“Toda vez que sair mais um livro novo, leia um velho!” O conselho bem humorado e interesseiro na montra de uma livraria que vende livros em segunda mão dá nota de uma perceção muito comum nos nossos dias: será que não vale mais a pena atermo-nos aos clássicos em vez de perdermos tempo com os novidadeiros que, no mais das vezes, têm menos a dizer que os grandes do passado? E, além disso, o grau de especialização da linguagem parece aumentar à velocidade de gigabytes. Porque será que ninguém mais é capaz de escrever crítica cultural como o mestre Antonio Candido? Qual será a necessidade de complicar tanto?
Começo com estas perguntas porque o meu objetivo é tentar demonstrar que vale a pena ler Fredric Jameson, um crítico de cultura contemporâneo que fala, e muito, das novidades, das coisas, como dizia Brecht, novas e ruins dos nossos dias: tem um livro sobre a pós-modernidade onde fala até de vídeo-arte, dialoga com uma longa fileira de nomes da Teoria que enchem as nossas bibliotecas de novos jargões, e, ainda por cima, teve o seu estilo definido por um crítico, favorável, como “intrincado” ainda que lúcido. Como distinguir a lucidez na confusão das afirmações jamesonianas é tarefa do leitor que se lança na empreitada de aferir porque ele é o crítico de cultura marxista mais famoso da atualidade.
Vamos iniciar pela questão espinhosa do estilo. No seu primeiro grande livro, publicado em 1971, Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX (São Paulo: Hucitec, 1985), Jameson discute a política implícita no seu estilo. Grande leitor de Hegel, ele sabe que o verdadeiro assunto não se esgota no seu resultado, mas na sua elaboração. O objetivo do livro é trazer a boa nova da dialética ao público norte-americano, embebido na tradição do pragmatismo onde a clareza é a regra que simplifica o raciocínio. O assunto do livro é apresentar aos norte-americanos a tradição de crítica cultural do que se convencionou chamar de Marxismo Ocidental, ou seja, o da geração de intelectuais que se dedicou a explicar o funcionamento do capitalismo não mais preponderantemente do ângulo económico e político, mas do ângulo da cultura. Trata-se de um marxismo que não desistiu de mudar a organização da sociedade, mas que se vê historicamente obrigado a explicar um mundo onde as alianças com os movimentos de massa ficam cada vez mais complicadas.
Através de um estudo iluminador sobre as obras-chave de autores desta tradição – Georg Lukács, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Ernst Bloch e Jean-Paul Sartre – Jameson busca reinventar e propagar um marxismo mais adequado aos novos tempos. Ele mesmo se encarrega de caracterizar o momento histórico a que esse marxismo deve responder: trata-se do mundo da sociedade dita pós-industrial, que encobre a luta de classes sob a saturação dos meios de comunicação social, o mundo da fragmentação do sujeito, da disjunção entre a nossa experiência quotidiana e a expansão já então global do capitalismo, o do apagamento dos traços conflituantes da realidade da produção e do trabalho numa sociedade televisiva cada vez mais dominada pelas imagens.
A questão já nos anos 1970, diz ele, não é mais saber se “a guerrilha urbana pode vencer as armas e a tecnologia do estado moderno, mas antes saber precisar onde fica a rua no super-estado e, na verdade, antes de mais nada, descobrir se a rua de antigamente ainda existe nessa teia sem suturas do marketing e da produção automatizada” que constitui o capitalismo contemporâneo. Analisar esta nova situação é a tarefa de uma crítica de cultura relevante. Esta análise tem que re-elaborar, na contra-mão da fragmentação vigente, os grandes temas da dialética: a relação da parte com o todo, a oposição entre o concreto e o abstrato, o conceito de totalidade, a interação entre sujeito e objeto. Trata-se de forjar um idioma a contrapelo das tendências particularizantes do pensamento hegemónico segundo o qual cada acontecimento é único, desgarrado de determinações, e estabelecer as relações entre o intrínseco e o extrínseco, o existencial e o histórico.
Mas fazer isso implica utilizar uma forma que dê conta desse movimento contínuo de inter-relações e aí é que entram as afirmações dialéticas que desorientam uma leitura de “resultados” da sua obra. A forma de escrever de Jameson é uma maneira de evitar a instrumentalização do raciocínio, um dos modos de operação da falsa consciência. E se os ideais de clareza e fluência que são ensinados como norma nas escolas de humanidades fossem responsáveis pela tarefa ideológica de fazer com que o leitor passe rapidamente por uma frase feita e acabe por aceitar, “com entusiasmo e apressadamente, uma ideia pronta trivial, sem suspeitar que o pensamento genuíno exige um mergulho na própria materialidade da linguagem e a concessão do tempo necessário à reflexão?”
A prosa de Jameson intervém num debate em que estão em jogo conceções distintas do funcionamento da nossa sociedade. Segundo ele, a falência da tradição liberal e da prosa que a veicula é “tão evidente no nível filosófico como no político: o que não significa que tenha perdido o seu prestígio ou força ideológica. Pelo contrário, a inclinação anti-especulativa dessa tradição, a sua ênfase no facto ou no elemento individual em prejuízo da rede de relações na qual este elemento está inserido, continua a encorajar a submissão ao que existe, impedindo os seus seguidores de estabelecer conexões e, em especial, de tirar as conclusões de outro modo inevitáveis ao nível político”.
O leitor que se permite levar pelo ritmo desconcertante dos parágrafos pode ganhar uma nova perspetiva para pensar os principais itens na agenda da discussão intelectual do momento: quase todos eles são objeto da reflexão iluminadora de Jameson. Crítico literário de formação, o seu projeto, após Marxismo e forma, é tratar do que ele chama de Poética das Formas Sociais. A primeira escaramuça é com as conceções vigentes do que se convencionou chamar, em literatura, da crise da interpretação; a voga em 1981, ano da publicação de O inconsciente político (São Paulo: Ática, 1992), já era decididamente a que viria imperar até nossos dias, a da textualização da literatura, ou seja, uma conceção da literatura como artefacto verbal, com pouca ou nenhuma relação com o contexto sócio-histórico que a forma e informa. Desde a década de 1940, começo da era de ouro da Nova Crítica americana, a tendência dominante era a de tratar o texto literário como autónomo. A partir dos anos 1970 a predominância do pós-estruturalismo – o pai da desconstrução, Jacques Derrida, deu na universidade Johns Hopkins uma conferência que marca o começo da invasão pós-estruturalista em 1969 – veio sofisticar esse formalismo da Nova Crítica. O objetivo da análise literária passou a ser desmontar as oposições binárias que construíam a racionalidade do texto literário, a questão principal da crítica passou a ser não explicar o texto mas problematizar o seu uso da linguagem. Todo o movimento pode ser resumido no título de um influente livro da crítica nova-iorquina Susan Sontag: Contra a Interpretação.
O livro de Jameson vem inverter a direção do debate. Num ambiente onde estão todos a falar sofisticadamente da impossibilidade de se decidir sobre o sentido, ele coloca de forma convincente que não há nada que não seja histórico e social, e portanto inteligível para os que buscam essas determinações. A própria discussão sobre a possibilidade da interpretação é sintoma e reforço do processo acelerado de coisificação e alienação da vida social sob o capitalismo tardio: quanto mais as suas estruturas se tornam abstratas e disfarçam a realidade do trabalho e da exploração mais se fala na impossibilidade de entender este mundo, passo primeiro para modificá-lo; quanto mais se dá a separação entre o indivíduo isolado e a sociedade, mais este se percebe como uma mera engrenagem no processo social e menos como um agente ativo. Para os que insistem que a própria história é um texto, mostra que a história é o que “fere, o que recusa o desejo, o que coloca limites inexoráveis à prática individual e à coletiva”. Por mais que os críticos se esforcem por esquecê-la ou reprimi-la, transformando-a, por exemplo, em apenas mais um texto, podemos ter certeza de que as suas necessidades alienantes não vão se esquecer de nós.
A própria narrativa longe de ser um jogo aleatório de significantes é um ato social simbólico que busca resolver de forma imaginária, mas não por isso menos significativa, os conflitos reais da sociedade. A história do romance realista, traçada no livro através do exame da obra de Balzac, George Gissing e Joseph Conrad, é também a história da formação da subjetividade burguesa. Ele analisa a consciência relativamente unificada, auto-confiante e centrada dos primeiros romances de Balzac e mostra como esta consciência se transforma no princípio estrutural do romance, o género que vai articular essa subjetividade burguesa. A obra de Gissing é vista como o momento do desencanto com a instrumentalização e fragmentação dessa sociedade.
A crise atinge novo ponto de intensidade no século XX, com a expansão do imperialismo e a aceleração da mercantilização; o romance refugia-se numa intensificação da subjetividade, marca do modernismo, que funciona como uma compensação utópica pelo declínio da subjetividade na sociedade real. O movimento da leitura política advogada por Jameson restaura a riqueza de significados da produção estética, que é a um só tempo um complexo de aspirações e desejos e, também, um registo das limitações da história e da ideologia. Interpretar um texto literário equivale a libertar o inconsciente político reprimido por estas limitações e torná-lo disponível como força de revelação do processo histórico a que os textos literários dão forma.
A lógica cultural do capitalismo tardio
Entender este processo ajuda a compreender como ele atinge um ponto de exacerbamento inédito no nosso momento pós-moderno. Assim como em O inconsciente político a subjetividade e a própria forma literária são vistas como processos determinados por mudanças sociais constantes, o próximo estágio da sociedade, o da pós-modernidade, é interpretado como expressão de um novo estágio do capitalismo que, na esteira de Mandel, Jameson denomina de “capitalismo tardio”. Este argumento é desenvolvido no livro que o tornou conhecido em toda parte como um dos grandes nomes do pensamento contemporâneo, o Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio de 1991 (São Paulo: Editora Ática, 1996). De novo a sua intervenção muda todo o debate, levando-o para outro patamar. Quando alguns etiquetavam a nossa época como o momento do fim da história ou o do apogeu de uma nova ordem mundial que cobre todo o globo e se apresenta como o estado natural da humanidade, como o ponto de chegada de uma nova evolução que descentra o sujeito perdido nas pulsões libidinais de uma sociedade cada vez mais profundamente mercantilizada, o nosso autor demonstra que, longe de ser um momento inédito, trata-se de mais uma mutação do capitalismo.
Ernest Mandel já tinha dividido no tempo estas mutações: houve três momentos fundamentais do capitalismo, cada um marcando uma expansão dialética em relação ao anterior. Após a Revolução Industrial do século XVIII, tivemos um primeiro estágio, o do mercado, marcado pela tecnologia dos motores a vapor, depois um monopolista ou imperialista apoiado na tecnologia dos motores elétricos ou de combustão e, em meados do século XX, o estágio multinacional, marcado pela produção de motores eletrónicos ou nucleares e hoje oficialmente batizado de estágio da globalização.
O passo a frente que dá Jameson neste livro é demonstrar não só que a cada estágio correspondeu um estilo cultural – o realismo da era do capitalismo de mercado sendo sucedido pelo modernismo da fase metropolitana e pelo pós-modernismo de nossos dias – mas que a lógica que azeita o funcionamento do capital nessa sua fase de expansão máxima é cultural. Cada vez mais o sistema, agora planetário, necessita de uma sociedade de imagens voltada para o consumo para “resolver” as contradições que continua a criar. Se antes a cultura podia até ser vista como o espaço possível de contradição, hoje ela funciona de forma simbiótica com o capital: a produção de mercadorias serve a estilos de vida que são criações da cultura e até mesmo a alta especulação financeira se apoia em argumentos culturais, como o da “confiança” que se pode ter em certas culturas nacionais ou as mudanças de “humor” que derrubam índices e arrasam economias. A produção cultural também se tornou económica, orientada para a produção de mercadorias: basta pensar nos investimentos que funcionam como garantias do interesse de filmes de Hollywood. Nessa conjuntura, a crítica cultural pode ser um eficiente instrumento de descrição do funcionamento da sociedade.
Esta descrição é justamente o que falta à grande parte da crítica contemporânea: embora estejam todos a falar em cultura, poucos o fazem com a propriedade e poder descritivo de Jameson.
No livro ele elenca as características principais da pós-modernidade: uma nova superficialidade, o esmaecimento dos afetos, a fragmentação esquizóide do sujeito. No eixo temporal vemos o apagamento do sentido da história e, no espacial, a criação de um novo tipo de espaço horizontalizado, onde estamos fadados a perder-nos: segundo ele, “o hiperespaço pós-modernista finalmente conseguiu ultrapassar a capacidade do ser humano de se localizar, de organizar percetivamente o espaço circundante e mapear cognitivamente a sua posição num mundo exterior.” Nessas condições cabe à critica facultar justamente esse mapeamento cognitivo e remar contra a maré da fragmentação que vê cada fenómeno como desgarrado de determinações. Vale ainda o slogan dos anos 1960, “é preciso nomear o sistema” e estabelecer conexões, demonstrando que é possível pelo menos tentar mapear o seu funcionamento total. Este é um primeiro passo fundamental para não se cair nas balelas de que se trata de uma situação inexorável ou que a sociedade tal qual está organizada é o estado natural da humanidade.
As análises das diferentes manifestações culturais que compõem o livro – a arquitetura, o vídeo, a literatura, o discurso crítico, a retórica do mercado e o cinema – demonstram a possibilidade de se elevar nossa época do fragmentário, do único e do diferente a uma formulação “totalizante” que permite perceber o geral no específico, e ler as determinantes sócio-económicas na sua expressão cultural. O diferencial das análises de Jameson está justamente nessa abordagem dialética. Foi ela que lhe valeu o que o crítico britânico Perry Anderson chama, num artigo publicado na revista praga nº 2, de “vitória discursiva sobre todas as aberrações históricas no período de hegemonia contra-revolucionária, quando cada marco da esquerda parecia naufragar nas ondas da reação cujas cristas mostravam uma força maior do que quaisquer outras desde a Restauração.”
De facto, a sua descrição da nossa “Era da Cultura” onde todos os espaços da vida, incluindo até enclaves antes isolados como a natureza – hoje o reino do agro-business ou do turismo – e o inconsciente – bombardeado pelos meios de comunicação social e pela propaganda – foram conquistados pela mercadoria é convincente e esclarecedora. As suas análises das formas culturais dos nossos dias são também demonstrações do funcionamento do capital na sua fase planetária. A partir da intervenção de Jameson no debate sobre o pós-modernismo – e o leitor brasileiro têm à disposição, na coletânea Espaço e imagem (Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994) vários exemplos dessa intervenção – pode-se dizer que a esquerda virou o jogo na disputa das interpretações rivais da cultura contemporânea: agora é o nosso lado que apresenta as explicações mais produtivas e persuasivas e resta à direita a posição defensiva de tratar de empatar o jogo e apresentar uma explicação da cultura contemporânea que suplante esta.
Mas se você que me está a ler até aqui já está impaciente com tanta teoria, eu recomendo a leitura de ainda outro livro de Jameson editado no Brasil, Marcas do visível. Aí ele volta a sua atenção crítica a um dos produtos mais característicos de nosso tempo: o cinema. De novo a sua posição é notável. Num dos primeiros ensaios do livro, argumenta que tanto a crítica marxista tradicional quanto a sofisticada Escola de Frankfurt de Adorno e Horkheimer tendem a desprezar, por razões distintas, mas complementares, o cinema de massas. A crítica tradicional tende a examinar os filmes comerciais como instâncias da manipulação ideológica enquanto as visões mais refinadas os veem como exemplos dos produtos da indústria cultural, índices da degradação humana sob o capitalismo.
O nosso autor argumenta que certamente a cultura de massas está repleta de mecanismos de manipulação, diversão vazia e degradação. Por outro lado, o cineasta – ou o diretor de televisão – têm que efetivamente lidar com a realidade social e com os estereótipos de nossa experiência da vida quotidiana que são sua matéria prima. Para o bom observador, as contradições reais da vida social acabam por aparecer nessas obras, deixando a sua marca na forma e possibilitando ao crítico fazer a leitura das contradições figuradas nas obras. Certamente essa figuração das contradições será recalcada, mas antes disso as angústias e os desejos coletivos têm que ter uma presença efetiva para que possam ser depois “administrados” através da ilusão de uma harmonia social restaurada. É possível portanto uma leitura que destrince nos filmes comerciais um conteúdo político, tanto de revelação das estruturas efetivas da realidade como as utópicas, as que procedem dos germes de “novas formas do coletivo até hoje impensáveis” que afloram mesmo nos exemplos mais inesperados como no famoso “Tubarão” ou na trilogia de “O Padrinho”.
Como se vê, é vasta a gama de assuntos que chama a atenção do nosso crítico. Ainda disponíveis no Brasil temos uma série de três conferências sobre o pós-modernismo coletadas em As sementes do tempo (São Paulo: Ática, 1997), um livro instigante sobre Adorno, chamado Marxismo tardio: a persistência da dialética (São Paulo: Editora da Unesp; Boitempo,1990) e O método Brecht (Petrópolis, RJ: Vozes,1998, Coleção Zero à esquerda).
O livro sobre o dramaturgo alemão procura dar conta da utilidade da sua obra nos nossos tempos de exacerbação dos métodos tradicionais do capitalismo. Como se sabe, Brecht era especialista em desmascarar nas suas peças o cultivo das aparências com que a classe dominante costumava, em tempos em que ainda havia necessidade dessa pretensão, disfarçar sua dominação. Hoje tudo é escancarado e o próprio efeito de estranhamento, marca registada da encenação brechtiana que tinha o objetivo de levar o espetador à reflexão é hoje lugar-comum da propaganda. Como parte desse jogo, a receção crítica esvazia a obra de todo conteúdo político e apresenta-nos um Brecht filósofo ou um Brecht textualizado.
De novo em contramão, Jameson vai buscar em Brecht o combustível para uma retomada da consciência e da ação sociais nos nossos tempos de culto “narcísico à paralisia”. “Produtividade”, diz Jameson no livro, é o sentido mais profundo do progresso em Brecht e tem a ver com a atividade enquanto tal. “Esta associação de produção e produtividade com a própria atividade parece ser a forma mais adequada de redimir uma palavra tão estigmatizada que designa valores contemporâneos. É paradoxal que a era atual deva ser ideologicamente dividida por estes dois termos: os retóricos do mercado celebrando felizes a produtividade (mesmo que seja a produtividade do mercado financeiro), enquanto uma nova ortodoxia pós-marxista sistematicamente denuncia o conceito de produção como inadequado para uma era de informação e comunicação.” Como articulada por Brecht, a produtividade tem que ser histórica e coletiva, e assim assume sua utilidade e atualidade.
Eu mesma selecionei os seis ensaios que compõem o mais recente livro de Jameson a sair no Brasil, A cultura do dinheiro (Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, Coleção Zero à esquerda). De novo o foco de atenção é o presente do capitalismo mundializado, da assim chamada globalização. Mapeia o terreno onde se pode dar um debate fértil sobre a cultura de nossos dias. O primeiro e claro passo aqui é descartar o palavrório inútil dos julgamentos de valor: é necessário ir além do dérbi de ser ou super a favor, como se fosse possível ser contra, as novidades fantásticas da revolução tecnológica nas comunicações ou, a mesma coisa ao contrário, lamentar, como diz Jameson no livro, o “desaparecimento dos esplendores do moderno: as glórias e as possibilidades do modernismo nas artes, a perda da história bum mundo espacializado, ou, ainda, o fim de um campo de luta política essencialmente modernista, onde as grandes ideologias ainda tinham a força e a autoridade que foram, noutros tempos, das religiões.” Jameson demonstra neste livro que é possível levar o debate para além do ser contra ou a favor: a questão é construir um ponto de vista a partir do qual se possa criticar esse processo objetivo de mundialização e estabelecer estratégias de resistência a seus efeitos nocivos.
Claro que este livro não apresenta um programa de solução política à crise de nossos tempos, mas ele lembra que um regresso a certos modos de luta da história da resistência socialista às agruras do capitalismo pode estar de novo na ordem do dia: pode ser de novo o momento de se reativar a velha palavra de ordem dos movimentos operários ingleses do século XIX: combinação. E vale lembrar que a combinação de forças sociais já demonstrou a que veio, em lugares como Seattle e Porto Alegre.
Mas se o programa da luta se forja na prática, as possibilidades críticas formam-se na teoria e este livro mostra como se pode fazer uma crítica produtiva à cultura do dinheiro. A primeira questão aí é a do ponto de vista. Já sabemos que Jameson faz a sua crítica a partir do materialismo histórico e, portanto, o da relação entre um fenómeno específico e a totalidade em movimento. Acho que nesta altura, já está claro que diferença isso faz. No caso em questão, desmonta, de saída, um dos primeiros artigos de fé dos apologistas da globalização: tratar-se-ia de mais um momento único na história da humanidade, uma consequência inescapável do desenvolvimento tecnológico. Jameson mostra que se trata de mais uma etapa no desenvolvimento espiral de um modo de produção que pode ser mudado. Aos que colocam o nosso momento como algo absolutamente inédito na história da humanidade que agora se completa, demonstra que o desvinculamento da situação contemporânea da do passado é a ideologia em estado bruto de nosso tempo. Partindo agora da narrativa histórica de Giovanni Arrighi em O longo século vinte (Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora da Unesp, 1996), Jameson vai mostrando que o nosso momento é apenas mais um estágio do desenvolvimento histórico do capital: trata-se da encenação do estágio de outono, o financeiro, que ao longo da história sucede os estágios de implantação e de desenvolvimento do capital. Mas é lógico que, sem prejuízo da sua historicidade este nosso momento tem as suas características específicas e cabe ao crítico explicitá-las: este o importe dos ensaios do livro.
Acho que a esta hora, leitor, já está evidente que para mim Jameson apresenta explicações contundentes e esclarecedoras do processo de funcionamento da sociedade contemporânea. Por isso vale a pena tentar compreender os seus argumentos. Podemos certamente discordar de muitos deles, mas fica difícil entrar no debate intelectual contemporâneo sem ter em conta a sua contribuição decisiva.
Maria Elisa Cevasco é professora de literatura da Universidade de São Paulo, autora de “Para ler Raymond Williams” (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001) e organizadora de “Fredric Jameson, A cultura do dinheiro” (Petrópolis, RJ: Vozes, 2001).
Texto publicado originalmente na página da Insurgência. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.