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Os ‘cristãos-novos’ e a colonialidade no debate público português

Em agosto último, o presidente do Partido Social Democrata, Luís Montenegro, apresentou um conjunto de medidas económicas que receberam alguma atenção dos veículos da comunicação social portuguesa. Não obstante as opiniões multifacetadas sobre as propostas apresentadas, praticamente todas as emissoras de rádio e televisão, bem como as páginas da imprensa escrita, eximiram-se de comentar a linguagem utilizada por Montenegro ao referir-se a “cristãos-novos”, em alusão àquilo que considera uma recente conversão dos governantes socialistas à doutrina das “contas certas”.
Independente da posição de cada um sobre as políticas de austeridade (ou das memórias que cada segmento da população guarde em relação aos anos da Troika), é deveras preocupante que uma prática discursiva desta natureza tenha passado quase despercebida no debate público português. O breve alerta de José Adelino Maltez no Jornal Económico – que classificou como “infeliz” o emprego daquela expressão[1] – serve apenas como a exceção que confirma a regra, além de mostrar que a única objeção realizada tenha vindo de uma figura da direita (talvez preocupada em domesticar o discurso de seu campo político) enquanto o silêncio foi maiúsculo entre os círculos de esquerda, ou progressistas, em geral.
Pode-se argumentar que o tema não é tão relevante e que os setores populares possuem outras preocupações mais urgentes, o que é uma verdade parcial. No entanto, a metáfora dos “cristãos-novos” é forte demais para ser ignorada, pois sua carga semântica não permite desviar a atenção dos temas que sub-repticiamente são evocados. Em primeiro lugar, para um país como Portugal, a Inquisição, com suas práticas desumanas de limpeza étnica e terrorismo estatal-religioso, deveria ser um tema sensível demais para servir de mero exemplo, muito menos de um exemplo positivo, como na fala do líder da oposição: a existência de “cristãos-novos” deveu-se ao sucesso da Inquisição em realizar o seu projeto etnocida. Devemos mesmo celebrar a existência de novos convertidos a qualquer doutrina mediante tal memória histórica?
Tais conversões foram arrancadas mediante cruéis torturas físicas e psicológicas, punições económicas e destruição de reputações. Seu emprego por vozes neoliberais hoje, por outro lado, revela que as medidas de austeridade também precisam de violência e coação política para serem impostas. Uma prática já denunciada no Sul global em sua luta contra o FundoMonetário Internacional (FMI), agora novamente reconhecida pelo “infeliz” uso da analogia inquisitorial. Em um momento que coincidiu com a visita de um Papa ao país, espanta que outras vozes da direita (ou da Santa Sé) não tenham reprovado publicamente a expressão que alude aos mais nefastos períodos da história da Igreja Católica e dos países ibéricos. Mais ainda, é de se espantar o silêncio das vozes mais à esquerda face a normalização aberrante de uma linguagem que - dispensando eufemismos – é, em si, racista e genocida.
Não se trata, portanto, de condenar Montenegro individualmente, a exemplo do acontecido no caso de Jeremy Corbyn enquanto líder da oposição no Reino Unido, quando foi difamado por acusações (infundadas) de antissemitismo que lhe custaram a carreira política. Se os sujeitos são constituídos pelos discursos, então devemos interrogar as condições discursivas que tornaram possíveis a Montenegro sair ileso, ao passo em que Corbyn tenha sido aniquilado. Seriam diferenças entre o Reino Unido e Portugal? Entre direita e esquerda na cobertura mediática? Por que algumas associações judaicas se manifestaram lá (contra e a favor), enquanto aqui houve silêncio, até o momento? Na Espanha, o debate público permite tais assertivas? Quais as posturas das associações – e nações – islâmicas frente a tal linguagem normalizada no debate público português? Estará isso de acordo com os valores que orientam a União Europeia? Imaginemos, por um segundo, se as crianças raptadas na Ucrânia passassem a ser chamadas de “russos-novos”: não seria um ultraje mais do que “infeliz”?
A situação é mais grave quando os órgãos da comunicação social propositadamente escolheram esta infeliz expressão para dar destaque em suas manchetes sobre o discurso do líder social-democrata na Festa do Pontal. Um destaque, vale dizer, desprovido de qualquer menção crítica. Mais do que negligência jornalística, portanto, o que se viu foi um ato voluntário e coletivo, porém não deliberado conjuntamente por aqueles que o praticaram, que termina por revelar o substrato ideológico comum a todos os que escolheram pinçar esta expressão durante a sua cobertura jornalística. Para quê?
Se o uso de Montenegro foi propositado ou não, também é outra importante questão de interesse público, não apenas individual. Pode ser que o apelo à anterioridade no que se refere à doutrina da austeridade fiscal meramente revele certa falta de estratégia de um partido que teve sua agenda política roubada pela crescente ortodoxia econômica dos governos do Partido Socialista. Contudo, caso este gesto faça parte de um aceno a setores de extrema-direita, o episódio passa a ter uma dimensão sombria evidente. E mesmo se o uso da expressão tiver sido irrefletido ou inconsciente, não podemos jamais descuidar daquela dimensão menos visível e que já seria desafiadora por si própria, pois os germes do fascismo somente avivam-se num ambiente discursivo que normaliza a barbárie, mesmo que histórica.
Em Coimbra, felizmente, existe um Pátio da Inquisição, onde encontra-se um pequeno museu que ajuda a perceber a importância desta história. Naquele local, foi instalado o Tribunal do Santo Ofício até 1821, ano em que foi abolido. “É no mínimo irónico que no mesmo espaço em que funcionou um colégio com vista à difusão de ideias renascentistas e humanistas, viesse a funcionar a sede de uma instituição repressiva que visava julgar, reprimir e condenar essas mesmas ideias”, dizem os seus curadores, cobertos de razão[2]. É, porém, bem mais do que irónico. Trata-se de um passado incómodo, mas que precisa de ser lembrado justamente porque a preservação da memória é um ato político do tempo presente.
Quando estive neste museu, senti o mesmo calafrio que também senti no agora museu de Auschwitz, na Polónia. Uma sensação desagradável, para dizer o mínimo; mas com o máximo de valor social: as excursões escolares israelenses ao mais emblemático campo de concentração nazi falam por si próprias. Iniciativas como o Pátio da Inquisição, assim, são das mais valiosas nesta batalha de narrativas que servem de base para os rumos do debate público português. Será incauto, ou utópico demais, pensar em excursões escolares de todo país para visitá-lo e, assim, terem a chance de vivenciar esta experiência histórico-sensorial?
Por outro lado, também em Coimbra, há um Tribunal, que não é do Santo Ofício, mas que ainda ostenta em seu interior um conjunto de murais de azulejos que traduzem a história de Portugal. Sem qualquer aviso, ou nota introdutória, dentre os murais encontra-se um que encena batalhas da Reconquista com exagerada violência, em que seres humanos racializados como não-brancos e não-cristãos (mouros, sarracenos, infiéis) são pictoricamente apresentados em posição de agonia, dor, humilhação e morte. Ao contrário do Pátio da Inquisição (que fica a poucos metros dali) o atual Tribunal sustenta a mesma alegoria que Montenegro sentiu-se livre para reintroduzir no debate político nacional: quiçá, justamente, porque os centros de poder – no caso o poder judicial, mas também o poder mediático- não apenas a toleram como a reproduzem despreocupadamente.
O tema revela a sua colonialidade quando a própria ideia de ‘Reconquista’, como sabemos hoje, oculta um projeto colonizador que começa dentro da própria Península Ibérica para, em seguida, prosseguir pela costa africana e estender-se ao Brasil e às Índias orientais. Um projeto que também nestas outras latitudes produziu limpezas étnicas, conversões forçadas, perseguições a infiéis, epistemicídios e – enfim – a morte do Outro sancionada pelo poder público. Deve ser combatido, portanto, por todos e todas que, hoje, dentro e fora de Portugal – mas especialmente em Portugal – não se esquecem da dinâmica de mútua alimentação entre fascismo e colonialismo.
Juntos, esses males germinam no fértil terreno criado por vozes neoliberais em sua cruzada pelo apoio do mercado mediante a encenação diária do seu auto de fé pró-austeridade.
Miguel Borba de Sá é Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e membro do Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Também é filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), no Brasil. As opiniões aqui contidas não refletem, no entanto, o posicionamento dessas instituições.
Notas:
- ^ Cf. (acesso Agosto/2023):https://leitor.jornaleconomico.pt/noticia/medidas-e-discurso-previsivel-...
- ^ Cf. (acesso: Agosto/2023):https://www.cm-coimbra.pt/areas/visitar/conhecer-coimbra/monumentos/pati...
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