de a extensão do DPH se constituir como um novo direito, dizendo que a lei já permitia que a RNT fizesse a subconcessão sem concurso. O administrador da empresa em 2007, João Manso Neto afirma hoje:

“Desde 1995 que estava previsto que o produtor o pudesse ter. Obviamente — e podemos fazer já esse comentário —, também o Estado o poderia ter, mas aquilo já estava previsto, pelo que não há nada de novo.”
(Audição de João Manso Neto)

Contudo, o DL 183/95 no artigo 6  (citado em baixo) apenas concede o direito à RNT de subconceder o DPH à entidade selecionada para a exploração da central.

“A entidade concessionária da RNT fica autorizada a subconceder o contrato de concessão de utilização do domínio hídrico à entidade por ela seleccionada, nos termos do presente diploma.”
(Artigo 6º, ponto 3 do DL 183/95)

Como vimos anteriormente, como impunha a legislação de 1995, os CAE definiam os termos da extensão desta subconcessão, dando poderes à RNT para não estender o contrato e iniciar um concurso para a exploração dos aproveitamentos hidroeléctricos. Só no processo de transição para o mercado, mais concretamente no despacho 14 315/2003 e no DL 240/2004, é que a extensão deixa de depender da vontade da RNT e passa a depender da vontade da EDP. Enquanto Paulo Pinho chama a isto uma “opção real muito valiosa”, João Manso Neto considera que “não há nada de novo”.

Perante as evidências que demonstram que a extensão por opção da EDP é um aspecto jurídico inovatório introduzido no DL 240/2004, João Manso Neto centra o seu argumentário na racionalidade económica da medida:

“A opção de não fazer concurso público e atribuir o domínio hídrico por negociação bilateral era aquilo que fazia sentido, já não digo do ponto de vista jurídico, mas do ponto de vista económico”.
(Audição de João Manso Neto)

Para justificar a vantagem económica da negociação sem concurso, João Manso Neto enunciou na CPIPREPE as quatro opções que o governo teria aquando da cessação dos CAE:

1 - “Realizar concurso em 2007 para todas as centrais para exploração imediata, [o que] implicaria pagar à EDP o valor residual de 1356M€ e valor atual líquido dos lucros cessantes (7982M€) [até ao final do prazo do CAE]”;  2 - “Realizar um concurso em 2007 para exploração das centrais, mas salvaguardando os direitos de exploração até que os CMEC/CAE terminassem, [o que] Implicaria pagar à EDP o valor residual de 1356M€ [com o] inconveniente de estar a pagar, em 2007, por um ativo que só começaria a explorar à medida que os CMEC/CAE fossem cessando”; 3 - Realizar concursos para exploração das centrais à medida que os CMEC/CAE terminassem,[o que] Implicaria pagar à EDP o valor residual de 1356M€” 4 - “Conceder à EDP a exploração das centrais até ao fim da vida útil das mesmas, [em que] o Estado teria um encaixe financeiro de 759M€ e não teria de pagar o valor residual de 1356M€”.

Manso Neto concluiu dizendo que “O governo tomou a opção mais racional e com maiores benefícios para o sistema e para o país”.

Sobre a tradução económica da decisão do governo, Paulo Pinho não é da mesma opinião. Ouvido na CPIPREPE, o ex-administrador da REN não tem dúvidas de que o DL 240/2004 proporcionou à EDP uma opção real muito valiosa, quebrando a neutralidade dos CMEC em relação aos CAE.

“Sou professor de Finanças e uma peça fundamental da teoria financeira são as opções, a avaliação de opções. Estamos aqui a falar daquilo que, em finanças, chamamos opção real. Isto é uma opção real? Uma opção real vale muito dinheiro! O Estado português oferece a um produtor uma opção real muito valiosa a troco de nada. Aí, foi uma das várias áreas onde, para mim, se violou o princípio, que vigorava nos CMEC, de que eles deveriam ser financeiramente neutrais. Não é financeiramente neutral quando alguém me põe uma alínea… aliás, acrescenta lá um texto em que dá essa opção, que é uma opção real, que tem imenso valor. Mesmo que eles não o exercessem mais tarde, o simples facto de lhe ser dado tem um valor financeiro e esse valor não foi tido em conta em nenhum dos cálculos feito posteriormente.”
(Paulo Pinho, ex-assessor do ministro Carlos Tavares e ex-administrador da REN)

O valor estratégico da opção, dada à EDP, de estender a utilização do DPH por mais 25 anos foi realçado por vários depoimentos na CPIPREPE. Para o ex-secretário de estado da energia, a EDP obteve, sem concurso, o monopólio da produção hidroeléctrica em Portugal, que é um bem muito importante para a operação em mercado:

“A concessão do controlo monopolista da capacidade de bombagem, que é um asset que tem um valor incalculável para fazer a arbitragem do sistema e quando há excessos da produção eólica a baixo valor — e, na prática, o Estado passou o monopólio para a EDP — é um valor que não está determinado e que, sob o ponto de vista estratégico, é um valor incalculável.”
(Henrique Gomes, secretário de Estado da Energia 2011-2012)

Em suma, o DL 240/2004 veio fazer depender da vontade da EDP a extensão da concessão do domínio público hídrico em média por mais 25 anos em todas as centrais hidroeléctricas do país. Este novo direito não existia anteriormente nos CAE nem na legislação de 1995. Esta extensão tratou-se de uma decisão clara do governo, introduzida pelo despacho 14315/2003 e consumada no DL 240/2004.

Com esta decisão o governo evitou que o Estado pagasse o valor residual dos equipamentos das centrais, avaliados em 1356M€. Por outro lado perdeu o direito de, através da REN, abrir novos concursos para a exploração dos 26 aproveitamentos hidroelétricos em Portugal, obrigando a que estes ativos ficassem nas mãos de uma única empresa.

Registam-se, portanto, as posições das duas entidades envolvidas no processo: para a EDP, nas palavras de João Manso Neto, a extensão do domínio público hídrico “era aquilo que fazia sentido do ponto de vista económico”; para a REN, nas palavras do seu então presidente, José Penedos, “a extensão do domínio hídrico, da maneira que foi feita, era contra o interesse nacional”.

1.3 Aspetos decorrentes dos acordos de cessação dos CAE

Os acordos de cessação antecipada dos CAE, assinados pela EDP e pela REN e homologados em Fevereiro 2005 pelo Secretário de Estado do Desenvolvimento Económico, Manuel Lencastre, através do despacho nº 4672/2005, vieram estabelecer as condições para a cessação daqueles contratos no processo de transição para os CMEC. Nestas condições foi introduzida uma cláusula suspensiva destes acordos (cláusula 2, alínea b) que obrigava à subconcessão do DPH à EDP até ao fim de vida útil dos equipamentos das centrais hídricas:

“Concessão à Entidade Concessionária da RNT dos direitos de utilização do domínio público hídrico que integre o conjunto dos Centros Electroprodutores, por prazo não inferior ao correspondente à vida útil dos equipamentos e obras de engenharia civil que se encontra indicado no AnexoI-ParteB em relação a cada Centro Electroprodutor e subsequente subconcessão pela Entidade Concessionária da RNT a favor do Produtor dos aludidos direitos de utilização, por prazo idêntico ao daquela concessão.“
(Acordos de cessação dos CAE, cláusula 2, ponto 1-b)

Assim, na prática, esta cláusula suspensiva veio fazer depender a cessação dos CAE e a consequente passagem aos CMEC, da extensão do DPH. Para o então diretor geral da EDP, João Manso Neto, esta cláusula foi introduzida apenas para salvaguardar a opção conferida à EDP pelo DL 240/2004:

“O Decreto-Lei n.º 240/2004 permitia à empresa, aos produtores — neste caso éramos só nós que já tínhamos o hídrico — escolher entre receber o valor residual, ou seja, somar ao valor dos CMEC [o] valor residual, ou optar pela extensão do domínio hídrico. Quando assinámos o acordo de cessação, exercemos a opção: o montante CMEC é de 3300M€ e não 4600M€ porque exercemos a opção.
Portanto, o acordo CMEC nunca podia entrar em vigor sem me regularizarem o domínio hídrico, porque se não me dessem o domínio hídrico, então tinha de ir para os 4,6 – esta é uma razão financeira.
Mas há, também, uma razão mais operacional, que é: «eu preciso de ter o domínio hídrico para operar em mercado». Esta era a direta execução do Decreto-Lei n.º 240/2004: 3,3 mais domínio hídrico, ou 3,3 mais valor residual. Como escolhemos o primeiro, só podemos dar o CAE como morto quando tivermos o resto. Está a ver? Se eu escolhesse um e, depois, não tivesse o resto ficava desequilibrado… É uma condição suspensiva que não podia deixar de existir, face ao teor do Decreto-Lei n.º 240/2004.”

(Audição de João Manso Neto)

Victor Batista, um dos administradores da REN que conduziu o processo por parte da concessionária da RNT, concorda que esta cláusula foi só uma forma da EDP exercer um direito que lhe tinha sido atribuído pela legislação introduzida no ano anterior:

“Nessa condição suspensiva a EDP, no fundo, está a exercer o direito de opção. A opção que lhe foi oferecida ela exerce-a! É a tal opção real. A EDP exerceu esse direito, ou seja, «eu quero continuar». E, portanto, aparece na condição suspensiva.”
(Audição de Victor Batista)

Ouvidas as duas empresas envolvidas na elaboração e assinatura dos acordos de cessação, pode concluir-se que a inclusão da obrigatoriedade de extensão do DPH na cláusula suspensiva dos acordos de cessação dos CAE foi a concretização do novo direito de opção dado à EDP no DL 240/2004. Porém, ao ficar contratualizada, a EDP transformou essa numa condição contratual, que, na prática impunha que não poderia haver cessação do CAE e entrada em vigor do MIBEL sem que o DPH fosse concessionado à REN e subconcessionado à EDP até ao fim do prazo de vida útil dos equipamentos, retirando ao estado a possibilidade de fazer concurso para a exploração dos aproveitamentos hídricos no fim dos CAE.

Na sua Decisão de 2017 relativa ao processo por ajudas de Estado sobre a extensão do domínio hídrico, a Comissão Europeia sublinha este facto:

“(25) Em primeiro lugar, a Comissão observou que a adjudicação da utilização de recursos hídricos públicos em regime de concessão para efeitos de prestação de um serviço num mercado pode não comportar uma vantagem económica para o beneficiário, se a dita concessão for adjudicada no âmbito de um concurso público e não discriminatório em que participe um número suficiente de operadores interessados. No entanto, no caso em apreço, os acordos de cessação dos CAE prolongaram, de facto, por cerca de 25 anos, em média, o direito exclusivo da EDP de explorar as centrais elétricas em causa sem qualquer processo de concurso. Com efeito, a organização de um concurso ficou esvaziada pelas cláusulas suspensivas dos 27 acordos de cessação dos CAE entre a REN e a EDP.
(26) Tendo em conta a significativa parte do mercado português representada pelas centrais elétricas (27 %), a posição da EDP no mercado português de geração e venda por grosso (55 %) e o interesse específico de centrais hidroelétricas numa carteira de produção de eletricidade, a Comissão considerou que essas cláusulas suspensivas podem ter desencadeado um efeito de exclusão do mercado numa base duradoura para a entrada no mercado de potenciais concorrentes que poderiam ter concorrido ao concurso público. Por conseguinte, poderia estabelecer-se uma vantagem económica beneficiando indevidamente a EDP caso o concurso tivesse tido por resultado um preço mais elevado do que o que foi pago pela EDP, líquido do valor residual devido a esta empresa”.

(Decisão da Comissão Europeia sobre a extensão da utilização do DPH, 15 de maio de 2017)

1.4 Negociação e decisões políticas

Como vimos nos dois pontos anteriores, a extensão da concessão do DPH à EDP foi feita em duas fases: 1) o  DL 240/2004 transformou uma opção da REN (estender o DPH ou fazer concurso público) numa opção da EDP; 2) o despacho 4672/2005, do secretário de Estado Manuel Lancastre aprovou os acordos de cessação que continham a cláusula suspensiva que concretiza essa decisão, transformando a extensão do DPH numa condição para a cessação dos CAE e entrada em vigor dos CMEC.

Sobre estes dois momentos legislativos, as opiniões manifestadas na CPIPREPE dividiram-se. Para alguns intervenientes esta foi uma decisão acertada do governo, que impediu o pagamento do valor residual de 1.356M€ estipulado pelos CAE, para outros o Estado quebrou a neutralidade entre os CAE e os CMEC, entregou à EDP um monopólio com enorme valor estratégico e perdeu a possibilidade de fazer um encaixe superior ao valor residual em futuros concursos públicos.

Interessou, por isso, à CPIPREPE averiguar em que moldes foi tomada esta decisão e perceber se ela resultou de um processo negocial entre o governo e a EDP durante a preparação do DL 240/2004. Os principais responsáveis políticos alegaram não se recordar de discussões, decisões ou negociações sobre a extensão do DPH, tanto no processo de preparação do DL 240/2004 como na sua versão final como ainda na preparação dos acordos de cessação dos CAE.

Franquelim Alves, Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Economia, assinou o despacho 14315/2003 onde já se prevê a extensão do domínio hídrico:

“Não tenho memória de qualquer tipo de discussão sobre esse tema nem sequer a noção de que, por via do decreto-lei que estava em discussão, que estava em cima da mesa no meu tempo…”

Carlos Tavares, Ministro da Economia 2002-2004, remeteu a parecer da ERSE e à aprovação pela Comissão Europeia o anteprojeto do que viria a ser o decreto-lei 240/2004 (que já continha sobre esta matéria a formulação que veio a ficar no diploma aprovado):

“Se calhar, não vou corresponder às suas expectativas. Só lhe posso garantir uma coisa: não houve nenhuma negociação comigo sobre esse ponto. (...) Também não lhe sei dizer se esse ponto estava no decreto que foi notificado ou não, mas acredito plenamente… De facto, não foi ponto de que eu tivesse tratado explicitamente”.

Manuel Lancastre, Secretário de Estado do Desenvolvimento Económico 2004-2005, assinou o despacho 4672/2005 que homologa os Acordos de Cessação dos CAE, onde figura como cláusula suspensiva da cessação a extensão do DPH:

“Se me lembro de ter negociado e discutido essa questão da concessão para além dos prazos com a REN e com a EDP? A resposta é não”.

Quanto aos principais responsáveis da EDP ouvidos na CPIPREPE fizeram declarações contraditórias.

Por um lado, o presidente executivo da empresa à data, João Talone, e o administrador responsável pelo processo negocial do DL 240/2004, Pedro Rezende, afirmaram que não houve quaisquer abordagem da EDP junto do governo sobre a extensão do DPH e que esse tema não foi uma preocupação nas negociações em 2004 sobre a transição dos CAE para os CMEC.

Pedro Rezende, vice-presidente da Boston Consulting Group 1990-2003, administrador da EDP 2003-2006, assinou pela empresa os acordos de cessação dos CAE:

“Enquanto estive na EDP o assunto da extensão do domínio hídrico não foi negociado com o Estado, não foi negociado pelo Estado, não foi tratado. (...) Lamento imenso dizer-lhe que não recordo que houvesse essa condição suspensiva nos contratos”.

João Talone, presidente-executivo da EDP 2003-2006 na preparação do DL 240/2005 e na assinatura dos acordos de cessação dos CAE:

“Aquilo de que me lembro é que, no decreto-lei de 2004, estava previsto que, no fim da concessão do domínio hídrico, a concessão revertia para o Estado e o Estado tinha de pagar os ativos ao operador. (...) Mas não me lembro, sequer, que isso tenha sido tema enquanto estive na EDP.”

Por outro lado, o atual presidente executivo da EDP, António Mexia, não tem dúvidas que a empresa impôs a extensão do DPH como condição para aceitar a transição para os CMEC. Já João Manso Neto afirma que a extensão do DPH foi uma opção do governo.

“Nesta altura a EDP manifestou-se no sentido de condicionar a cessação antecipada dos seus CAE à extensão do DPH. (...) [Os administradores da EDP] punham a condição A, B, C, D, entre as quais estava a extensão do domínio hídrico. Gostava que ficasse claro que em 2003 e 2004 houve muito envolvimento”.
(António Mexia)

“O Estado optou, em 2003 e, depois, em 2004, pela solução mais fácil, o ajuste direto… (...) Neste caso do domínio hídrico, estávamos a falar da substituição de CAE por CMEC. Se querem acabar com os contratos é conveniente que estejamos de acordo.”
(João Manso Neto, director-geral e administrador da EDP 2003-2015, atual presidente da EDP Renováveis)

Para provar o empenho da EDP já em 2004 na negociação da extensão do DPH, António Mexia remeteu à CPIPREPE uma carta enviada pelo Conselho de Administração da empresa ao secretário de Estado do Desenvolvimento Económico, Manuel Lancastre no final de 2004, no final do processo de negociação do que viria a ser o DL 240/2004.

No último ponto, o Conselho de Administração da EDP alerta o governo para a necessidade de garantir que a concessão do DPH seja feita à REN, porque só assim ficaria assegurada a extensão do DPH prevista no artigo 4º (ponto 1 alínea vii) do projecto de lei.

“É fundamental para assegurar a atribuição do montante dos CMEC resultante do artigo 4º do Decreto-Lei que os prazos das sub-concessões a atribuir aos produtores titulares de centros hidroeléctricos correspondam, no mínimo, aos períodos de vida útil dos equipamentos de construção civil e engenharia mecânica. Neste momento, face à inexecução do artigo 2º do Decreto-Lei 153/2004, de 30 de Junho, torna-se essencial a adopção de medidas que assegurem a atribuição das concessões à entidade concessionária da RNT em consonância com os prazos acima referidos, embora não prejudicando a celeridade e oportunidade do presente processo legislativo.”
(Pedro Rezende, Carta CA da EDP, 10 de novembro de 2004)

“Os serviços competentes do Ministério das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente devem celebrar os respectivos contratos [de concessão do domínio hídrico] com a entidade concessionária da RNT no prazo de 120 dias a contar da publicação do presente diploma, devendo constar dos mesmos a possibilidade de subconcessão a favor dos respectivos produtores hidroeléctricos”.
(Decreto-Lei 153/2004, de 30 de Junho, artigo 2º, número 2)

Esta carta prova que em 2004 houve uma primeira negociação entre a EDP e o governo sobre a extensão do DPH. A preocupação da EDP era garantir que a lei sobre domínio hídrico em vigor não impediria a extensão do DPH prevista no novo DL 240/2004. Em particular, Pedro Rezende quer assegurar que os prazos de concessão do Estado à REN são compatíveis com a extensão da subconcessão à EDP, prevista no artigo 4º do DL. Esta garantia é contratualizada através da inclusão da respetiva cláusula suspensiva nos acordos de cessação dos CAE que Manuel Lencastre homologaria:

“Concessão à Entidade Concessionária da RNT dos direitos de utilização do domínio público hídrico que integre o conjunto dos Centros Electroprodutores, por prazo não inferior ao correspondente à vida útil dos equipamentos e obras de engenharia civil [...] e subsequente subconcessão pela Entidade Concessionária da RNT a favor do Produtor dos aludidos direitos de utilização, por prazo idêntico ao daquela concessão”.

2. O processo de concessão do domínio hídrico

2.1 Regulamentação da Lei da Água

No final do governo Santana Lopes, estava em finalização a futura Lei 58/2005, aprovada pela Assembleia da República já no período do governo Sócrates. A Lei da Água determina que a concessão da utilização do domínio público hídrico é atribuída mediante concurso público, cabendo ao governo aprovar decretos-leis complementares que regulem a utilização de recursos hídricos e o respetivo regime económico e financeiro. Em finais de 2006 e início de 2007, a aplicação concreta da nova lei será objeto de uma divergência de posições entre os titulares das pastas governativas do Ambiente e da Economia.

Em maio de 2006, o presidente do Instituto da Água (INAG), Orlando Borges, remete ao Ministro do Ambiente o projeto de decreto-lei de regulamentação da Lei da Água, cuja preparação coordenou. Entre outras definições, esta proposta determinava que, finda a vigência dos CAE das centrais hidroelétricas, a concessão do domínio hídrico dependeria da realização de concurso público, tal como indicado na Lei da Água.

Paralelamente a este processo e sem a participação do Ministério do Ambiente, o Ministério da Economia inicia, em outubro de 2006, o processo de atribuição à EDP, de modo imediato, urgente e sem concurso, da extensão da concessão do domínio hídrico, como forma de incorporar uma receita extraordinária que contribuísse fazer face aos aumentos de tarifa previstos pela ERSE para 2007 (ver mais sobre este processo no capítulo dívida tarifária).

É neste momento que, no quadro do percurso legislativo do projeto de decreto regulamentar da Lei da Água preparado pelo INAG, o Ministério da Economia entende propor-lhe um conjunto de alterações.

As objeções do Ministério da Economia e Inovação (MEI) são apresentadas num memorando interno do governo designado “Análise da proposta de diploma do MAOTDR para a regulamentação da Lei da Água”. As principais objeções do MEI são 1) a existência de risco de redução da margem de manobra negocial para a extinção antecipada dos CAE e, consequentemente, para a obtenção de contrapartidas económicas para reduzir os esperados aumentos da tarifa; 2) a imposição de taxas de utilização de água ou rendas, com impacto no aumento das tarifas. Em consequência, o MEI propõe, entre outras, 1) a prorrogação das concessões do domínio hídrico das centrais com CAE (“em resolução do Conselho de Ministros sob proposta do MEI”); 2) a isenção do pagamento de taxas por utilização de água.

Em nome do INAG, Orlando Borges remete a 21 de novembro de 2006 ao ministro do Ambiente, Nunes Correia, uma crítica das propostas de alteração feitas pelo MEI. Nesse parecer, Orlando Borges refere que as propostas do MEI “beneficiam claramente um sector de actividade [o da produção de energia] em detrimento de outros”. Um exemplo de alegado favorecimento ao setor eléctrico seria a proposta de isenção de pagamento da taxa de recursos hídricos, “isenção contrária ao espírito da Lei da Água”. O INAG criticava ainda o papel que o MEI pretendia atribuir à Direção-geral de Energia e Geologia na gestão dos recursos hídricos utilizados na produção eléctrica, sendo um dos exemplos o facto de se pretender que passasse a ser a DGEG a tomar a posse administrativa dos bens e a geri-los, em caso de reversão para o Estado.

Não me recordo dessa carta. Se os Srs. Deputados têm cópia dela, teria muito gosto em lê-la. Não me recordo dessa carta. Não disse que ela não existiu, disse que não me recordo dessa carta. E, 12 anos depois, vir dizer que alguém escreveu uma carta a alguém… Bom, onde está a carta?! Quero vê-la! Não me recordo dela!
(Nunes Correia, ministro do Ambiente 2005-2009)

Perante o parecer do INAG, o MAOTDR recusa as propostas da Economia e Tiago D’Alte, adjunto do ministro Nunes Correia, responde sucintamente ao gabinete de Manuel Pinho apontando falhas de legalidade/constitucionalidade nas propostas do MEI.

Na sequência destes factos, o secretário de Estado com a pasta da Energia, Castro Guerra, encomenda um conjunto de pareceres jurídicos sobre a legalidade/constitucionalidade das propostas do MEI.

Num primeiro momento, ainda em novembro de 2006, Castro Guerra recebe da EDP um parecer de Pedro Gonçalves (MLGTS & Associados) a dar suporte às propostas do MEI.

Ao mesmo tempo, o secretário de Estado pede a Freitas do Amaral um parecer sobre o mesmo assunto. Este não se pronuncia sobre se alguma das alterações propostas é incompatível com legislação comunitária (porque “não me foi pedido e por falta de tempo”), limitando-se a recomendar que, para cumprir o artigo 165º da Constituição, o Decreto-Lei alterado pelo MEI seja enquadrado por autorização legislativa da Assembleia da República, “por causa do encargo especial a exigir aos beneficiários de prorrogações de concessões”.

Na CPIPREPE, Orlando Borges resumiu esta fase do processo da seguinte forma:

“Estávamos ali a criar um problema e a única forma que encontraram, nomeadamente do ponto de vista da legalidade, para ultrapassar esse problema foi pedir uma autorização legislativa e fazer aquilo que, no âmbito do regulamento e da proposta de decreto-lei que era apresentado, não podiam ou não tinham condições de fazer. (...) A autorização legislativa desta Assembleia da República, a Lei n.º 13/2007, introduziu duas situações que não estavam previstas na Lei da Água. A alínea h), que dizia: «a possibilidade de prorrogação, por uma única vez», e depois definia o prazo —, e a alínea o), feita justamente com este objetivo, que pedia autorização legislativa à Assembleia da República para definir «um regime especial de regularização de atribuição de títulos de utilização dos recursos hídricos às empresas titulares de centros electroprodutores, prevendo a possibilidade de continuação de utilização dos recursos hídricos mediante a celebração de um contrato de concessão no prazo de dois anos». Ou seja, com este respaldo, utilizando uma linguagem jurídica, o Decreto-Lei n.º 226-A/2007 introduziu objetivamente dois ou três artigos”.

O pedido de autorização legislativa é aprovado pelo Parlamento a 8 de fevereiro de 2007.

Castro Guerra solicita novos pareceres jurídicos aos advogados Rui Pena (RPA Associados) e António Vitorino e Duarte Abecasis (sociedade Gonçalves Pereira), não só sobre as alterações pretendidas pelo MEI ao projeto inicial, mas também já sobre os termos a adotar na futura portaria conjunta MEI/MAOTDR que fixará o valor a pagar pela EDP e ainda sobre a modalidade de incorporação desse valor na tarifa da eletricidade.

Em fevereiro de 2007, a finalização do decreto-lei passa a estar a cargo exclusivo do Ministério da Economia. A 15 desse mês  fevereiro, a resolução do Conselho de Ministros 50/2007 incumbe o MEI da “prossecução das acções necessárias para a concretização das orientações constantes da presente resolução”, embora o DL 226-A/2006 seja atribuído da iniciativa do MAOTDR e o despacho que, em agosto, fixa o valor do equilíbrio económico-financeiro seja assinado conjuntamente pelo Ministro Manuel Pinho e pelo ministro Nunes Correia.

É nesse momento que Manuel Pinho torna pública a decisão de extensão do domínio hídrico (e também o ajuste direto empreendimento de fins múltiplos de Alqueva à EDP). No entanto, os valores não são divulgados por Manuel Pinho, que refere apenas “várias centenas de milhões de euros”. De acordo com o jornal Público de 16 de fevereiro, o governo iria ainda pedir estudos, mas toda a imprensa noticia 800 milhões de euros e as ações da EDP em bolsa atingem máximos desde 1999. Nesse mesmo dia 16, João Manso Neto envia informação por email a Miguel Viana, do BESI, que produz uma nota de research confirmando o valor da imprensa como a expectativa da EDP: 700 a 800 milhões de euros. Pouco tempo depois, Viana torna-se responsável da EDP pelas relações com investidores.

A versão final do DL 226-A/2007 consagrou a possibilidade de uma extensão adicional do período da utilização do domínio hídrico - para além daquela que foi avaliada, tanto pela REN como pelas entidades bancárias - no caso da realização de investimentos não previstos no contrato de concessão. Por outro lado, é previsto o pagamento pela EDP de um valor de equilíbrio económico-financeiro:

“1 - Com o termo da concessão e sem prejuízo do disposto no respectivo contrato, revertem gratuitamente para o Estado os bens e meios àquela directamente afectos, as obras executadas e as instalações construídas no âmbito da concessão, nos termos do disposto no artigo seguinte.
2 - No termo do prazo fixado, quando o titular da concessão tenha realizado investimentos adicionais aos inicialmente previstos no contrato de concessão devidamente autorizados pela autoridade competente e se demonstre que os mesmos não foram ainda nem teriam podido ser recuperados, esta entidade pode optar por reembolsar o titular do valor não recuperado ou, excepcionalmente e por uma única vez, prorrogar a concessão pelo prazo necessário a permitir a recuperação dos investimentos, não podendo em caso algum o prazo total exceder 75 anos.”

(DL 226-A/2007, Artigo 35.º Termo da concessão)

“1 - A entidade concessionária da RNT e as empresas titulares dos centros electroprodutores (...) poderão continuar a utilizar os recursos hídricos atrás referidos através de outorga de contrato de concessão a celebrar entre o Estado e a entidade concessionária da RNT, a ocorrer no prazo máximo de dois anos a contar da data de entrada em vigor do presente decreto-lei, podendo aquela transmitir os correspondentes direitos às referidas empresas titulares dos centros electroprodutores. (...)
6 - A transmissão dos direitos de utilização do domínio hídrico a favor das empresas titulares dos centros electroprodutores a que se refere o nº 1 fica sujeita ao pagamento de um valor de equilíbrio económico-financeiro”.

(DL 226-A/2007, Artigo 91.º Regularização da atribuição de títulos de utilização às empresas titulares de centros electroprodutores)

No ministério, a passagem da tutela da energia de Castro Guerra para Manuel Pinho é sinalizada em maio com o saída do gabinete do Secretário de Estado da equipa de assessores para a área da energia.

2.2 A omissão da medida perante a Comissão Europeia

Depois do atos legislativos e de governo de 2003 e 2004, discutidos nos pontos anteriores - , que permitia a extensão sem concurso da concessão do DPH às barragens da EDP até ao fim de vida dos equipamentos, era necessário encontrar um método de fixação de uma compensação económica ao sistema elétrico por concessão. Este assunto foi alvo de reuniões durante o ano de 2006 entre a EDP e a REN com o objectivo de fixar esse método e calcular um valor a pagar pela EDP por essa concessão.

Em 2006, na preparação da entrada em vigor do regime CMEC, foi identificada a necessidade de rever a estimativa do preço médio de mercado feita no DL 240/2004 para o período CMEC, de 36€/MWh para 50€/MWh. Esta alteração era neutra quanto à remuneração, apenas alterando a sua repartição entre parcela fixa e parcela de ajustamento, e a posteriori é possível constatar que se revelou correta, por mais aproximada aos valores verificados no mercado grossista.

Se era neutra no caso dos CMEC, ela era importante no caso da extensão do domínio hídrico, visto que o aumento do valor estimado para a exploração vinha afetar a disposição do DL 240/2004 que previa, para a extensão da concessão, a dedução do valor residual ao CMEC a receber pela EDP. Esses cálculos foram realizados, da forma que se analisa mais à frente neste relatório.

Mas esta alteração ao auxílio de Estado CMEC implicava, nos termos da Decisão da CE de 2004, uma notificação à Comissão. Este facto, atendendo à documentação dada a conhecer pela Procuradoria Geral da República, gerava grande preocupação no governo e na EDP. Em parecer jurídico, António Vitorino sugere a realização de uma notificação informal à CE sobre os dois temas, preços de referência e extensão do domínio hídrico.

A opção por esta informalidade é resultado de uma preocupação expressada no memorando enviado por António Mexia ao ministro Manuel Pinho, depois de preparado por João Manso Neto com conhecimento prévio a Rui Cartaxo, assessor do ministro, que terá concordado.

Nesse memorando, escreve o presidente da EDP ao ministro:

“3. O risco que pode haver é que, sob o pretexto dessa confirmação [pela Comissão] da análise [do governo] sobre a pertinência e neutralidade desta alteração [da previsão de preço de mercado], a Comissão Europeia ter a tentação de rever o dossier, o que poderia bloquear o processo.
4. Daí que sugeria que se evitasse uma reapreciação técnica do assunto e que, pelo contrário, falasses com a Comissária [da Concorrência, Nelie Kroes] no sentido de lhe voltar a explicar o que se pretende e a simplicidade do que está em causa. Se sentires que não é viável obter um acordo informal com base nessas explicações, a melhor solução para evitar o riscos referidos em 3, será avançar com a implementação dos CMEC’s nos termos em que está o DL (...).
5. Naturalmente que a manutenção do preço de referência de 36 no período de revisibilidade não teria qualquer efeito na avaliação da extensão do domínio hídrico, que continuaria a ser calculada com base em preços futuros reais de EUR 50 MWh".

Manuel Pinho acabará por realizar uma comunicação informal sobre a alteração do preço de referência, sem objeções da parte da Comissão. Quanto à extensão da concessão do domínio hídrico, o conselho de António Vitorino não foi seguido - a medida, que implicou um pagamento que o DL 240/2004 não previa, só veio a ser do conhecimento formal da Comissão Europeia em agosto de 2012, através da queixa apresentada por um conjunto de cidadãos acerca dos auxílios de Estado pagos à EDP sob a vigência do Decreto-Lei 240/2004 e por via da atribuição da utilização do domínio hídrico em 2007.

2.3 Cálculo do valor residual e da extensão da utilização do domínio hídrico

A avaliação era particularmente complexa, dado que implicava avaliar, em 2007, o valor atual do valor residual no termo dos CAE/CMEC (entre 2013 e 2027) e o valor económico da exploração das centrais entre o termo que estava previsto para os CAE e o fim da vida útil das centrais hidroelétricas CMEC (entre 2032 e 2053). Para o período tão longo da avaliação foram necessários pressupostos simplificadores em relação a taxas de desconto e preços de mercado futuros.

De acordo com a documentação a que a CPIPREPE teve acesso, até novembro de 2006, a EDP e a REN estiveram de acordo sobre o método de cálculo para avaliação da extensão do DPH. Porém, pouco tempo mais tarde, a EDP comunicou ao governo a discordância das contas apresentadas no grupo de trabalho conjunto com a REN, sugerindo novos pressupostos no método de cálculo, mais concretamente a consideração de taxas de actualização distintas para o valor dos equipamentos e para os cash flows. Essa mudança de posição é analisada em detalhe no ponto seguinte.

No início de 2007, a DGEG e o gabinete do ministro pediram novos cálculos à REN, que, aceitando apresentar outros cenários, continuou a defender a utilização de apenas uma taxa de atualização para as duas componentes do cálculo. Em face do diferendo sobre os pressupostos a utilizar, a tutela encomendou uma avaliação externa a duas entidades diferentes: Caixa BI e Credit Suisse. A EDP conhece as entidades bancárias escolhidas desde antes de 8 de janeiro, data em que o administrador Manso Neto envia a António Mexia a seguinte nota, constante do processo judicial 184/12.STELSB:

“Falei hoje com RC [Rui Cartaxo, assessor de Manuel Pinho] que disse que já havia falado com a CGD e a CSFB para os contratar para fazerem a avaliação do DH [domínio hídrico] em semanas. Confirmou-me ter lido os documentos que lhe enviei”.

O resultado destas avaliações acabou por estar em linha com a segunda posição da EDP, considerando duas taxas de desconto. Curiosamente, a decisão formal de contratar estas entidades é do Conselho de Ministros de 15 de fevereiro, quando já estavam entregues as conclusões de pelo menos uma das avaliações (a da Caixa BI), estando a outra datada do dia seguinte à reunião do Conselho de Ministros. Estas avaliações foram a base para a fixação do valor de 759 M€, através do despacho 16982/2007, assinado em agosto pelos Ministros do Ambiente e da Economia e Inovação, Nunes Correia e Manuel Pinho, respetivamente.

Dada a discrepância entre o valor decidido pelo governo e o apresentado pela REN na sua avaliação (1150M€), uma parte dos trabalhos da CPIPREPE debruçou-se sobre este processo, desde o consenso entre EDP e REN até à mudança de posição da EDP em novembro de 2006 e ainda à assinatura do despacho 16982/2007. Foram ouvidos os principais argumentos a favor e contra a utilização das duas taxas, bem como a justificação dos principais intervenientes na condução do processo por parte do Governo, EDP e REN.

2.4 Mudança de posição da EDP

A 13 de Novembro de 2006, João Manso Neto envia a António Castro Guerra, Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Economia e Inovação, os cálculos da EDP relativos à valorização da extensão do DPH. No e-mail, o administrador refere que estes “ainda são só valores da EDP” e que ainda falta trabalhar com a REN para chegar a valores finais. O valor apresentado considera apenas a taxa WACC 6.6% e apresenta um valor residual do total dos aproveitamentos hídricos de 1051M€.
 
No dia seguinte à EDP enviar estes valores ao governo, circula no conselho de administração da REN uma versão dos mesmos cálculos feita pela equipa da concessionária da RNT. Este documento, enviado a 5 de dezembro por Francisco Saraiva a José Penedos, Victor Batista e Paulo Pinho usa a mesma taxa WACC da EDP e chega a valores, “consolidados com a EDP” de 1045M€.
 
Assim, a 5 de dezembro, a REN ainda julga haver um consenso com a EDP sobre o valor residual a descontar no pagamento da EDP pela extensão do DPH até ao fim de vida útil dos equipamentos. Todavia, uma semana antes, a 30 de novembro, uma nova posição da EDP já tinha sido remetida ao Secretário de Estado Castro Guerra, incluindo taxas diferenciadas (4.7% para a atualização do valor residual e várias superiores para os cashflows futuros).

No início de dezembro, o presidente da DGEG, Miguel Barreto, envia um e-mail à REN a pedir mais simulações relativas a este cálculo, utilizando uma taxa de 4.13% em vez da WACC da EDP de 6.6%. A razão para este pedido é explicada pelo próprio Miguel Barreto na CPIPREPE:
 
“No final de novembro ou logo no início de dezembro, não consigo precisar, foi-me transmitido que a EDP e a REN não tinham conseguido convergir nas suas posições. Tudo tinha que ver com o valor residual.
Surgiram, concretamente, várias questões mas aquela que, de alguma maneira, se tem destacado foi a seguinte: a EDP entendia que o valor residual era um direito seu na compensação relativa aos CAE, cuja taxa de atualização já estava definida no Decreto-Lei n.º 240/2004, e que apenas os cashflows, após o CAE, deveriam ser considerados para valorizar a extensão; a REN defendia que o valor residual era como um investimento que o Estado fazia para viabilizar a extensão e que ambos, valor residual e cashflows futuros, deviam ser avaliados com a mesma taxa, como se de um projeto único se tratasse. (...) É nesta altura que me é solicitado que interaja com a REN, no sentido de fornecer ao Governo uma comparação das duas posições, utilizando um modelo do Estado, que era o da REN. Depois de várias interações, finalmente recebi uma tabela que compara de forma correta as duas abordagens, com várias taxas de desconto — aliás, julgo que a tabela foi ontem aqui mostrada pelo Dr. Rui Cartaxo —, que reencaminhei ao Governo em janeiro e, a partir daí, nada mais tive que ver com o tema de extensão do domínio hídrico.”

(Audição Miguel Barreto)

Victor Batista, o administrador que conduziu o processo do lado da REN, diz não conhecer divergências anteriores com a EDP quanto às taxas a utilizar no cálculo do valor residual. Até ao pedido de Miguel Barreto, a REN acreditava que havia acordo e nunca recebera informação contrária da EDP:

“Eu tinha a informação interna de que havia acordo e, às tantas, recebi um telefonema da Direção-Geral de Energia a pedir algo que fugia ao acordo que a equipa interna da REN me tinha transmitido e, como não tinha nenhum telefonema, quer do Dr. Manso Neto ou de alguém da EDP para me dizerem alguma coisa, achei aquilo muito estranho e tentei combater e defender a ideia da REN durante cerca de um mês, mas o resultado é que não fui bem-sucedido, mas, pronto.”
(Audição de Victor Batista)

João Manso Neto, na CPIPREPE, afirma que a ideia da EDP não era a de utilizar a taxa de 6,6% para o cálculo do valor residual e que o primeiro e-mail enviado ao secretário de Estado foi um erro. Realça que o erro foi corrigido poucos dias depois e os novos valores enviados ao secretário de Estado:

“A nível das taxas de juro, não houve discussão com a REN. Não houve! Se está aí dito é porque foi uma imprecisão minha.
Agora também reconheço, eu erro muitas vezes na vida. As simulações que mandei ao Sr. Secretário de Estado, a 13 de novembro, tinham um erro, que, na altura, lhe expliquei.
Agora, perguntam-me assim: «Mas como é que estes indivíduos mandam uma coisa errada?!». Sabe porquê? É porque tínhamos uma relação muito transparente — não é promíscua, é transparente! —, porque todos queríamos chegar ao mesmo sítio.
[…] As simulações que foram entregues no dia 13 de novembro estavam erradas, como concluí pouco dias depois, porque havia um problema nas taxas, daí que, no final do mês de novembro — penso que isso também consta de vários documentos —, já estavam certos.”

(Audição João Manso Neto)

Assim, ouvidos todos os intervenientes, podemos concluir que, durante o mês de novembro de 2006, houve uma mudança de posição formal da EDP quanto ao método a taxa a utilizar no valor residual do cálculo da extensão do DPH. Não foi possível esclarecer a razão pela qual essa mudança de posição não foi comunicada diretamente à REN nas equipas de trabalho conjuntas, mas sim diretamente ao governo e à DGEG, que mais tarde informaram a REN da posição da EDP.
 
Após receber esta informação, Victor Batista, em janeiro de 2007 envia à DGEG as simulações pedidas e ao secretário de Estado Castro Guerra os cálculos da REN, onde inclui uma nota sobre a diferença de posições da EDP e REN, quantificada em 400 M€:

"Em resumo, existem dois pontos de vista em confronto: um, defendido pela REN, que o Valor Residual deverá ser descontado à taxa WACC do Produtor uma vez que se trata de uma parcela de investimento necessário à extensão da vida útil do centro hidroeléctrico até ao termo do título de domínio público; outro, defendido pelo Produtor, que o valor residual deverá ser descontado à taxa definida pelo DL 240/2004 na medida em que foi assim considerado na altura e, portanto, consitui um custo já assumido pelo mercado, pelo que não será razoável descontá-lo a outra taxa modificando o seu valor. De notar que as duas taxas de desconto levam a uma diferença de cerca de 400 M€.”
(Nota “CMEC”, enviada por Victor Batista a Castro Guerra em janeiro de 2007)

2.5  Decisão do Governo

Do lado do Governo, o processo foi conduzido no gabinete do ministro da Economia por Rui Cartaxo assessor no Ministério da Economia. Rui Cartaxo diz ter tido conhecimento da posição da EDP através de um estudo que a empresa encomendou à Rothschild e enviou ao Ministério. Quanto à posição da REN, Rui Cartaxo diz ter tido conhecimento dos cálculos enviados por Victor Batista que mais tarde lhe foram entregues por Maria de Lurdes Baía:

“Eu tive conhecimento deste documento por via do Ministério da Economia, e, poucos dias depois, também tive conhecimento por uma técnica da REN, que se deslocou expressamente ao Ministério da Economia e que mo entregou. (...) Na conclusão desse documento da REN diz-se o seguinte: «Para os pressupostos assumidos, o custo de capital da EDP após impostos varia entre 6,2% e 7,1%. Em termos médios, esse valor será de cerca de 6,6%»”.
 (Audição Rui Cartaxo)

Rui Cartaxo afirma que perante a diferença de posições entre a REN e a EDP sobre o valor da extensão do DPH, a decisão do ministério foi a de pedir dois estudos independentes e, com base neles, fixar o valor por despacho:

“Foi decidido, então, pela equipa do ministério que fossem pedidas avaliações independentes a duas instituições financeiras de primeira linha, missão que veio a recair sobre o Caixa Banco de Investimento e o Credit Suisse First Boston. Com base nessas duas avaliações, o Governo veio a fixar o valor da extensão a pagar pela EDP, por despacho de 15 de junho de 2007, cerca de três meses depois de ter cessado funções no Ministério”.
(Audição Rui Cartaxo)

Os estudos das duas entidades chegaram ao Ministério em poucas semanas. O Caixa BI avalia extensão da concessão do DPH em 650 a 750 M€; o Credit Suisse em 704M€. Ambos utilizam abordagens próximas da defendida pela EDP quanto à taxa a utilizar no cálculo do valor residual.  Na CPIPREPE foram levantadas dúvidas quanto ao curto tempo que estes bancos levaram a produzir os estudos, uma vez que equipas da REN e da EDP demoraram vários meses a fazer o mesmo tipo de exercício. Rui Cartaxo esclarece e diz não ter dúvidas que os dois bancos utilizaram a informação de base que estava no estudo da REN entregue por Maria de Lurdes Baía:

Se foi entregue ou não o modelo da REN aos bancos. Bom, não lhe sei responder com precisão se foi dada essa tal pen ou se foi dado o que lá estava, mas há uma coisa que sei: os bancos receberam essa informação da REN. Ela era oriunda da REN. Digo isto, primeiro, porque os próprios bancos dizem isso nos seus relatórios. Eu não tenho comigo a versão final dos relatórios dos bancos — bem que a procurei, mas não tenho —, mas tive acesso a documentos do processo, em que está claramente escrito que esses elementos foram recebidos da REN.”
 (Audição Rui Cartaxo)

Assim, do depoimento de Rui Cartaxo conclui-se que o governo, perante uma diferença de posição metodológica entre a EDP e a REN quanto às taxas a utilizar no cálculo da extensão do DPH, decidiu fixar o valor com base em dois estudos pedidos propositadamente para o efeito. Estes estudos tiveram por base os mesmos pressupostos dos cálculos da REN, mas utilizaram uma metodologia próxima da defendida pela EDP.

2.6 A utilização de duas taxas

Na CPIPREPE foram apresentados argumentos contrários, defendendo as posições da EDP e da REN quanto à taxa a utilizar no cálculo do valor residual. Parte de este debate repete os mesmos argumentos sobre utilização de uma ou duas taxas no cálculo dos CMEC.

Maria de Lurdes Baía defende que a avaliação da extensão do DPH tem de ser olhada como um projeto de investimento, que tem sempre o mesmo nível de risco e, portanto, terá sempre de ser calculado com uma só taxa:

“Numa análise de rendibilidade de um projeto de investimento, vamos determinar se aquele projeto assegura a remuneração e a recuperação do investimento e ainda aferir se há um excedente económico, que, neste caso, e tendo em consideração este critério de avaliação, será o aval do projeto. Ou seja, vamos determinar se aqueles fluxos anuais de receitas e de custos operacionais conseguem fazer face ao investimento e ainda assegurar um excedente e, portanto, o próprio critério de avaliação do projeto tem intrínseca a ligação entre o investimento inicial e os fluxos anuais, uma coisa não está dissociada da outra, não pode, pois têm o mesmo nível de risco. Estou a falar de um projeto que tem o mesmo nível de risco.
O custo de capital que vou utilizar para atualizar todos os fluxos do projeto, tem de refletir o risco daquele projeto e aí podemos entrar aqui em debates, mas será que os 6,6% era o valor correto? Será que os 7,8% ou coisa que o valha — sobre o qual li algures que foi considerado pelas entidades financeiras —, será que era um valor mais adequado? Eu aí aceito este tipo de discussão. Portanto, ok, estamos a falar de valores de custos médios ponderados de capital diferente aplicado aos mesmos fluxos. Eu aí aceito a discussão. Mas, pegar num investimento inicial e atualizá-lo a uma taxa e depois pegar nos fluxos anuais, que vão determinar…? São esses fluxos anuais que vão determinar a recuperação e a remuneração do meu investimento e se há ou não lugar a excedente, e atualizá-lo a uma taxa diferente? Isso para mim não faz qualquer sentido, não encontro o racional para justificar essa opção.”

 (Audição Maria de Lurdes Baía)

A Comissão Europeia, em linha com as alegações da EDP, vem defende o cálculo com duas taxas. No documento de decisão final relativo à queixa apresentada a Comissão conclui que a metodologia utilizada pela REN não constitui uma prática de mercado.

“[A utilização de duas taxas de desconto] é justificada pelo maior risco operacional num contexto de mercado liberalizado, pela realização do mercado ibérico de energia, pelo desenvolvimento de um mercado da energia mais integrado a nível europeu, o que implica, no seu conjunto, mais incertezas sobre a geração de liquidez”.
 
“[Quanto à utilização de uma só taxa,] a metodologia da REN não constitui uma prática de mercado”
 
(Decisão da Comissão Europeia, 15 de maio de 2017)

Já João Manso Neto realça a forma consensual como todos os estudos aplicam taxas diferentes para o cálculo do valor residual e dos cash flows, excepto o estudo da REN:

“Chegamos às taxas de desconto. E aqui no slide 21 apresento as taxas de desconto dos assessores do Governo, as taxas de desconto dos nossos assessores e aquilo que os órgãos sociais da EDP quiseram, na altura. Como vêem, tudo isto anda à volta dos 700, 670, 800 e tal milhões. Tudo anda à volta das mesmas taxas; só uma é que está fora destes valores: a taxa de cálculo da REN. Não temos divergência nenhuma com a REN quanto aos fluxos futuros, aos pagamentos, às vendas, a quanto é que se produz; agora, quanto à taxa de desconto em mercado e ao domínio hídrico, não podemos estar de acordo, aliás, mais ninguém está de acordo, porque riscos diferentes não podem ter a mesma taxa”
(Audição João Manso Neto)

Rui Cartaxo partilha da opinião da EDP. Por se tratar de riscos diferentes devem ser aplicadas duas taxas. Porém, Cartaxo não tem a certeza que a diferença entre taxas deva ser tão elevada.

“Sobre esse tema, tenho a minha opinião e já a referi aqui. Acho que deveria haver duas taxas, porque os riscos eram, efetivamente, diferentes. Não sei se as diferenças deveriam ser aquelas que foram. Não me pronuncio sobre isso. Mas tenho uma ideia bastante clara na minha cabeça de que deveria haver duas”.
(Audição Rui Cartaxo)

Idêntica opinião tem Vitor Santos, que naquele ano assumiu a presidência da ERSE. Embora aceite a utilização das duas taxas, discorda da desproporção verificada entre elas:

“Não nos parece que esta desproporção existente entre as duas taxas tivesse de ser aquela que foi aqui utilizada. Porventura, poderia haver uma solução intermédia entre o valor estimado pela REN e o valor estimado pelas duas casas de investimento, que resultasse das taxas que foram propostas pelas duas casas de investimento.”
(Audição de Vítor Santos)

Já Victor Batista, ainda hoje acredita que o correto seria utilizar a metodologia defendida pela REN e que a fixação do valor da extensão do DPH foi uma decisão política:

Ou seja, ainda hoje estou convencido de que o critério, na altura, efendido pela REN é que deveria ter sido aplicado, mas houve outra decisão e tenho de a aceitar. Mas ainda hoje defendo isso! No entanto, devo dizer-lhe que é uma opinião muito técnica e não tenho uma informação mais vasta da «floresta», como têm os membros do Governo que olham para a economia no geral e que tem relações com outros Estados.
(Audição de Victor Batista)

A utilização de duas taxas é hoje validada por várias opiniões técnicas e pareceres, incluindo o da Comissão Europeia, cuja decisão valida a metodologia utilizada nos dois estudos realizados por entidades bancárias contratadas pelo governo, rejeitando a metodologia preconizada pela REN por alegadamente não constituir uma prática de mercado.

2.7 O valor estratégico da extensão e a não consideração, na sua avaliação, dos futuros ganhos em serviços de sistema

Finalmente, o último aspeto discutido no cálculo da extensão do DPH foram as eventuais limitações da Metodologia para, em 2007, projetar os rendimentos das centrais hidroelétricas em mercado no período entre o fim dos CMEC e o fim de vida útil dos equipamentos. O valor médio de mercado considerado para o cálculo da extensão foi de 50€/MWh e a sua utilização em 2007 não foi alvo de discussão na CPIPREPE. Porém, passados 10 anos da decisão, é possível aferir com maior precisão se este pressuposto da metodologia de cálculo se aproxima da realidade.
 
Neste contexto, a limitação mais importante da metodologia de cálculo do valor da extensão do DPH foi a de não considerar as receitas do mercado de serviços de sistema, que já são hoje uma parte significativa da remuneração das centrais hidroelétricas. Obviamente, esta remuneração não poderia ser estimada em 2007, mas hoje já poderá ser possível quantificá-la, como explica Maria de Lurdes Baía:

“O mercado de serviços de sistema só entrou em funcionamento em 2009, portanto, não tínhamos quaisquer elementos, eu não conseguia valorizar essas receitas. Hoje sabemos que são muito valiosas, valem muito dinheiro, valem muitos milhões de euros. Na altura não tínhamos como quantificar essas receitas. (…) O que posso dizer —, mas, por favor, não extrapolem os números —, é que, no âmbito das revisibilidades anuais, a EDP devolveu cerca de 390 milhões de euros relativos às receitas de serviços de sistema. No total dos 10 anos, foi quanto a EDP devolveu”.

Quando questionado sobe esta matéria na CPIPREPE, João Manso Neto afirma que os 50€/MWh considerados são um preço total de rede – que já inclui os serviços de sistema – e que o valor real observado nas centrais hidroelétricas está hoje abaixo dos 50€/MWh:

“Não pode pensar nos serviços de sistema, tem de pensar no preço total. E a resposta, até agora, o preço de 50, em termos reais, em termos realized, é inferior ao preço que lá metemos. Pode vir a ser diferente, como sabemos. Amanhã, se vier a ser de 60 ou 70, será diferente, mas sugeria que não olhasse… (...) Portanto, o preço é o preço total. Tem de somar o preço do diário, dos serviços de sistema e, portanto, até ao ano passado, os preços realizados foram bastante inferiores aos preços que se tinham tido.”

Perante estas informações aparentemente contraditórias dos dois intervenientes ouvidos sobre o assunto, não foi possível à comissão concluir se faria sentido descontar eventuais verbas futuras decorrentes do mercado de serviços de sistema na valorização da extensão do DPH. Porém, é do entender da comissão que esta situação merecia uma especial atenção por parte da ERSE.

2.8 Custo de oportunidade para o SEN da antecipação da extensão do DPH

Além da segunda consequência dos acordos de cessação é que, obrigando à simultaneidade entre cessação do CAE e extensão do DPH, na prática obrigaram também à antecipação dessa decisão relativamente à data em que ela se impunha. Essa data era 2013, quando chegavam ao fim os primeiros CAE, das barragens do Picote, Pocinho e Bemposta.

Para além do benefício inerente à metodologia baseada em duas taxas de desconto, o Estado concedeu um benefício adicional ao ter aceitado negociar a extensão da exploração das centrais antes daquela data, no caso em 2007, sete anos antes. Esta decisão sobre a titularidade da exploração das centrais no período pósCAE/CMEC poderia ter sido protelada para o fim dos CAE/CMEC. Caso se avaliasse a extensão em 2013, com exatamente a mesma metodologia e as mesmas taxas diferenciadas que foram usadas pelo governo, o valor a pagar pela EDP ascenderia a 1564M€, mais 573M€ que o valor pago em 2007, capitalizado a 2013 à taxa do Estado.

Quadro: valor de exploração da extensão da exploração e do valor residual das centrais hídricas em função do ano de avaliação, na perspetiva do decisor público, com as taxas de desconto adotadas pelo Crédit Suisse e admitindo que estas se manteriam constantes no futuro.

Conclusões

    •    O direito à extensão da utilização do domínio hídrico sem concurso foi incluído no projeto de DL 240/2004, preparado e remetido a parecer do regulador e à Comissão Europeia pelo ministro Carlos Tavares. Na sua preparação, tiveram papel importante os assessores do ministro e do secretário de Estado Franquelim Alves, respetivamente Ricardo Ferreira e João Conceição;
    •    A opção foi efetivamente conferida à EDP, com a aprovação do DL 240/2004 já sob o governo seguinte, com a energia sob a tutela do ministro Álvaro Barreto. Tal opção foi exercida e homologada como condição para a cessação dos CAE pelo Secretário de Estado Manuel Lencastre;
    •    O valor desta opção resulta 1) da diferença entre o valor económico da produção elétrica futura e o valor residual dos equipamentos que, sob a legislação anterior, a EDP deveria cobrar no termo dos CAE; e 2) da obtenção de uma posição estratégica de monopólio, em particular na prestação de serviços de sistema, remunerados no período pós-CMEC. Destes, só o primeiro foi plenamente considerado nas avaliações de 2007;
    •    Após analisar o eventual auxílio de Estado ilegal relativo à extensão, sem concurso, da utilização do domínio hídrico pelas centrais hidroelétricas da EDP (processo SA 35429), a Comissão Europeia decidiu o arquivamento do processo. A utilização pelo Estado português da metodologia que a Comissão veio mais tarde a validar resultou num preço mais baixo. Ora, o princípio adequado para a formação pelo Estado de um preço de venda seria o do investidor privado numa economia de mercado ou num concurso público, o que levaria à utilização de uma única taxa de desconto para todo o investimento (pagamento inicial do valor residual e proveitos futuros de exploração);
    •    As avaliações defendidas pela EDP e pelas entidades bancárias, que a Comissão Europeia validou em 2017 (excluindo a metodologia da REN por “não constituir prática de mercado”), tomaram a entrega pelo Estado daquela opção à EDP como razão para considerarem garantido pelo Estado (menor risco) o valor residual das centrais no fim dos CAE, descontando-o à taxa da dívida pública. Por essa via, o valor atual em 2007 do valor residual aumentou, reduzindo a diferença em relação ao valor dos cashflows de exploração e portanto diminuindo o montante da contrapartida a pagar pela EDP. Adotando aquela metodogia, o Estado calculou o valor residual (direito singular da EDP e não comum ao mercado) a uma taxa de desconto mais baixa. Tal não sucederia no caso de qualquer outro operador, que descontaria sempre o valor residual (que assegurava a transmissão das centrais no termo dos CAE), à mesma taxa utilizada para descontar os proveitos futuros da exploração dessas centrais.
    •    Para além do benefício inerente a esta metodologia de cálculo, o Estado concedeu um benefício adicional ao comprometer-se em 2005, na homologação dos acordos de cessação dos CAE, a conceder a extensão da exploração das centrais logo no momento da cessação antecipada (2007), quando os primeiros CAE/CMEC terminavam somente a partir de 2013. O valor económico da utilização do domínio hídrico no período pós-CAE/CMEC poderia ter sido calculado no fim dos CAE/CMEC, sendo nesse momento concretizada a subconcessão. Caso se avaliasse esta extensão em 2013, com as exatas metodologia e taxas diferenciadas que prevaleceram, o valor a pagar pela EDP ascenderia a 1564,8 M€, mais 573,6 M€ que o valor pago em 2007, capitalizado a 2013 à taxa do Estado;
    •    Além de Ricardo Ferreira, que assessorou os ministros Carlos Tavares e Álvaro Barreto, e João Conceição, assessor do secretário de Estado Franquelim Alves - cujo papel foi central na preparação do DL 240/2004 e da homologação dos acordos de cessação dos CAE em 2005 -, Rui Cartaxo, adjunto de Manuel Pinho, teve grande influência no processo de avaliação da extensão do domínio hídrico. Rui Cartaxo manteve um fluxo permanente de informação com a EDP, como ressalta das peças do processo judicial remetidas pela Procuradoria Geral da República à CPIPREPE, em que são reproduzidas comunicações que demonstram que Rui Cartaxo preparou diretamente com a cúpula da EDP os termos do aconselhamento desta empresa ao ministro Manuel Pinho, que Cartaxo assessorava, e que informou a EDP do andamento das diligências para a contratação das entidades bancárias a quem foram encomendadas pelo Estado avaliações do valor da extensão da utilização do domínio hídrico.

Recomendações

Criação de um mecanismo de revisibilidade anual da compensação paga ao Estado pela EDP pela subconcessão do domínio público hídrico. Ao longo do período desta extensão, este mecanismo deve:
    •    corrigir o efeito da subcompensação recebida da EDP em 2007 por efeito da utilização de duas taxas de desconto;
    •    incorporar nos cálculos dos ajustamentos todos os ganhos de exploração, incluindo os relativos a serviços de sistema, que os estudos de 2007 não puderam incorporar plenamente.

Termos relacionados Política, Rendas da energia
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