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“Qualquer lugar é um lugar potencial para o teatro acontecer”

Em entrevista ao Esquerda.net, cuja segunda parte reproduzimos neste artigo, a fundadora e diretora artística do Teatro do Vestido, Joana Craveiro, fala, entre outras matérias, sobre a reivindicação do espaço público, de poder fazer teatro em qualquer sítio. Por Mariana Carneiro.
Joana Craveiro
Joana Craveiro, "Monstro" (2012), foto do Arquivo do TDV.

Esta é a segunda parte da entrevista do Esquerda.net a Joana Craveiro. Poderá aceder aqui à primeira parte desta entrevista:

"Qualquer expressão artística é uma luta contra o obscurantismo da ditadura"


O Teatro do Vestido já conta, creio eu, com quase 20 anos de existência e dezenas de peças estreadas. Alguma te marcou em particular?

O “Museu Vivo”, por várias razões. Inclusive, porque fazer um espetáculo de seis horas mudou a minha forma de fazer teatro. Não sou a mesma desde que faço esse espetáculo. Uma pessoa entra numa espécie de transe, vamos todos numa viagem de seis horas. Isso alterou a minha experiência enquanto atriz. As pessoas esquecem-se, mas também sou atriz. Há um texto, que é decorado, há uma relação com o público ao vivo.

Depois há o “Tua”, que foi o primeiro e muito marcante. Há a “Carta Oceano”, que foi aquele de que te falei. Tínhamos na altura um espaço no Hospital Júlio de Matos, isto durante dois anos, e utilizávamos muitos espaços diferentes, corredores, caves…

Não assisti, mas li sobre a peça e fiquei com a sensação de que utilizar aquele espaço deve ter sido fenomenal.

Foi. Ainda assim, nunca consegui criar uma relação com a comunidade (interna do hospital). Tentámos, mas era muito difícil. Aliás, na altura, era difícil levar o público até lá. Não tínhamos muito público, devo confessar. Também não fazemos espetáculos para muita gente. Um dos espetáculos que fizemos era para seis pessoas, num corredor. A “Carta Oceano” marcou-me muito porque gostei imenso de desenvolver aquele projeto com os meus colegas e gostei também muito daqueles universos. Era uma viagem transiberiana, muito onírica, mas, ao mesmo tempo, muito evocativa, com muitas referências. Cantávamos músicas “à capella” de que nos lembrávamos, da Suzanne Vega, por exemplo. Uma vez tive um acidente com o meu pai e ele estava a cantar uma música dela no exato momento do acidente. Misturávamos imensas histórias. Creio que era um exemplo destas dramaturgias emergentes, do chamado teatro pós-dramático. Escrevi algumas partes do texto, mas aquilo que os meus colegas diziam tinha sido escrito por eles.

O “Monstro” também me marcou muito. Toda a sequência do “Esta é a minha cidade e eu quero viver nela”, que já fizemos em várias cidades, é um conceito de que gosto muito. São cenas curtas, que se repetem geralmente sete vezes. O espectador vai a vários sítios da cidade onde tem um momento experiencial com aquele ator ou aquela atriz. Gosto muito desse modelo e desse processo. Os atores têm de ir para as ruas e trazer-me histórias, fazer uma apresentação, e eu escrevo a cena a partir daquilo que eles fizeram.

Mas o “Museu Vivo” destaca-se. É aquele trabalho que não me canso de fazer. Vou fazer para o ano, era para fazer este ano, mas com a pandemia passou para 2021. Vamos fazer no FITEI [Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica]. É um espetáculo que não dá para estar sempre a fazer. É muito complexo. Demoramos uma semana a montá-lo e a fazer os ensaios. Para fazer um ensaio geral de um espetáculo de seis horas, que tem muito tecnologia, são cerca de dois dias. Em Paris acabámos o ensaio uma hora antes da estreia...

Joana Craveiro em "Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e esquecidas". Fotografia de João Tuna.

E depois ainda tens uma conversa a seguir com o público…

Temos sempre uma conversa. Já tivemos de pedir ao público para sair da sala. Quando estreámos no Negócio/ZDB, em 2014, estava com muito medo. O espetáculo tinha quatro horas e meia (naquela altura ‘ainda’ tinha quatro horas e meia!). No dia da estreia tive uma sensação parecida com aquela que tinha tido na nossa primeira peça. Era um terreno novo: a duração, o tema, o estar sozinha em palco… Estava insegura porque a peça tem muitos momentos “ao vivo”, há coisas que só acontecem lá e cada espetáculo é diferente. Tenho o texto todo escrito mas estou realmente a falar com as pessoas, o que significa que, às vezes, a história pode não sair tão bem. Saio muito do guião. Ia acrescentando várias coisas, lia algo no jornal no próprio dia e metia aquilo que lia… Os meus colegas ficavam na regie a pensar, “Epá, para onde é que ela vai agora? Temos de ir atrás dela!”. [risos] Nesse dia da estreia, quando o espetáculo chegou ao fim, disse às pessoas que gostava muito de fazer uma conversa pós-espetáculo, o que, para nós, faz parte do espetáculo. Mas deixei-os à vontade, sabia que já era uma da manhã e, portanto, compreendia perfeitamente que algumas quisessem sair. Ninguém saiu! Pensei: “Ok, isto é especial!”. Às duas e tal da manhã a minha colega avisou-me que já não dava para continuar, era muito tarde. Tive de pedir desculpa às pessoas e despedir-me.

Foi uma sensação incrível, não?

Foi. Senti que tínhamos conseguido encontrar ali um sítio. Nunca estive numa assembleia popular, estive em assembleias, ou reuniões, de moradores com os meus pais, quando era pequena, no pós-PREC, por isso não sei exactamente que é uma assembleia popular, mas intuo o que é pelo que acontece no final destes espetáculos.

Nessa altura, com a troika, as pessoas estavam ao rubro, estavam cansadas e deprimidas, e, ao mesmo tempo, havia uma enorme vontade de lutar. Aquilo foi um fórum. Todas as pessoas tinham uma história para contar. Percebi que o teatro pode ser isto, pode ter este papel, de empoderar as comunidades no sentido de não baixarem a cabeça. A última parte do espetáculo chama-se “pós-memória”, curiosamente, na qual faço uma reflexão sobre as comemorações desse ano (2014) e o porquê das pessoas estarem a “levar e calar”. Durante a peça questiono, “Por que é que fazemos isto como povo, como coletividade? Comemos e baixamos a cabeça quando sabemos que temos capacidade para fazer algo diferente, porque na nossa História, e não foi assim há tanto tempo, há um movimento popular que se sobrepõe a um movimento político”.

A segunda parte do espetáculo é muito sobre essa parte da revolução de que muitas vezes não se fala, os movimentos populares, os movimentos sociais, os pequenos partidos, os pequenos movimentos invisíveis na grande trama da História. Também há hegemonias de memória por parte de certas esquerdas em relação ao processo revolucionário. E o espetáculo tenta dar voz a esses outros movimentos. No final, os espectadores parece que agarraram esse repto e aquilo foi por ali fora, até os metermos fora da sala. [risos]

“Normalmente, as câmaras municipais não são coprodutoras de espetáculos”

Li ou ouvi algures que tens novos projetos em carteira. Creio que, nomeadamente, o “Diários da Bicicleta”. Podes falar-me um pouco deles?

Tenho um projeto que te posso mostrar, assim é mais fácil... Durante o confinamento estava farta de não fazer espetáculos, estavam todos a ser cancelados. Comecei a pensar em fazer um espetáculo a solo. Um solo seria possível. A ideia passa por trabalhar um arquivo de imagens que comprei numa feira e de que gosto muito, porque têm uma legenda muito detalhada atrás e acompanham o crescimento de um jovem. São imagens de família, tenho vários envelopes. Este verão fiz uma residência e comecei a escrever sobre este assunto.

Arquivo de imagens que Joana Craveiro comprou numa feira. Foto de Mariana Carneiro.

Este projeto, “A Gaveta” vai ser, em parte, sobre uma gaveta que havia em casa da minha avó cheia de fotografias que eu e o meu irmão destruímos. Tenho o resto dessas fotografias.

Tens os restos? [risos]

Tenho. [risos] Nem sempre fui a guardiã da memória. Passei uma parte da minha vida a destruir fotografias. Bem, elas já estavam todas amontoadas numa gaveta…

Tu só aceleraste o processo de destruição…

Exatamente. Parto dessa ideia, dessa gaveta, e depois quero falar sobre esta coleção. Sabemos que a fotografia era um objeto de luxo (portanto, eles tinham meios para fotografar), e estas foram reveladas na Rua de Campolide – há, portanto, um local. Há também uma geografia nestas imagens, elas têm detalhadas várias moradas atrás. Gosto muito desse lado “detetivesco”. É o que está agora em cima da mesa.

Coleção de fotos de Joana Craveiro. Foto de Mariana Carneiro.

Esta ideia surgiu quando a Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato, me ligou no dia Mundial do Teatro a perguntar o que é que eu farei quando tudo isto passar, quando nos pudermos voltar a encontrar. E era isto o que eu queria fazer, este solo. O tudo isto ainda não passou, mas pelo menos já nos podemos encontrar, nem que seja um a um. A dificuldade é encontrar locais para estrear, coproduções. Nem vou falar sobre isso. “Não há dinheiro, não há dinheiro, não há dinheiro…” Em princípio vou estrear no Festival In Shadow, dirigido pela Ana Rita Barata e o Pedro Senna Nunes, em dezembro. Será num espaço alternativo, aqui em Lisboa, e será um espetáculo para um ou dois espectadores. Algo muito intimista: comigo e com as imagens, e com o Francisco Madureira a tocar ao vivo. Sinto a necessidade de fazer um espetáculo, preciso de ir para cena. Já não está a dar mais isto de fazer zooms o dia todo. Dou aulas, e dei muitas aulas durante a quarentena, em duas escolas superiores. Foi fantástico. Acho que parte da minha missão nesta terra é essa. Gosto mesmo muito de dar aulas. Mas preciso de fazer criações. E essa criação vai acontecer.

Para além disso, desencantei da minha gaveta um texto que escrevi para a Culturgest, para o programa Panos, em 2016, que se chama “Atalhos ou sobre o caminho mais comprido entre dois pontos”. Eles convidavam dramaturgos a escrever um texto para grupos de jovens, grupos de teatro escolares, que depois teriam de colocar o texto em cena. Nesse ano convidaram-me. Foi muito interessante, esse texto foi feito por grupos de jovens durante esse ano. Depois nunca mais teve nenhuma vida. E agora decidi que quero fazê-lo com jovens atores. Todos os anos ajudo a formar jovens atores e acho que eles merecem ter trabalho. Naquilo que posso, no Teatro do Vestido, tento ao máximo dar trabalho às pessoas. Este projeto vai dar trabalho a sete atores, todos formados na ESAD [Escola Superior de Artes e Design], nas Caldas da Rainha: David Santos, Francisco Madureira, Henrique Antunes, Inês Minor, Inês Monteiro, Mafalda Pereira e Tozé Cunha. Convidei-os porque são, realmente, atores muito bons. São as pessoas certas para fazer aquele projeto. Fizemos uma leitura encenada no ano passado, na Galiza. Foi assim que tudo começou. Disse-lhes: “Havemos de conseguir fazer este espetáculo”. E vamos fazer. Conseguimos um financiamento da Câmara do Seixal, inesperadamente. Vão ser coprodutores, pela primeira vez. O que é incrível, porque normalmente as câmaras municipais não são coprodutoras de espetáculos. Fiquei muito feliz. Vamos ensaiar para estrear em novembro.

Novembro deste ano?

Agora. Para o ano temos todos os espetáculos que não conseguimos fazer este ano, mais aqueles que já íamos fazer para o ano. O ano que vem já está a abarrotar. [risos] Vamos repor o “Elas Também estiveram lá”, vamos fazer o “Museu Vivo”, temos um espetáculo incrível com a ZDB e o São Luiz sobre como é que se consumia música alternativa no final dos anos 80/90, a partir das nossas próprias experiências “Aquilo que ouvíamos”. Íamos estrear esse espetáculo este ano, mas foi adiado para 2021; trabalhamos com os Loosers nesse espectáculo, e com o Bruno Pinto e o Francisco Madureira, também músicos incríveis; é um espectáculo punk. Para o ano vamos também estar no Teatro Nacional, vamos estrear-nos na sala Garrett, com um espetáculo que vou escrever a partir de A Cidade das Flores, de Augusto Abelaira. É um espetáculo que já quero fazer desde a adolescência, que foi quando li esse livro. A minha mãe estava sempre a dizer “Tens que ler, tens que ler”. Nunca mais me esqueci e, quando fizemos a “Ocupação” no São Luiz, tínhamos várias cenas em que dizíamos “Este é um espetáculo futuro” e mostrávamos o livro, que fazia parte de toda a nossa partitura. Prometi ao espectador, e vai acontecer. Mas isso é para o ano, ainda falta. Para já tenho estes dois.

Já estamos a entrar em outubro. Estamos perto do final do ano… [risos]

Quanto ao “Diário da Bicicleta” são textos que escrevo para mim, nos meus diários. Estou sempre a escrever pequenos diários...

Não vai para cena?

Talvez. Também já pensei nisso. [risos] Para ir para cena precisamos de um sítio, e não temos espaço próprio... vamos ver. E não estava programado, logo, não há dinheiro para o fazer. Há várias camadas nesta questão do financiamento, do sistema de programação.

“Alguns projetos estão claramente suborçamentados e precisávamos de mais gente”

Ainda não tínhamos chegado a essa questão, mas estamos a chegar. A estrutura fixa da companhia “Teatro do Vestido” é muito reduzida. Isso deve-se a constrangimentos financeiros e ao subfinanciamento estrutural do setor? E, se sim, tem consequências diretas no vosso trabalho?

Essa pergunta tem tantas vertentes… Neste momento, não consigo fazer mais do que três contratos na companhia. A estrutura reduz-se a essas pessoas. Não estou a contar comigo, eu não tenho contrato. A estrutura do Teatro do Vestido é aquela que é a possível. Falo da estrutura com que conseguimos assumir um compromisso fixo e com os direitos que as pessoas merecem, que devem ter. Não temos financiamento para mais, nem conseguimos captar outro financiamento. As coproduções que conseguimos captar são para fazer espetáculos. Com essas coproduções conseguimos pagar cachets a pessoas, que são normalmente sempre as mesmas... mas, além disso, gostaria que os atores com quem trabalho trabalhassem com outras pessoas. Acho que isso é muito importante, nunca exigiria que uma pessoa fosse exclusiva a trabalhar connosco. Não é isso que desejo. Mas quero muito trabalhar com os atores com quem costumo trabalhar. São meus companheiros, eles percebem-me, eu percebo-os, nós percebemo-nos. Queremos trabalhar uns com os outros, temos uma pesquisa, uma linguagem artística própria nossa. Depois temos os estagiários que, geralmente, vêm de uma escola de teatro. Um deles ficou como estagiário profissional e agora vamos fazer-lhe um contrato para ficar na companhia. Há essa tentativa, mas temos poucos meios. Adorava que os atores que trabalham comigo durante quase todo o ano pudessem ter todas as condições que não lhes consigo dar em termos de contrato de trabalho, por exemplo.

A nossa estrutura é, de facto, muito reduzida pela falta de meios. Estamos mesmo muito aflitos. Este último financiamento foi terrível para nós. Tivemos a melhor pontuação nacional, o nosso projeto foi muito valorizado, mas o nosso patamar está abaixo das nossas necessidades. Temos tido muitas dificuldades em executar este biénio. Alguns projetos estão claramente suborçamentados e precisávamos de mais gente.

Eu também não torno a vida muito fácil às minhas colegas. Se estiver a falar com uma pessoa com quem quero trabalhar, ou que sei que está sem trabalho, sou capaz de dizer “vem trabalhar connosco!”, e depois elas dizem-me que não temos dinheiro para lhe pagar. Temos de andar a fazer ginástica... Sei que é errado, mas também é difícil para mim estar a falar com uma pessoa que trabalha connosco, saber que ela não tem trabalho, e não poder pô-la a trabalhar. Começo logo a pensar que projetos poderei ter para ela. Depois quero poder dizer-lhe que pode vir na próxima semana começar os ensaios. Mas não posso dizer, não tenho como pagar-lhe. Isso é injusto. Precisar de uma pessoa na equipa, saber que essa pessoa é a melhor, que não tem trabalho, e não poder chamá-la; não sei como resolver isto. Não vou ter um discurso miserabilista porque não me considero miserabilista, de todo. Tenho uma companhia há 20 anos, começámos do zero. Mas esta é a realidade: a nossa estrutura é reduzida porque não temos meios para mais. Ontem falei com uma colega minha de outra estrutura. Ela não tem contrato, o colega também não tem contrato. Sabemos que o correto era existir esse contrato. É assim que deve ser. Mas qual é a estrutura que consegue fazê-lo? Não sei. Ajudem-nos.

Com todas as dificuldades, conseguiram não ter ninguém em lay-off…

Sim, não temos ninguém em lay-off. Conseguimos negociar com os nossos coprodutores o pagamento de uma parte do valor deste ano pelos espetáculos que foram cancelados e um pagamento suplementar do ano que vem. Para o ano as pessoas têm de ser pagas, não podemos pensar que se paga tudo este ano e que para o ano se fazem espetáculos e as pessoas não recebem. Conseguimos esse diálogo com os programadores conscientes. Houve casos mais fáceis, outros mais difíceis. Assegurámos esses pagamentos e mantivemos os contratos sem recorrer ao lay-off. Ao mesmo tempo, as pessoas não querem receber para ficar em casa, querem criar. Agora estamos nesta luta de ter trabalho para as pessoas justificarem o seu salário. Elas querem trabalhar. E daí surgirem também estes projetos de que me vou lembrando.

“É difícil aceder às estruturas de programação de Lisboa”

Continua a ser difícil para uma artista criar em Lisboa? As e os artistas continuam a ser empurrados para fora?

Tenho de ser sincera, foi sempre muito difícil em Lisboa. Estamos a falar das estruturas de programação da cidade. Éramos completamente underground não por opção, mas porque, objetivamente, e durante muitos anos, não conseguíamos uma única coprodução em Lisboa. Esta era a nossa realidade até aqui há uns anos atrás. Aí as coisas começaram a mudar e conseguimos aceder a essas estruturas que têm dinheiro para financiar a criação dos artistas. A ZDB é incrível, é a nossa casa-mãe, mas eles não tinham meios de financiamento. Trabalhávamos à bilheteira, creio que ninguém quer isso. Não se consegue viver assim, um dia podemos vender todos os bilhetes, outros dias nem por isso.

Ainda por cima vocês optaram por ter sempre um público reduzido.

Claro. São todas essas questões. Sim, foi sempre extremamente difícil, mas graças às coproduções que tivemos fora de Lisboa, com o Teatro Nacional São João, o Teatro Viriato, começámos a ter um espaço de respiração. Além disso, tivemos todas as estruturas que nos apoiavam nas nossas residências artísticas: o Festival Escrita na Paisagem, no Alentejo, o CENTA [Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas], em Vila Velha de Ródão… Essa é a nossa história, sempre à procura. Isso na altura chateava-me muito porque achava que se podia dar coisas à cidade. Se trabalhava sobre a cidade, devia poder conseguir criar aqui. É difícil aceder às estruturas de programação de Lisboa. Para um jovem criador é ainda mais difícil, principalmente se vier de uma outra escola que não o Conservatório. Isto não são “golpes de sorte”, no entanto, por vezes, as pessoas têm ajudas pelo caminho. E há outros que não têm. Não têm ajudas, não têm quem lhes dê a mão. Posso ajudar muita gente, mas não tenho propriamente uma sala, não posso fazer coproduções. Não sou uma estrutura de programação, e nem quero ser. O que posso fazer é limitado. Posso dar trabalho a alguns atores, mas não tenho como ajudá-los a viabilizarem as suas próprias criações.

Nesse sentido, sim, acho que é difícil criar em Lisboa. Aliás, uma das minhas ideias é fazer esse exercício com os meus ex-alunos: perceber de que forma posso ajudar para que eles consigam, no local onde estão, fora de Lisboa, fazer algo. Em vez de toda a gente querer vir para Lisboa, para um local onde, muitas vezes, não existe essa possibilidade. Dou aulas nas Caldas da Rainha e os meus alunos raramente são de Lisboa. Quero auxiliá-los a obter financiamento e pôr em prática as suas ideias no local onde vivem. Creio que existe muito potencial nesses lugares. E não é uma questão de não querer que eles venham para Lisboa. Simplesmente, as rendas das casas estão impossíveis, eles não conseguem sobreviver aqui. Não têm os meios, não conhecem as pessoas, não conseguem aceder a essas estruturas de programação que têm realmente dinheiro, como o Teatro Nacional, o Teatro São Luiz, a Culturgest, o CCB [Centro Cultural de Belém]… Se calhar, o mais fácil, e, ao mesmo tempo, o que lhes permitirá fazer mais coisas, serem mais úteis e desenvolverem o trabalho que desejam, é permanecerem nas suas localidades. Com o apoio de uma câmara municipal, por exemplo.

Essa é também uma forma de combater a elitização da Cultura e a desertificação desses locais.

Para mim está tudo ligado. Quero, inclusive, avançar com o projeto “O que farei eu com este curso”. Ajudá-los a perceber que é difícil em Lisboa. É mesmo difícil.

“Tem de haver uma política cultural e uma visão para o setor”

Ouve-se muito falar do diálogo que existe com o setor. Esse diálogo existe, de facto?

Diálogo com o setor? O que eu ouço dizer e o que eu percebo é que não há diálogo com o setor.

Bem, o que eu queria dizer é que há quem alegue que há diálogo com o setor… [risos]

Isso é muito complexo. Primeiro, o que é o setor? Começa tudo por aí. Existem grupos que se organizam, mas depois outras pessoas não estão nesses grupos, ou não sabem, ou não têm acesso. Diálogo com o setor pressupõe vontade real de abordar cada um dos problemas estruturais do setor, e que ficaram tão à vista com esta pandemia – mas que são questões de há anos, de sempre. Tem sido tudo tão difícil e tão crispado. Do que sei, de grupos informais com quem falámos, existiam uma série de recomendações que não estavam a ser adotadas.

Agora chegou um novo modelo de apoio às artes para as companhias darem o seu feedback. Só depois de enviarmos a nossa avaliação é que vamos perceber se ela vai ser tomada em linha de conta. É difícil antecipar neste momento o que vai acontecer. O que os grupos informais que falaram connosco nos disseram é que as recomendações que faziam não eram acatadas pela tutela. Vamos lá ver, também não sei qual a melhor forma de desenvolver um diálogo com o setor. Não só por ser um setor fragmentado, extremamente competitivo: se eu receber, provavelmente há outra pessoa que não vai receber porque eu recebi… A solidariedade não é muita, ainda que este tempo da pandemia tenha estimulado novas formas de solidariedade, que são fantásticas. No entanto, sabemos que, naquela hora da verdade, é muito difícil. Qualquer pessoa está a tentar garantir que vai poder pagar os ordenados às suas pessoas.

Há uma corrida aos recursos…

Claro, uma enorme competitividade. E também há uma postura por parte das pessoas exteriores ao meio artístico de, “lá vêm mais estes artistas pedir dinheiro...”. E não queremos estar nesse papel. Não queremos passar a vida a escrever manifestos com “eu exijo, eu exijo, eu exijo...”. Não queremos que nos percecionem dessa forma. Há uma vontade de apagar todo este discurso e começar do zero.

Este novo regulamento de apoio às artes de que falavas levanta algumas questões para ti?

Existem, por exemplo, questões relativas ao apoio aos novos criadores que não é claro como vão funcionar. Quando comecei, também era extremamente difícil obter apoios. Comecei com apoios pontuais, que foram muito importantes. Sabíamos, contudo, que depois do pontual haveria o anual e, eventualmente, um dia podia haver um bianual. Não quero dizer que este modelo estivesse correto. Mas existia uma perspetiva de continuidade e sabíamos que poderíamos conseguir se não desistíssemos pelo caminho. Claro que o número de pessoas e o número de projetos que existem hoje são bastante diferentes, já multiplicaram, triplicaram… E ainda bem. Era bom que houvesse lugar para todos e financiamento para todos.

Quando falamos do setor, muitas vezes excluímos o papel que as câmaras municipais têm ou poderiam ter

Quando falamos do setor, muitas vezes excluímos o papel que as câmaras municipais têm ou poderiam ter. Por isso é que fiquei tão feliz quando a câmara do Seixal aceitou a coprodução que lhe propusemos. Isso é muito significativo. As câmaras podiam assumir o papel que os teatros com financiamento, e com capacidade para entrar em coproduções, têm. E ajudar à fixação de artistas locais como acontece, por exemplo, em Viseu, com o Teatro Viriato, que foi fundamental para a fixação de criadores da comunidade que trabalham ali em vários projetos. Isso era perfeitamente possível.

Tem de haver uma política cultural e uma visão para o setor. Que deveria passar por desprecarizar, profissionalizar, apoiar a criação, apoiar a nova dramaturgia portuguesa… Às vezes não percebo do que é que estamos a falar – há demasiadas frentes de combate. Estamos a falar de salvar as pessoas que se estão a afogar. Mas qual é a nossa visão para o futuro? O que é que nós queremos? Então, daqui cinco anos não vai haver nenhum precário, toda a gente vai ter contrato… Como é que isto pode ser feito? Como é que podemos criar apoios estatais para que vocês possam fazer contratos com as pessoas? E, ao mesmo tempo, temos estes dramaturgos portugueses. Queremos criar um centro nacional de dramaturgia portuguesa? Como queremos fazer? Não tenho essa experiência com a tutela.

“Qualquer lugar é um lugar potencial para o teatro acontecer”

O Teatro do Vestido não tem uma sala de espetáculos, e, creio eu, essa nunca foi uma prioridade. É uma mais valia a vossa experiência no que respeita a fazer teatro em qualquer lugar, ou de outra forma, em “fazer teatro para espaços”? Trata-se, de certa forma, de uma ocupação do espaço público? Da reivindicação do mesmo por parte da “comunidade”?

Muitos projetos decorrem daquela ideia de “Esta é a minha cidade e eu quero viver nela”, que aliás, era exatamente isso, um manifesto sobre a ocupação do espaço público, de poder fazer teatro em qualquer sítio. Mas nós tentámos ter espaço. Não podemos dizer que não queremos ter espaço, porque não é bem assim. Podemos querer ter um espaço, só que este não tem necessariamente de ser um teatro. As companhias não são todas iguais, nem todas têm as mesmas necessidades. Aquele espaço do Júlio de Matos, por exemplo, era perfeito para nós. Tínhamos uma ala num hospital psiquiátrico, com a possibilidade de utilização de vários espaços, tínhamos um escritório, um sítio onde dar aulas... Era perfeito.

Durante muitos anos, tentámos junto da câmara municipal que nos fosse cedido um espaço qualquer. Fizemos um levantamento de prédios abandonados que achávamos serem camarários. Não sentia a necessidade de ter um teatro porque achava que isso ia prender-nos a uma configuração teatral, a plateia com as pessoas sentadas e um ator em frente, no palco. Tentei não ficar presa a essa realidade. E isso alimentou o meu desejo, ou, pelo menos, a minha consciência, de que qualquer lugar é um lugar potencial para o teatro acontecer. Muitas vezes trabalhei a partir de um espaço porque isso me apaixona. Casas, garagens, fábricas abandonadas, um camião, bairros… Estou sempre a pensar no que poderia fazer num bairro que existe aqui em frente. Tudo decorreu de uma questão de necessidade. Fazíamos os ensaios num parque de estacionamento da Pontinha, os míticos ensaios do espetáculo “Exaustos”. Era ali que tínhamos espaço. Essa experiência depois ficou marcada no próprio espetáculo. Este percurso influenciou muito a nossa criação, e a minha forma de pensar. Reclamamos o espaço público.

Não se trata de teatro de rua, que já fiz muitas vezes, quando íamos para a Rua Augusta ganhar uns trocos, no tempo do nosso grupo amador. É como estar numa sala, mas não estamos numa sala, estamos noutra situação. Gosto disso, de tirar o espectador do seu lugar confortável e de inverter o protocolo. E de criar novos protocolos. O teatro que gosto de fazer é aquele que convida à participação do espectador de alguma forma, de sentir que somos uma comunidade. E por isso é que muitos dos nossos espetáculos têm comida, dança… é uma forma de sentir que estamos ali todos juntos. É uma viagem. Não existem dois espetáculos iguais, apesar do guião estar escrito. O espaço ajuda nisso. É difícil dizer se uma coisa começou por causa da outra, ou se já existia antes. Não sei. Acho sempre que sou uma pessoa “fora do baralho”, olho para a cidade e penso logo o que é que poderia fazer aqui. Não sei como isso começou. Mas sempre tive ideias de configurações diferentes. Como o espetáculo “Skyscapes”, que fizemos na Fábrica de Pólvora de Barcarena. Fui buscar umas cadeiras ao Bando, que tinha visto na Casa da Comédia, há muitos anos, num espetáculo do Filipe La Feria. Ele usava umas cadeiras rotativas. Nunca mais me esqueci dessa configuração, eu era muito jovem. O palco passava-se à volta, em cima, e nós estávamos numas cadeiras que rodavam. O Bando tinha umas cadeiras e emprestou-nos. Este foi o nosso segundo espetáculo. A sala da Cornucópia também me marcou muito. Cada vez que eu lá ia a sala estava diferente.

“Não estou ainda preparada para desistir completamente”

A cidade em si é uma das atrizes dos espetáculos do Teatro do Vestido e a companhia desenvolve um teatro de intimidade, o qual não se coaduna propriamente com as máscaras e o distanciamento social. Neste contexto, quais são as consequências da crise pandémica para este coletivo, sejam elas a nível psicológico, por se verem privados da sua essência, como financeiros?

Foi uma questão que me lançou, não posso dizer numa depressão, mas num momento bastante escuro. Por pensar que nunca mais conseguiria fazer o teatro que gosto de fazer. A primeira consequência foram todos os cancelamentos, mas isso qualquer companhia teve. Não conseguimos reagendar nada para este ano, já que os nossos trabalhos são de risco, nesse sentido. O nosso espetáculo sobre a música é um concerto, e eu queria o público no meio do concerto connosco. Ninguém quis arriscar, e bem. Passou para junho do ano que vem, ou seja, transitou para um ano depois. E isto se houver condições. O “Elas também estiveram lá” foi logo o primeiro espetáculo a ser cancelado, ainda estávamos em março. Com estes cancelamentos, e toda a questão do distanciamento social, pensei logo que a intimidade, que é uma das grandes questões com que eu trabalho, ficaria muito condicionada. As salas de teatro começaram a dizer-me que as pessoas tinham de ficar afastadas e o ator tinha de ir para o palco. Surgiu um nó na minha cabeça. Durante um tempo, pensei que eram boas memórias que tinha do passado, mas nunca mais iria ser possível fazer o meu teatro.

O teatro com que te identificas.

Sim, o teatro que quero fazer. Não quero fazer outro. Portanto, tive um momento em que pensei “Isto acabou”. Aquilo que conhecia, como fazer o espectáculo “Espólios” em casas de pessoas (da Baixa do Porto), já não seria possível. Para mim, esta realidade adquiriu uma dimensão enorme. Na altura, não falei muito com os meus colegas, não os queria deprimir ainda mais, estávamos cada um com a sua luta. Eu estava a dar aulas de horas e horas no zoom e com um pensamento permanente na minha cabeça: “O teatro acabou para mim, para nós”. Foi, realmente, um momento muito complicado. Até que depois, no Dia Mundial do Teatro, recebi um telefonema da diretora artística do Teatro Viriato, a Patrícia Portela. Confesso que reagi mal ao princípio. Pensei “Não me venham pedir comemorações do dia do teatro, por favor!”. Estava numa revolta interior, era um luto por algo que considerava ser irreversível. Acabámos por conversar e ela sugeriu que gravasse um vídeo. “Para quê?”, respondi-lhe.

Ela deve ter pensado que ligou mesmo em má altura [risos]

Exato. Foi uma conversa muito complexa. [risos] Entretanto, ela perguntou-me o que é que eu queria fazer quando isto passar. Esse foi um dia importante para mim, porque foi aí que disse que quando isto passasse ia fazer este espetáculo, a “Gaveta” para um espectador, que é exatamente o que vou fazer. Nesse dia fiz uma promessa. Assumi um compromisso. Então no vídeo que gravei, que é uma carta ao futuro, falo do projeto que ia fazer. Desbloqueou ali qualquer coisa. Produzi uma coisa artística nesse dia e pensei “Ok, não estou totalmente morta por dentro”. Na sequência disso, a Patrícia também me perguntou se podíamos pensar em algo para o 25 de Abril. Respondi-lhe que ia para a rua documentar. Ela falou-me nos consultórios telefónicos, de dez minutos, que estava a organizar e eu propus-lhe fazer doze horas. A começar de manhã e a acabar à noite. Foi assim que fizemos esse trabalho, “E naquele dia saímos para uma cidade lavada e livre”. Já sabia que ia fazer essa documentação, só não sabia como a ia transformar num espetáculo. Ela ofereceu-me essa possibilidade, através do SubPalco, canal de youtube do Teatro Viriato. Não queria fazer aquele projeto sozinha, e por isso escrevi as crónicas telefónicas para os meus colegas, a Tânia Guerreiro, o Estêvão Antunes, o Daniel Moutinho, a Alexandra Freudenthal, que entraram nas entrelinhas do que ia acontecendo na rua. Pude mapear a cidade, recolher testemunhos, matar-me toda, que é aquilo de que eu gosto. Ou seja, ficar completamente exausta.

Aquele dia foi, de facto, como os ingleses dizem, um breakthrough. Apercebi-me de que ainda podia fazer o teatro de que gosto. Senti mesmo que estava num Museu Vivo, em streaming. Depois o teatro começou a ganhar novamente fôlego e eu apresentei à Patrícia o meu projeto só com um espectador. Em princípio, estarei no Viriato em janeiro. E depois tive a ideia do “Atalhos” e comecei a desbloquear. Não sei se vai ser possível fazer o teatro de intimidade, mas estou em crer que sim, que existem possibilidades. Não estou ainda preparada para desistir completamente.

“Vejo que há um aproveitamento no sentido de recuar nos direitos dos trabalhadores”

Estou totalmente convencida de que conseguirás, podes ter a certeza absoluta. [risos] Que novas formas foram, entretanto, surgindo e que novas formas podemos encontrar neste contexto pandémico para apreender a cidade? Achei, por exemplo, imensa piada ao ouvir uma intervenção tua em que descrevias toda a atividade dos teus vizinhos.

Todas as ideias que tenho, já as fazia de certa forma antes... Não noto uma grande diferença. Aliás, gostava de notar uma diferença maior. Gostava que existissem menos carros, por exemplo. Ou que as pessoas andassem mais de bicicleta ou a pé. Mas depois os transportes também são um foco de infeção. Já refleti e começo a ler muito sobre esta temática, e essa ideia de que as coisas vão mudar todas, como o consumismo e o desperdício diminuírem, acaba por ser uma falsa ideia.

Isso é um eufemismo, não? Dizes uma “falsa ideia” para não dizeres que é tudo uma “treta”, certo? [risos]

Não sei se vejo grande diferença, percebes? Quando entro no centro comercial e está cheio… Durante o confinamento olhava e pensava “Tanta roupa para quê?”. Até fazíamos piadas sobre faltar-nos “roupa de casa”. Não tenho a certeza o quão transformados estamos humanamente. A maior transformação que pode existir é uma transformação humana. Da consciência e dos valores das pessoas. Os japoneses dizem que “compreender é mudar”. Não tenho a certeza absoluta sobre isso. Se houvesse uma vacina voltávamos ao mesmo? Acho que já estamos mais ou menos no mesmo, ou seja, não tenho a certeza sobre os efeitos duradouros da nossa transformação. Vejo, sim, a economia destruída, vejo que há um aproveitamento no sentido de recuar nos direitos dos trabalhadores. Isso eu vejo. Também vejo que há imensa gente que pode lucrar com as vacinas e com esta crise. Agora que nós, como civilização, consigamos mudar… Também não acredito em mudanças de fora para dentro, mas sim de dentro para fora. Estamos perante um evento externo que podia ajudar a transformar qualquer coisa cá dentro. Mas será que nós não queremos é livrar-nos rapidamente disto para podermos continuar com a nossa vidinha?

Quanto a novas formas de apreender a cidade, para mim a observação é a base de tudo. É claro que, enquanto estive aqui em casa, dei por mim a observar muito mais as janelas, que era aquilo que podia fazer. Sempre tive um bocado este lado voyeurístico da realidade. Acredito que toda a realidade é passível de ser retrabalhada artisticamente. Não passa muito pelas tecnologias, isso não me interessa tanto. Embora saiba que alguns colegas fizeram coisas fantásticas e conseguiram potenciar esses meios. Eu também fiz algumas coisas com os meus alunos que correram muito bem, mas nada substitui estar com eles, como estive ontem. Mesmo com as máscaras, nada substitui essa possibilidade.

Os teus olhos até brilham…

Era tão bom poder reclamar mais o espaço público, já que estar ao ar livre é mais seguro do que estar dentro de salas, por exemplo. Fazer intervenções, mas também debates, fóruns… mudar tudo para o espaço público. Isso podia ser excelente. Mas, claro, há muitas coisas a ter em conta, como a meteorologia. [risos] Mas não tenho uma ideia concreta de como fazer algo diferente. Como te disse, já tenho tantos projetos para cumprir e, inclusive, alguns deles já implicam com o espaço público, como o “Elas também estiveram lá”. O espaço público também é uma coisa interessante, porque está sempre a mudar. Quem trabalha ali naquela zona da Avenida da Liberdade e da Baixa, que faz espetáculos naqueles espaços, encontra sempre uma cidade diferente a cada semana. Se eu quisesse fazer agora o espetáculo “Esta é a minha cidade e eu quero viver aqui” já não conseguiria. Disse isto há uns tempos ao diretor do Teatro Nacional: “Esta cidade já não existe”. Aqueles lugares dos quais nós falávamos, aquelas lojas, já não estão lá.

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um post-scriptum escrito em jeito de carta-resposta a esta entrevista

11 de Novembro de 2020, e leio as palavras que a Mariana Carneiro transcreveu da nossa conversa que ocorreu há umas semanas e que me parece já longínqua. E não digo isso porque a pandemia tenha desaparecido, ou porque tenham desaparecido as coisas que nos ocupavam na altura, mas porque a essas se adicionam outras, como as eleições americanas, que nos marcam a todos por muitas razões – a mim, por constatar, por exemplo, coisas que me pareciam antes impossíveis, como a mentira em toda a linha e a céu aberto, a distorção da verdade em absoluto, o questionamento da legitimidade democrática sob pretexto de conspirações inexistentes – ou o novo estado de emergência em que vamos entrar, ou o não saber como será esta semana e a próxima e a seguinte.

A conversa ficou registada e o que está escrito foi dito.

Faltou, talvez, terminar, em jeito de esperança, com um excerto de Hope in the Dark, de Rebecca Solnit,

“’A memória produz esperança, da mesma forma que a amnésia produz desespero’, escreve o teólogo Walter Brueggerman. É uma afirmação extraordinária que nos recorda que, embora a esperança seja sobre o futuro, há bases para a esperança que residem nos registos e memórias do passado. (...) As coisas nem sempre mudam para melhor, mas mudam de facto, e nós podemos desempenhar um papel nessa mudança ao agirmos. Que é onde a esperança entra, e a memória - a memória colectiva a que chamamos história.”

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
Termos relacionados Cultura
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