Tempestade em Valência

Que a extrema-direita não te impeça de ver os movimentos sociais de Valência

11 de novembro 2024 - 10:26

Quando todos falham, “só o povo salva o povo”. Não é uma frase feita da anti-política, mesmo que muitos a tentem manipular. Nasce dos movimentos que há anos resistem e constroem poder popular em Valência. Agora trabalham sem descanso na solidariedade e no apoio mútuo no meio da tragédia.

por

Jorge Mancebo

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Entreajuda em Valência depois da catástrofe climática. Foto de Cuaderno de Bocetos
Entreajuda em Valência depois da catástrofe climática. Foto de Cuaderno de Bocetos/X.

Às nove horas da manhã de quarta-feira, 30 de outubro, ainda não tínhamos notícias dos nossos amigos. Apenas 12 horas antes, às oito horas da noite de terça-feira, um alerta foi emitido no nosso telemóvel enquanto estávamos ligados às notícias sem perceber exatamente o que se estava a passar. As primeiras imagens que chegavam eram devastadoras: a DANA tinha devastado aldeias inteiras da Horta Sul de Valência, bem como outras zonas da Região Valenciana e de Castela-La Mancha, deixando um rasto de cadáveres. Uma tragédia de proporções sem precedentes que se agudizava na chamada “cintura vermelha” de Valência, a poucos metros da capital do Turia.

Nesse momento, começaram a chegar as primeiras mensagens à procura dos nossos entes queridos. No nosso caso, demorámos horas a localizá-los a todos; pelo menos até às 11 horas da manhã de quarta-feira, quando o Secretário de Segurança e Emergências, Emilio Argüeso Torres, se juntou à coordenação, quase um dia depois de a tragédia ter acontecido, como ele próprio publicou na sua conta do X. Enquanto contactávamos com os nossos, começaram a chegar as primeiras histórias e compreendemos a magnitude do horror, mas também a valentia de muitos vizinhos que deram corpo ao socorro de pessoas desconhecidas. Uma noite que dificilmente esquecerão.

O nervosismo e o sentimento de frustração aumentavam e os nossos corações encolhiam ao vermos, estupefactos, o número oficial de mortos aumentar lentamente (os números ainda não são claros e é provável que sejam muito mais elevados do que os publicados hoje). Em poucos dias, pudemos constatar que os avisos tinham chegado demasiado tarde a quase uma centena de municípios afetados, deixando milhares de pessoas desaparecidas e, de momento, mais de duzentas vítimas mortais certificadas.

Em termos políticos, esta catástrofe climática representa uma crise sem precedentes. Neste poço sem fundo, o governo valenciano de Carlos Mazón tentou responder com desculpas às perguntas dos cidadãos: por que razão o alerta foi tão tardio? Que responsabilidade política está por detrás da catástrofe? Por que razão eliminaram a Unidade de Emergência Valenciana? O Consell é diretamente responsável? Por que razão os meios necessários demoraram tanto tempo a chegar às zonas devastadas para ajudar as vítimas?

A extrema-direita a resgatar Mazón

Assim começou o jogo dos políticos profissionais, passando a batata quente uns aos outros e demonstrando um enorme cinismo e distância da dor das vítimas. A operação de controlo de danos tornou-se evidente durante a aparição do líder da oposição, Alberto Núñez Feijóo (PP), que veio em socorro do presidente do Consell. Num discurso semelhante a qualquer comício de campanha contra o governo, mas no meio de uma crise humanitária, política e social, Feijóo atacou a Agência Estatal de Meteorologia (AEMET), uma agência estatal que o Consell ignorou apesar dos repetidos avisos.

Neste rio revolto, veio também pescar a organização de extrema-direita Manos Limpias, que intentou uma ação judicial contra a AEMET por crimes de homicídio por negligência, com o único objetivo de agitar a comunicação social e tentar contestar a narrativa da situação.

O Governo, por seu lado, omitiu-se de qualquer responsabilidade ao não intervir, apesar de os cidadãos continuarem a encontrar corpos nas garagens, na lama e nas próprias casas, como alertou o próprio presidente da Câmara de Alfafar (PP): “Há dias que não vemos um carro de bombeiros nem a Guardia Civil. Esqueceram-se de nós”, afirmou em declarações à estação de televisão valenciana À Punt.

Neste viveiro político, os negacionistas de extrema-direita das alterações climáticas e os seus diversos agentes mediáticos não tardaram a deslocar-se para as zonas afetadas para tentar tirar partido da catástrofe. Perante a necessidade de milhares de pessoas desesperadas que não recebem praticamente nenhuma atenção das diferentes administrações, vemos, mais uma vez, como a falta de escrúpulos da extrema-direita se impõe para tentar fazer sobressair os seus temas estrela: a insegurança, o medo ou o racismo. O objetivo: desviar a atenção dos decisores políticos.

O aperto de mão entre Javier Negre, jornalista condenado judicialmente e hoje diretor da plataforma de televisão na Internet EDATV, e Carlos Mazón não foi uma coincidência. Negre esperou que ele, estrategicamente posicionado, lhe apertasse a mão em frente às câmaras. Afinal, para além do circo de fingir irreverência contra o poder, são precisamente estas personagens que os protegem quando perdem o controlo da gestão e se sentem encurralados. Nessa mesma tarde, o governo de Pedro Sánchez denunciava que o governo de Carlos Mazón não se reunia há sete horas e que não tinha novidades.

Apenas um dia mais tarde, limitaram os acessos aos voluntários solidários que iam ajudar aldeias devastadas mais um dia. Coincidência ou não, uma enorme caravana da polícia abriu caminho através da lama e anunciou que o Rei e a Rainha de Espanha, o Presidente do Governo e o Presidente da Generalitat Valenciana vinham visitar as aldeias devastadas pela DANA. Não se tinha visto ainda uma tal mobilização de meios na região. Este acontecimento, somado às ordens de restrição dos voluntários, fez com que estes mesmos representantes públicos se encontrassem num cenário de tensão inédito.

Foi em Paiporta, uma das localidades mais afetadas pela DANA, que teve lugar um episódio em que o Rei e Mazón foram insultados e cobertos de lama; Pedro Sánchez, por seu lado, teve de abandonar o local depois de ter sido agredido. Um ataque reivindicado pela extrema-direita e para a qual o sindicato do Vox ofereceu os seus serviços jurídicos com o objetivo de proteger os agressores. Tudo isto com o propósito de deitar mais achas para a fogueira, desviar as atenções para as reivindicações da extrema-direita e aproveitar um momento de raiva resultante da má gestão e do abandono.

A solidariedade e a entreajuda da sociedade valenciana

O maior beneficiário foi, sem dúvida, Carlos Mazón, que saiu de lá quase em bicos de pés, salvando a mobília. É por isso que temos de desativar a extrema-direita, mas também de nos concentrarmos naqueles que, organizados, constroem todos os dias redes de apoio e canalizam a raiva de baixo para cima.

Porque, para além da política do espetáculo, é a vida das pessoas que vivem nestes municípios devastados que precisa de todo o apoio possível. Sentem-se sozinhas, encurraladas entre o cinismo da política e a incapacidade de ajuda do Estado e das suas administrações. Eis o resumo: a negligência das responsabilidades levou milhares de pessoas a pegarem em máscaras, vassouras, pás, baldes e botas de cano alto e a percorrerem as aldeias da Horta Sul e mais além para ajudarem quem que fosse, onde quer que fosse e como pudessem.

E lá fomos nós, dar uma mãozinha na casa de um amigo em Benetúser; cavar a lama e fazer companhia uns aos outros. Atravessámos a ponte, acompanhados por milhares de brigadistas solidários. “Falta gente em Catarroja”, dizia um grupo de jovens com um nó na garganta. “Vou para Paiporta, temos de fazer estafetas porque a situação é aterradora”, ouve-se noutra conversa. Dezenas de migrantes estavam a cozinhar as suas receitas para quem precisasse delas no município de Picaña, como noticiado nas páginas do Levante EMV. Centenas de rações foram organizadas no Centro Social Terra de Benimaclet e levadas em carrinhas para o Parque de Alcosa.

São muitos os lugares onde os movimentos e organizações sociais do País Valenciano têm trabalhado sem descanso. A solidariedade e o apoio mútuo nunca serão património da extrema-direita, embora esta esteja agora a tentar aproveitar-se da confusão. Toda esta solidariedade não nasce da espontaneidade. Os movimentos sociais e as suas estruturas estão organizados em Valência há muitos anos. A sociedade valenciana, apesar dos seus governantes, resiste desde há anos, construindo, criando poder popular. Todos e cada um dos movimentos sociais contribuíram para isso, picando pedra todos os dias e, nos momentos difíceis, ajudando-se uns aos outros. Com os seus acertos e os seus erros.

Agora, quando todos falham, “só o povo salva o povo”, como se diz por aqui. Não é uma frase feita da anti-política, mesmo que muitos a tentem manipular; é uma frase que tem vindo a ser usada por esses mesmos movimentos que hoje, como ontem e amanhã, continuarão a estar presentes, escrevendo um novo capítulo, apesar das dificuldades. Não deixemos de colocar o foco neles, nas pessoas comuns que não deixam de lutar todos os dias. Nem as tentativas do governo para apaziguar os ânimos, nem as tentativas da extrema-direita para lucrar com eles os impedirão de pensar em ajudar o nosso povo quando ele mais precisa, ou de procurar a justiça e a reparação por todos os meios necessários.


Texto publicado originalmente em La Marea.