A lista de comissários europeus anunciada esta semana por Ursula von der Leyen traz casos de conflitos de interesses em situações de “portas giratórias” e ligações à extrema-direita. O Observatório Corporate Europe estudou os currículos dos novos nomeados para comissários, que ainda terão de passar pelo crivo dos parlamentares europeus.
À cabeça aparece o nome de Maria Luís Albuquerque, a ex-ministra das Finanças portuguesas que passou diretamente para os quadros da Arrow Global que geria 300 milhões de crédito malparado do Banif e viria a adquirir o fundo imobiliário Norfin.
No Parlamento Europeu, Catarina Martins defendeu que esta escolha tem de ser travada e que a proposta de von der Leyen se traduz numa Comissão Europeia “cheia de conflitos de interesses, em que se servem grandes interesses financeiros e económicos e vê-se muito pouco para servir as populações”.
Maria Luís Albuquerque a tutelar os serviços europeus? Sou só eu que vejo aqui um conflito de interesses?
#ParlamentoEuropeu #UrsulavonderLeyen pic.twitter.com/lhs1Hgdcgv— Catarina Martins (@catarina_mart) September 17, 2024
Além de Maria Luís Albuquerque, há outros quatro nomes propostos para a nova Comissão que apresentam situações de conflito de interesses neste levantamento do Observatório Corporate Europe. O nomeado para pasta do Clima, o neerlandês Wopke Hoekstra, já trabalhou para a Shell e foi investigado no ano passado no parlamento do seu país por suspeitas de promover a exploração de petróleo e gás no norte dos Países Baixos, recusando compensar as populações afetadas. O seu nome constou dos Pandora Papers por ter participação numa empresa registada no offshore das Ilhas Virgens Britânicas. Enquanto senador trabalhava também para a influente consultora McKinsey, cujos clientes incluem alguns gigantes da indústria fóssil, tabaqueira e farmacêutica.
Também a nomeada para a pasta do Alargamento entra na lista de conflitos de interesses da nova Comissão Europeia. A eslovena Marta Kos já foi atleta olímpica e recordista jugoslava de natação, antes de mergulhar no mundo da política, diplomacia e consultoria. No ano passado era conselheira senior de uma das consultoras e lobistas preferidas das grandes empresas como a Amazon, Google, BP, bancos e setor agroquímico. Segundo o Observatório Corporate Europe, ao serviço da Kreab, Kos não se inscreveu no registo da transparência, pelo que não se sabe quais os clientes com que trabalhava. Da República Chega para a pasta das Parcerias Internacionais vem Josef Síkela, atual ministro da Indústria e Comércio que chegou à política há três anos vindo de uma carreira de 30 anos na banca de investimento e comercial. No seu perfil na página do Governo apresenta-se também como consultor e parceiro do fundo Primefund.
Fora da lista dos conflitos de interesse, mas com um passado sob suspeita do ponto de vista ético, está a ex-governante búlgara agora apontada para a pasta das startups, investigação e inovação. Ekaterina Zaharieva já foi ministra em vários governos na última década, quase todos marcados por escândalos de corrupção. Um deles envolveu-a diretamente em 2018, quando uma ex-dirigente do organismo que concedia a cidadania do país a estrangeiros divulgou documentos que mostravam um esquema de venda de passaportes, implicando Zaharieva enquanto ministra da Justiça, a par do então vice-primeiro-ministro Krassimir Karakachanov e do eurodeputado Andrey Kovatchev, todos do partido GERB comandado por Boyko Borissov. A lançadora de alerta diz ter sido despedida por Zaharieva em 2016 por se ter recusado a participar no esquema, após a ex-ministra ter cedido às pressões de Karakachanov, o líder do esquema e que receberia entre 550 e 1500 euros por passaporte concedido aos “clientes”, todos macedónios. A denúncia afirma que quando a funcionária bloqueou a emissão de sete mil destes passaportes, começaram as pressões para a afastar. Zaharieva resistiu num momento inicial, mas mudou de posição após participar numa reunião organizada pelo eurodeputado Kovatchev com uma ONG búlgara na Macedónia. A resposta do primeiro-ministro ao escândalo foi anunciar o fim da agência responsável pela certificação da origem búlgara a cidadãos estrangeiros.
Ligações à extrema-direita
Além dos conflitos de interesses, o Observatório sublinha ainda outra novidade do segundo mandato de Ursula von der Leyen: a escolha de figuras próximas da extrema-direita europeia. Um dos casos é o Apostolos Tzitzikostas, que em nome da Nova Democracia governa a província da Macedónia Central e já presidiu ao Comité das Regiões da UE. A sua popularidade na região é superior à do partido e é conhecida a proximidade aos que têm abandonado a Nova Democracia pela direita. Após as recentes eleições europeias, a imprensa especulou se Tzitzikostas não seguiria o mesmo caminho, formando um partido regional à direita da Nova Democracia para captar o voto da extrema-direita. Mal foi eleito governador em 2013, Tzitzikostas fez questão de convidar os neonazis da Aurora Dourada para as comemorações do dia “Oxi”, que evocam a recusa do ultimato italiano de 1940. Ao escândalo nacional, incluindo no seu partido, o governador acrescentou achas para a fogueira, comparando o bando neonazi entretanto dissolvido pela polícia ao partido socialista PASOK. Em 2016, no auge da crise dos refugiados, Tzitzikostas fez questão de marcar a sua ausência na assinatura de um protocolo entre Salónica e o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados que melhorava as condições de acolhimento dos requerentes de asilo.
A aliança entre von der Leyen e Meloni fica selada com a nomeação do seu ministro para os Assuntos Europeus, Raffaele Fitto, para Comissário. Há décadas na política, presidiu à região de Apulia entre 2000 e 2005 e já foi deputado, eurodeputado e governante. Começou na Democracia Cristã e foi mudando de partido, cada vez mais à direita, até chegar aos Irmãos de Itália. A sua carreira inclui também acusações de corrupção, financiamento partidário ilegal e abuso de poder, pelos quais foi condenado em 2009. Quatro anos depois foi condenado a quatro anos de prisão e inabilitação de ocupar cargos públicos por cinco anos, mas após vários recursos acabou absolvido nos tribunais superiores. O mesmo destino teve a acusação de conspiração no tempo em que presidia à região de Apulia num negócio de venda de uma rede de supermercados em situação de falência, onde era acusado de nomear administradores próximos do empresário que os viria a adquirir a preço de saldo.
A terceira figura não é surpresa, na medida em que já exerce o cargo de comissário com a pasta do Alargamento. Na nova equipa, o escolhido de Viktor Orbán transita para a pasta da Saúde e Bem-Estar Animal, mas para isso terá, como os restantes, de passar pela aprovação dos eurodeputados. Uma tarefa quase impossível, tendo em conta que Olivér Várhelyi os chamou de “idiotas” com o microfone inadvertidamente aberto quando estes o questionavam durante uma sessão no ano passado sobre os Balcãs. Entre os exemplos de ir contra a posição de Bruxelas estão o seu apoio aos separatistas sérvios na Bósnia, o anúncio da suspensão imediata do apoio às autoridades palestinianas a seguir ao ataque do Hamas e o encontro com Netanyahu e Galant dias depois de ter sido pedido um mandado de captura pelo TPI aos dois criminosos de guerra, a par de uma conversa telefónica com o primeiro-ministro georgiano em que este se queixou de chantagem por o comissário referir a tentativa de assassinato do seu homólogo eslovaco. Vários analistas afirmam que a estratégia de Orbán é semelhante à que usou na anterior Comissão: deixar “queimar” o nome proposto para em seguida avançar com a sua verdadeira escolha, como aconteceu então com o próprio Várhelyi, que se tornou comissário após o chumbo de László Trócsányi devido a conflitos de interesse.