Portugal é o único país europeu em que a rede de autoestradas ultrapassa a ferroviária

30 de março 2022 - 12:28

O desejo de modernização rápida do país no pós-adesão à CEE e a pressão do lóbi das PPP rodoviárias contribuíram para o atual desequilíbrio. Invertê-lo é uma condição para atingir o objetivo de descarbonizar a economia.

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Foto de Paulete Matos

O Público lançou esta semana uma série de entrevistas com investigadores relevantes sobre o estado dos transportes em Portugal - Pensar os Transportes. O primeiro número discute o impacto da proliferação de autoestradas em Portugal, sendo o primeiro país europeu com uma rede de autoestradas maior do que a rede ferroviária em operação. Portugal é também o segundo país europeu com maior rede de autoestradas por habitante.

Patrícia Melo, professora no ISEG e investigadora do REM/UECE, frisa que a forte aposta de Portugal nesta extensa rede “tornou-o mais desigual” e “favoreceu fenómenos de suburbanização” que ajudaram a alimentar a “nossa dependência do automóvel”.

Se por um lado as autoestradas tornaram as distâncias de viagem mais curtas e, assim, a mobilização entre regiões mais fácil, por outro, tornam o território mais desigual ao concentrarem a população dos centros urbanos que servem. Ilustrativo disso mesmo é o facto de os três concelhos que mais cresceram nos últimos anos se situarem na periferia de Lisboa. Um estudo publicado recentemente concluiu que, entre 1981 e 2011, a construção de autoestradas teve um maior impacto no aumento da população nas áreas que atravessam do que na criação de emprego.

Aponta ainda que o fenómeno da suburbanização, isto é, o crescimento de uma cidade para os seus subúrbios, criou custos invisíveis: a fragmentação do território dificulta a construção de uma rede de transportes públicos e cria a necessidade de aumentar infraestruturas básicas como água e esgotos. Dito de outra forma, perturba o planeamento territorial. Além disso, aumenta o congestionamento, a poluição sonora e potencialmente a sinistralidade rodoviária.

Em 1986, ano de adesão à CEE, Portugal tinha das dotações mais baixas de autoestradas e começou a expandir-se aceleradamente: a uma taxa de média anual 9% entre 1986 e 1990, 17% entre 1990 e 2000, e 5% entre 2000 e 2010. Os anos 1990 assistiram a um verdadeiro boom na extensão da rede.

Este aumento deve-se essencialmente à proliferação de Parcerias Público-Privadas (PPP) neste setor e a canalização de fundos europeus comunitários. As PPP, isto é, contratos de longo prazo que concedem a uma entidade privada a criação e gestão de um serviço normalmente providenciado publicamente, podem servir para reduzir gastos públicos no imediato e assim cumprir obrigações orçamentais. Este instrumento foi amplamente utilizado em Portugal, sendo atualmente o maior mercado entre a UE27 em proporção do PIB. No entanto, o contraponto das PPP é a receita gerada ficar capturada pelos parceiros privados e, dependendo dos moldes do contrato, obrigar o Estado a garantir que os seus níveis são constantes ao longo do tempo. Por exemplo, com a quebra no tráfico devido à pandemia em 2020 o Governo indemnizou os donos de autoestradas. Quanto mais rentável for um determinado setor maior será a sua desejabilidade. Das 38 PPP atualmente existentes, 21 pertencem ao setor rodoviário.  

Nos sucessivos Quadros Financeiros Comunitários desde 1989, o investimento direcionado para a rodovia variou entre 26% e 32%, sendo entre 5% e 14% só para autoestradas. A escolha política de investir significativamente mais na rodovia do que na ferrovia pode ser explicada por um desejo de modernização rápida do país aquando da entrada na CEE e a uma pressão lobista do setor rodoviário. 

Simultaneamente registou-se uma deterioração da linha ferroviária, com um progressivo declínio das linhas em funcionamento nas últimas décadas. Este fenómeno, como mostra a investigação do consórcio jornalístico Investigate Europe, é transversal aos países da União Europeia. Para isso contribuíram a separação das empresas responsáveis pela operacionalização dos serviços e pela gestão das infraestruturas (os chamados roda e carril, respetivamente), a abertura do primeiro a uma lógica de concorrência de mercado e pouco investimento público.

As escolhas políticas futuras terão necessariamente que passar pelo investimento na ferrovia e pela gratuitidade destes serviços para a população, de forma a promover mais coesão territorial e atingir o objetivo da descarbonização da economia.

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