Violência policial

Polícia invadiu casa de família em luto, protestos sobem de tom

23 de outubro 2024 - 11:19

Pela segunda noite consecutiva, a indignação com a morte de Odair Moniz, baleado pela PSP, tomou conta das ruas do bairro onde vivia e alastrou a outros bairros da Grande Lisboa. Bloco questionou ministra sobre o arrombamento da porta da casa de Odair, onde a família fazia o luto, por parte de agentes encapuzados.

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Agentes da PSP nas ruas do bairro do Zambujal
Agentes da PSP nas ruas do bairro do Zambujal. Foto Miguel A. Lopes/Lusa

Esta terça-feira à tarde realizou-se uma vigília em memória de Odair Moniz, o cozinheiro de 43 anos residente no bairro do Zambujal que foi morto pela polícia na Cova da Moura. A população do bairro não esconde a indignação quer pela morte de Odair, quer pela forma como foi retratado pela PSP e nos media, como se fosse “suspeito” de qualquer crime. Os testemunhos confirmam a popularidade que conquistou no bairro, onde é descrito como uma pessoa afável e trabalhadora, que acumulava o trabalho num restaurante de Benfica com o de um café que abriu com a mulher no bairro e que servia de ponto de encontro dos moradores.

Ao final da tarde regressaram os pequenos focos de incêndio ateados nas ruas em protesto contra a violência policial. Mas desta vez a dimensão do fogo foi outra: o incêndio de um autocarro da Carris acabou por servir de combustível mediático para as televisões, ao repetirem essas imagens até de madrugada. Ainda os bombeiros apagavam as chamas, já um grupo de agentes policiais se dirigiam ao prédio onde morava Odair. “Quando vimos que estavam a subir, corremos para dentro da casa”, contou à revista Visão a sobrinha, Débora Silva.  

“Entrámos, fechámos a porta, mas eles rebentaram-na”, acrescentou Débora, que diz ter sido agredida “nas costas e no rabo” enquanto tentava fugir para a sala. Também lá estava Joel, um amigo do filho mais velho de Odair, que diz ter sido agredido pelos agentes encapuzados “num braço e num dedo”. Segundo a Visão, foi Mónica, a viúva de Odair, a travar os polícias empunhando a foto do marido e gritando aos agentes que estavam a entrar “na casa de um homem que morreu”.

Pouco depois, já com a advogada da família e uma equipa da TV Record em casa, a polícia voltou a aproximar-se. “Se não fosse a TV Record, eles voltavam e iam dar-nos porrada”, acredita Débora. Com os jornalistas a filmar, um agente pediu à família a quem tinha acabado de inutilizar a porta de casa que “fizessem um luto cívico”.

Em comunicado, a PSP “nega categoricamente o arrombamento de quaisquer portas” e diz que só entrou noutra casa em apoio aos bombeiros que tinham sido chamados para dar apoio médico a uma criança.
 

Os protestos no bairro do Zambujal alargaram-se a outros bairros da periferia da capital, como o da Portela, em Carnaxide, onde também foi incendiado um autocarro. Segundo a PSP, foi arremessado um objeto contra a esquadra do Casal de Cambra, no concelho de Sintra, sem causar danos, enquanto na Damaia (Amadora) houve caixotes do lixo incendiados e rebentaram-se petardos. Fonte da PSP adiantou à Lusa que três pessoas foram detidas no concelho da Amadora, duas por incêndio e agressões a agentes policiais e outro por incêndio e posse de material combustível. Ao todo, a PSP diz ter registado “60 ocorrências de desordem e incêndio em mobiliário urbano (maioritariamente caixotes do lixo) na Área Metropolitana de Lisboa, nos concelhos de Lisboa, Amadora, Oeiras, Odivelas, Loures, Cascais, Sintra e Seixal tendo sido ainda apreendido diverso material inflamável”.

Bloco questiona ministra sobre invasão de domicílio da família enlutada

“A confirmarem-se, estes factos são gravíssimos e violam de forma flagrante os mais elementares direitos dos cidadãos, o Estado de Direito e a confiança da sociedade nas forças de segurança”, afirma o líder parlamentar do Bloco de Esquerda Fabian Figueiredo numa pergunta dirigida à ministra da Administração Interna. “Para além da morte de um cidadão baleado pela polícia – cujas circunstâncias terão que ser devidamente escrutinadas -, podemos estar perante uma operação policial que não cumpriu a lei e que, portanto, foi ilegal, desproporcional e desnecessária”, defende o deputado bloquista.

O Bloco quer que Margarida Blasco dê explicações sobre as razões que motivaram esta invasão de domicílio sem mandado judicial, quem deu a ordem e qual a razão para os agentes não estarem identificados, questionando ainda a ministra sobre se irá instaurar um inquérito aos agentes envolvidos.

Investigação aponta para “excesso de legítima defesa”, SOS Racismo quer que apuramento de responsabilidades inclua a cadeia de comando

Segundo a CNN Portugal, a investigação à morte de Odair Moniz aponta até ao momento para um “excesso de legítima defesa” do polícia autor dos disparos, configurando um uso desproporcional e injustificado de força, com recurso a meios letais. O agente foi constituído arguido e afastado do serviço.

 

Esta terça-feira a associação SOS Racismo condenou a morte de Odair Moniz, apontando a vítima como mais um na “longa lista de pessoas negras mortas às mãos da polícia de segurança pública” e cuja morte “acontece num contexto político de exacerbação do discurso de ódio e de um securitarismo estigmatizante dirigido às comunidades negras“.

A primeira versão policial dos acontecimentos que culminaram com os disparos fatais é também posta em causa pela associação, lembrando que “em todos os casos de brutalidade policial que resultaram em mortes de cidadãos negros, racializados, a PSP nunca foi convincente sobre as condições e motivos destas mortes“. A SOS Racismo sublinha ainda que a PSP está “inegavelmente infiltrada pela extrema-direita racista”, pelo que “as mortes de pessoas negras às mãos de agentes policiais levantam as maiores dúvidas e preocupações sobre as reais motivações das intervenções”. Por isso exige um inquérito que apure responsabilidades, “incluindo as da própria cadeia de comando” e denuncia o “padrão de intervenção policial que opta por uma espécie de exceção jurídica em que a violência e a morte nos territórios e corpos habitados por pessoas negras passam a ser uma regra”.

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