Foi em 2010 que Catarina Martins apresentou, pela primeira vez, o projecto de lei que “Cria a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses”, fruto de dezenas de reuniões em todo o país com centenas de pessoas do sector e milhares de quilómetros percorridos. Se a sua necessidade era clara no terreno, isso não se traduzia no Parlamento.
Em nove anos, nenhum governo nem nenhum outro grupo parlamentar avançou com uma proposta própria, mas a Rede entrou nas reivindicações do sector. Em Janeiro de 2019, o projecto foi aprovado na generalidade com os votos a favor do Bloco, PCP, PEV, PAN, e a abstenção do PS, PSD e CDS. Seguiu-se um inexplicavelmente longo trabalho de especialidade de quatro meses que terminou com o projecto alterado num ponto essencial, por força do PS, PSD e CDS: o Ministério da Cultura deixou de estar obrigado ao co-financiamento dos teatros, através de contratos-programa plurianuais com dotações inscritas no Orçamento do Estado.
Mesmo com esta redacção, a aprovação do projecto não deixa de ser um marco incontornável no desenvolvimento das políticas públicas de cultura, um dos dois (e únicos) passos de gigante realizados durante a Geringonça na Cultura (a par do alargamento dos canais de serviço público disponíveis na TDT, também por proposta do Bloco de Esquerda, particularmente importante no acesso à informação por parte de populações mais envelhecidas ou com menos rendimentos), sobre o qual será necessário construir a descentralização do acesso à cultura a que a Rede procura responder.
A alteração transformou o projecto num mecanismo de certificação de estruturas para inclusão na Rede e de financiamento parcial da sua programação, mas não de recursos humanos ou gestão dos espaços. Quantos municípios no país têm capacidade para aguentar equipas técnicas, de produção e direcção artística, sem responsabilização do Estado?
No final de Dezembro de 2020, o Governo colocou em discussão pública (que termina a 11 de Janeiro próximo) um Decreto-Lei que define o regime de apoio à programação das estruturas que integrem a Rede, e uma Portaria que regulamenta e define os critérios para credenciação de uma estrutura que se candidate a integrar a Rede. As alterações introduzidas na Assembleia da República reflectem-se nestes documentos.
Segundo a Portaria, para integrar a Rede, um teatro necessita de garantir equipas internas e estáveis de direcção artística ou de programação; direcção técnica; técnicos com competências nas áreas de som, luz, audiovisual e palco; produção; comunicação; serviço educativo e mediação de públicos. E está certo. Mas como? Consigo lembrar-me de cinco teatros municipais com orçamento que lhes permitam cumprir estes requisitos.
Simultaneamente, no artigo 8.º do Decreto-Lei, “não são considerados, no âmbito do programa de apoio, os encargos com os recursos materiais e humanos necessários à manutenção, gestão e actividade dos teatros”. Como espera o Governo garantir “a estabilidade, qualidade e consolidação da programação dos teatros, cineteatros e recintos” que integram a Rede, se a maioria dos teatros não terá meios próprios para garantir equipas a trabalhar nos teatros?
O efeito perverso destas limitações será, por um lado, promover a precariedade das equipas e, por outro, promover programações sem qualidade nem regularidade. Precisamente o oposto do que se pretende com a formalização da Rede de Teatros e Cineteatros.
Não se trata de retirar obrigações às autarquias locais. Pelo contrário. “É às Autarquias Locais que cabe a responsabilidade de realização dos investimentos públicos nos seus Teatros e Cineteatros. Ao Ministério da Cultura compete a concessão de apoios financeiros necessários para implementar os mecanismos que permitem que os Teatros e Cineteatros se constituam enquanto Rede, bem como co-financiar cada um dos Teatros e Cineteatros através de contratos-programa plurianuais e promover o profissionalismo da sua actividade e equipas, através de programas de qualificação e de formação profissional contínua”, escrevemos no projecto de lei original.
O regime de apoio à programação proposto pelo Governo, não financiando custos fixos das estruturas, cria também uma confusão perigosa entre o financiamento da Rede e o apoio à criação independente, uma perversidade que colocaria em causa a criação artística no país.
Acrescem, ainda, outros três problemas: de tempos, de verbas e de gestão. Já não será para 2021 que a Rede e o programa de apoio serão implementados, mas apenas em 2022. Num ano em que seria absolutamente necessário que os teatros e cineteatros se desenvolvessem para combater a crise no setor, teremos um Governo em reflexão. É uma oportunidade perdida. Mas, sobretudo, continuamos sem saber de que verbas disporá a Direção-Geral das Artes para este programa de apoio. Verbas que não existem no Orçamento do Estado para 2021, nem a Ministra da Cultura apresentou qualquer previsão ou plano para 2022.
As orquestras regionais deviam dar lições e avisos importantes para a gestão dos teatros e cineteatros que integrem a Rede. Criadas em parceria entre o Estado e as autarquias locais da área de influência de cada orquestra, rapidamente se tornaram insustentáveis devido à incapacidade das autarquias em garantirem o financiamento acordado. Simultaneamente, a Direcção-Geral das Artes mostrou-se sucessivamente incapaz de garantir os fluxos de verbas no calendário previsto, criando dívidas salariais e a fornecedores em maior ou menor grau de gravidade. Estes diplomas arriscam colocar a Rede no mesmo círculo vicioso de gestão deficitária.
Não deixando de ser uma alteração histórica nas políticas públicas, os diplomas agora em discussão não permitem garantir os objectivos a que nos propomos com a criação da Rede: “O Estado Português deve, em colaboração com todos os agentes culturais, incentivar e assegurar o acesso a toda a população aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país e articular a política cultural”. Serão necessárias maiorias à esquerda para o fazer.
Artigo publicado no jornal Público a 9 de janeiro de 2021.