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Palestina: “Silêncio e indiferença só beneficiam o opressor”

Foi inaugurada no dia 8 de agosto, na Galeria da Faculdade de Belas-Artes, em Lisboa, a exposição "Identity & Land", de Rita Andrade. Nesta exposição, que ficou patente neste espaço até 26 de agosto, a artista visual, e ativista, denuncia a violência e o terror da ocupação israelita na Palestina.
Rita Andrade explicou ao Esquerda.net o que fez despertar o seu interesse para a situação na Palestina, falou sobre a sua experiência durante a viagem, realizada em 2019, a território palestiniano e destacou a importância de quebrar o silêncio face à ocupação militar e o apartheid promovidos pelo regime israelita.
No vídeo que acompanha a exposição Identity & Land, preparado para a apresentação, em 2021, da exposição I Can’t Breathe Since 1948, afirmas que a situação da Palestina era um “assunto desconhecido” para ti, e que o teu interesse por esta questão surgiu em maio de 2018, altura em que assististe a um concerto de Roger Waters. Podes explicar-nos por que razão esse evento te marcou tanto?
Na altura eu estava prestes a entrar no quarto e último ano do curso de Pintura, na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Ia terminar o curso e sentia que ainda não tinha encontrado o meu caminho na pintura. Não acreditava verdadeiramente em nada do que produzi naqueles três anos e estava desmotivada. Sentia que o que fazia era para tentar agradar os professores e não porque eu realmente acreditava no que estava a fazer.
Quando fui ao concerto do Roger Waters, da tour “Us and Them”, vi um homem que luta pelo que acredita, bate o pé perante as injustiças e fá-lo através da sua arte, da música (que é verdadeiramente INCRÍVEL). Eu nunca tinha visto nada assim. O concerto tocou bastante na causa Palestina e também no fascismo que encontramos nos dias de hoje.
Imagem do vídeo exibido na exposição "Identity & Land". Foto Esquerda.net.
Depois do concerto, fiquei cerca de uma semana em processo mental a tentar absorver e decifrar tanta informação transmitida de uma forma absolutamente arrebatadora. E estava feliz porque percebi que, finalmente, tinha encontrado inspiração e razão para o meu trabalho, para a minha arte. Eu queria fazer o mesmo que o Roger, utilizar a arte, no meu caso a pintura, para falar sobre crises humanitárias e ausência de direitos humanos visíveis e invisíveis pelo mundo fora.
Se eu pudesse um dia falar com o Roger, a primeira palavra que lhe diria seria OBRIGADA. Obrigada por me ter ajudado a ser a artista que sou hoje e que sei que nunca deixarei de ser, porque é nesta dimensão que encontro a razão de ser do meu trabalho. Sim, tornei-me numa artista ativista.
Foto Esquerda.net.
Em agosto de 2019 viajaste para a Palestina. Como surgiu a ideia desta viagem, em que contexto ela se realizou e quais eram as tuas expectativas?
A ideia surgiu depois do que vi no concerto do Roger Waters. Antes do concerto eu mal tinha ouvido falar da Palestina. Depois do concerto senti uma forte necessidade de saber mais e mais sobre a situação.
Todos os anos fazemos uma viagem de família. No verão de 2019 dei a ideia de irmos à Palestina, mas irmos sem nada planeado, a não ser o hotel e os voos, e entregarmo-nos por completo ao que a viagem nos fosse dando.
As minhas expectativas eram de aprender e aprofundar mais sobre a situação palestiniana. Queria falar com o povo e ver a realidade com os meus próprios olhos. Fui sem ideias formatadas e de mente aberta para falar com o máximo de pessoas que conseguisse.
Rita Andrade durante a inauguração da exposição "Identity & Land". Foto publicada na página de Facebook da artista visual.
No vídeo que já referi, és perentória ao frisar que “os palestinianos não têm direitos humanos”, e que não se trata de um conflito, existindo, isso sim, “um opressor e um oprimido”. De que forma aquilo que testemunhaste e aquilo que te foi relatado durante a tua viagem, bem como as informações que recolheste, sustentam esta afirmação?
Fiquei com essa sensação assim que estava a embarcar para o voo ainda no aeroporto de Lisboa. O controlo de segurança até entrarmos no avião pareceu-me exagerado. Quando aterramos, somos bombardeados de perguntas, o que nos faz sentir desconfortáveis.
ma amiga minha já tinha ido à Palestina e avisou-me que não dissesse no aeroporto que planeávamos ir a território palestiniano, pois podiam nem nos dar autorização para sair do aeroporto.
Durante os 12 dias que estivemos lá, assistimos a uma grande pressão por parte das forças armadas israelitas. Até na Mesquita de Al-Aqsa, o terceiro lugar sagrado do Islão e onde os palestinianos muçulmanos vão rezar, vemos um controlo imenso de segurança Israelita dentro de um templo de oração. O Palestinianos que ali estão, para rezar, rezam com militares armados a controlar os seus movimentos. As forças armadas israelitas circulam dentro deste templo sagrado, de arma ao peito e dedo no gatilho e impõe restrições de horas para que se possa ir rezar.
Onde há forças armadas, com check-points por todos os lados, os palestinianos passam de cabeça baixa, oprimidos e com medo. Sentia-se que qualquer coisa que pudessem dizer, que não soasse bem, estariam em grandes sarilhos. Chegámos a presenciar uma situação estranha com um simples vendedor de fruta, os militares gritavam-lhe e ele nem reagia.
O nosso hotel era em Jerusalém, numa zona árabe e todo o staff era palestiniano. Contaram-nos muitas histórias de familiares que fugiram do território e que não podem regressar. Este é um dos direitos por que lutam os palestinianos, o direito do regresso dos refugiados desta guerra às suas terras.
Podia escrever quase 5 páginas com exemplos em que vi e senti discriminação, mas queria concluir esta pergunta dizendo que para mim a situação na Palestina não é um conflito. É mais do que isso. É vermos alguém muito mais forte (Israel) a oprimir o outro (Palestina). É vermos uma crise humanitária, é vermos a falta de direitos, é vermos os checkpoints em toda a parte, onde nós podíamos passar com facilidade por sermos turistas num carro alugado, mas onde víamos o quão condicionados estavam os palestinianos. É vermos muros altíssimos com arames farpados por toda a parte que rodeia territórios palestinianos. Estas terras são autênticas prisões a céu aberto.
Quais foram as fontes de inspiração dos quadros que compõem a exposição Identity & Land? Consegues identificar algum que se destaque pela situação que retrate ou por qualquer outro motivo?
A minha maior fonte de inspiração foi, claro, a viagem, principalmente as pessoas que conheci e com quem falei. Os testemunhos delas, fotografias que tirei, os cheiros, a memória e sonhos que ainda tenho desses dias.
Considero-me uma pessoa bastante sensível e sofro com as injustiças, sejam aqui ao meu lado, ali no vizinho, no meu país ou no mundo. Voltei para Portugal e queria fazer algo por um povo que vi tão oprimido e tão injustiçado. Ia então começar o quarto e último ano do curso. Apresentei a minha proposta de projeto aos professores, um projeto em que conto a realidade dos palestinianos, o qual foi muito bem recebido. Senti-me pela primeira vez realizada com as minhas obras e confirmei que aquele era mesmo o meu caminho.
Todas as telas são especiais, é difícil destacar apenas uma, mas vou falar de duas. A tela “Burnt” é uma representação do ato cruel de queimar as oliveiras. As forças armadas Israelitas queimam as oliveiras, que são a maior fonte de rendimento dos palestinianos, como forma de os expulsarem. Estas oliveiras estão nas suas famílias há muitos anos e perdê-las é como um fim. É quase como se tivesse morrido alguém que lhes é chegado. Decidi utilizar tons quentes e deixar apenas o véu da mulher a branco, dando a ideia de que nem tudo está perdido, nunca!
Foto Esquerda.net.
A outra tela que gostaria de destacar é “The Last Supper”. Á mesa encontramos todos os personagens que estavam representados nas pinturas anteriores. Mas esta não é apenas uma mesa. Jesus não está presente e a única figura de “A Última Ceia” de Leonardo da Vinci que mantive foi Judas. No centro, a observar o deserto, estou eu, sendo o elo de conexão que tenta desafiar ambos os lados (Israel e Palestina) a falarem.
Foto Esquerda.net.
Quando nos sentamos à mesa, para uma refeição, para um café, entramos num momento em que as pessoas conversam. Podem ou não concordar com tudo, podem ou não arranjar soluções, mas se não insistirmos na discussão de caminhos possíveis para a paz, então não haverá forma de pôr um fim às sistemáticas violações dos direitos dos palestinianos.
Já se tentou várias vezes chegar a acordo, nos Acordos de Camp David em 1979, nos Acordos de Paz de Oslo, em 1993 e 1995, e com propostas de paz por parte dos EUA.
Todas as tentativas de paz beneficiavam mais Israel, sendo que há outros interesses que se sobrepõe à paz e à segurança. Mas não podemos deixar esta situação de lado e há que continuar a ter esperança.
Dás bastante ênfase à questão do silêncio perante a ocupação militar, o apartheid e a limpeza étnica promovidos pelo regime israelita. Consideras que tem existido indiferença perante o sofrimento do povo palestiniano ou até mesmo branqueamento das atrocidades cometidas por Israel? E, na tua opinião, ficar em silêncio é ser cúmplice, é escolher o lado do opressor?
Queria começar a resposta a esta pergunta por demonstrar a minha satisfação ao ver que Portugal foi o primeiro país da Europa a reconhecer a Nakba e a condenar a ocupação e o expansionismo israelita. É um grande passo que a Assembleia da República tenha reconhecido esta catástrofe que assinalou as deslocações e expropriações em massa de palestinianos das suas casas e terras levado a cabo por forças israelitas.
Foi Desmond Tutu que o disse, em 1986: “Se és neutro em situações de injustiça, escolhes o lado do opressor”. Existe um branqueamento, motivado por interesses, e se mais países reconhecerem a Nakba, maior a possibilidade de mudar alguma coisa… mas o silêncio e indiferença só beneficiam o opressor, pois assim nada muda.
O maior branqueamento é mesmo por parte de Israel. Por exemplo, fazem com que a cidade de Tel Aviv seja vista como um excelente destino turístico, e diz-se ser uma cidade que recebe muito bem a comunidade LGBTQ+. Esta propaganda ajuda a braquear o resto. Vemos muita gente que viaja a Tel Aviv, um suposto espaço de tolerância e de liberdade, e nem fazem ideia da diferença, da opressão e da intolerância que se passa paredes meias com a cidade.
Perante aquilo que identificaste como um processo de extinção da Palestina a Cultura, e, neste caso específico, a pintura, pode ser uma arma importante pela libertação e pela soberania do povo Palestiniano?
A arte é uma forma não violenta de me expressar e de protesto. Vemos que muitas vezes os protestos geram conflitos, mas a arte toca de uma forma diferente por ser uma forma de comunicação pacífica. Afinal, se não fosse o concerto do Roger Waters, e a sua arte, provavelmente não me teria interessado pela situação na Palestina. Porquê? Porque muitas vezes o que vemos na televisão cansa-nos. A arte pode ter uma força maior do que palavras, porque palavras ouvimos muitas, repetidas todos os dias da mesma forma. Por isso, sim, a arte pode gerar discordâncias, mas pode também chegar a mais corações e despertar mais consciências.
Fiz a minha primeira exposição em apoio à Palestina, em 2021, chamada “I Can’t Breathe Since 1948”. Depois fui para Londres fazer o mestrado em Art and Politics, na Goldsmiths, University of London. Nesse tempo abracei uma outra causa: as crianças nas Honduras. Fui às Honduras onde estive 15 dias a visitar escolas e instituições de apoio social. Juntamente com uma ONG local, organizámos 4 exposições por 4 cidades nas Honduras. Parte dos fundos foram doados a esta ONG, a educate, que trabalha na construção de escolas e bibliotecas, como forma de tirar as crianças das ruas. Nas Honduras, as crianças estão em constante risco de se juntarem a grupos de tráfico de droga e de violência.
“Identity and Land”, inaugurada no passado dia 8 de agosto, foi mais uma exposição em apoio à Palestina, porque queria voltar a pegar no tema.
E de uma coisa tenho a certeza: muitas pessoas que visitaram as duas exposições ficaram a conhecer melhor a realidade desta guerra. E muitas, tal como eu antes do concerto, provavelmente desconheciam tal terror.
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