A alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, que tem sido discutida como a alteração à Lei dos Solos, foi avançada na última semana de 2024 pelo executivo de Luís Montenegro. Permite a reclassificação de terrenos rústicos em terrenos urbanos, sob proposta dos municípios e aprovação em Assembleia Municipal. Isto significa que solos onde antes a urbanização não era permitida, poderão agora ser alvo de novos projetos de construção.
O Governo garantiu que a alteração teria como propósito resolver a crise de habitação, e destinava a construção nestes terrenos a habitação acessível. Essa restrição permitia que as habitações construídas fossem vendidas acima dos valores atualizados do mercado, e mesmo assim foi retirada posteriormente.
O alargamento dos terrenos urbanizáveis terá consequências ambientais acentuadas, desde a impermeabilização dos solos à perda de biodiversidade. Em entrevista ao Esquerda, Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista ZERO, fala sobre os impactos da alteração e as contradições que cria a nível do ordenamento do território.
Vários especialistas têm dito que a distinção entre solos urbanos e solos rústicos é um instrumento fundamental do ordenamento do território. Concorda?
Penso que é uma distinção que tem sido útil. Distingue, dentro de um plano diretor municipal, as áreas que têm características urbanas, com uma ocupação para fins habitacionais ou comerciais, infraestruturadas, dos solos rústicos, onde nós temos vindo a pôr em causa uma ocupação habitacional crescente. Pelos custos da infraestrutura e os riscos associados a incêndio, mas, acima de tudo, pelo facto da pegada ambiental de um povoamento disperso em solos rústicos ser muito maior do que uma concentração em zonas urbanas. Se eu tiver uma distinção entre solos urbanos e solos rústicos, facilita nesta distinção de impacte ambiental, mas também económico deste tipo de solos. Ao não fazer essa distinção, vamos permitir uma expansão em mancha daquilo que são as áreas urbanas. Em Portugal, devemos realmente fazer um esforço de concentração da população nos núcleos urbanos, para rentabilizar as infraestruturas que já temos e, acima de tudo, para ocupar muito do edificado existente que está vago.
Prevê que esse crescimento de manchas urbanas vá acontecer com esta alteração?
Há vários impactos. Permitir ocupar novos solos rústicos é o falhanço de uma política sustentável de habitação a todos os níveis. Porque significa estar a usar mais espaço, aumentar a impermeabilização dos solos, usar mais materiais, mais energia, necessitar de mais infraestrutura. É realmente um falhanço. O que nós sabemos, olhando para as estatísticas, é que Portugal é o primeiro país da OCDE onde, se eu considerar o parque habitacional total de alojamentos sazonais e de férias, 30,6% desse parque está vago. Se considerarmos o parque habitacional total, sem ser de férias, temos cerca de 12% vago. Só somos ultrapassados pela Espanha e pelo Japão. Esta dominância de alojamentos vagos e de alojamentos suplementares livres quase atingindo 1/3 do total, é que nos deveria fazer mudar a nossa política fiscal, urbanística, de promoção e de reabilitação. Essa deveria ser realmente a prioridade.
Mas não é.
A resposta atual é expandir para solos rústicos, onde há várias possibilidades. Uma delas é que estes solos rústicos não estejam em zonas de risco. E vale a pena percebermos que quando nasce a Reserva Ecológica Nacional, ela é marcada perante riscos naturais que devem ser objeto de proteção especial. É uma restrição de utilidade pública. Considero que para ter uma ocupação e uso sustentável do território não posso utilizar essas zonas para determinados fins. Portanto, vou ter solos rústicos que estão numa área protegida ou numa área classificada. Ou seja, nós vamos ter muitos solos rústicos em áreas de Reserva Agrícola Nacional (REN) e de Reserva Ecológica Nacional. São áreas que nós deveríamos salvaguardar totalmente. O Governo diz que as áreas mais críticas e mais sensíveis estão devidamente salvaguardadas, mas o que é curioso é que ficam de fora áreas onde, olhando para o diploma da REN, não há quaisquer usos permitidos exceto uma ocupação agrícola limitada.
Que áreas da Reserva Ecológica Nacional são essas que ficam em causa?
As áreas de elevado risco de erosão hídrica do solo e as áreas de instabilidade de vertentes, que são áreas que foram identificadas por causa da prevenção de riscos naturais. Dentro de uma outra lógica, que é a sustentabilidade do ciclo da água, as chamadas áreas estratégicas de infiltração, de proteção e recarga de aquífero. Quando nós vemos estas zonas, há pequenos usos que são admitidos nestas áreas, mas são coisas como redes elétricas ou pequenas beneficiações de vias ou de caminhos. Não vai além disso. Se formos para questões como a ampliação de edificações existentes, ou pequenas construções de apoio, isso é viável. Mas só para casos muito excecionais. Aquilo que é permitido neste momento não se compara a eventuais urbanizações ou ocupações de grande porte.
E a nível da Reserva Agrícola Nacional?
É o mesmo. Está bem que salvaguardam os solos mais produtivos, mas já temos solos tão pouco produtivos em Portugal, que é fundamental preservar mesmo os solos que não são de maior aptidão. A Reserva Agrícola Nacional é muitíssimo extensa, tem solos com aptidões agrícolas muito vastas.
Os especialistas apontam também para um risco de perda de biodiversidade. O que é que está em risco?
A Reserva Ecológica Nacional tem também uma valência de biodiversidade. Apesar da sua lógica ser de prevenção de riscos naturais e de questões de drenagem, são habitualmente zonas importantes em termos de biodiversidade. Temos vários núcleos urbanos onde não há construção permitida dentro de parques e reservas naturais, mas em que esses núcleos permitem uma zona de interface com as zonas que têm regime de proteção. A partir do momento em que se permite a construção nessas zonas, colocamos mais pressão sobre as áreas verdadeiramente importantes, porque deixo de ter essa interface. Estamos a colocar pressão nos ecossistemas que já têm proteção. É isso que é verdadeiramente dramático.
Habitação
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Essa consequência não contraria a Convenção da Diversidade Biológica?
À partida, não. Põe em risco de forma muito leve, na medida em que não vamos ocupar com habitação as zonas sensíveis que tenham estatuto de proteção. Mas se viabilizamos mais gente na área protegida, obviamente, de forma indireta, estamos a pôr uma maior pressão sobre a salvaguarda da biodiversidade. Se há uma aldeia que tem 500 pessoas e passa a ter 1.500, evidentemente que o número de veículos, o ruído e a alteração da paisagem, vão contra aquilo que é a salvaguarda dos valores que motivaram a área protegida e o facto desse núcleo urbano estar lá incluído.
Caberá às autarquias decidir sobre as alterações de solos rústicos para urbanos. Há mecanismos para fiscalizar as decisões que as autarquias vão tomar?
Esse é um dos aspetos mais escandalosos. Porque se nós temos regras uniformes à escala nacional, como é que é possível que eu tenha uma discriminação entre os vários municípios sobre cada uma das decisões em relação à ocupação de solos? Vamos ter o município A, que não vai ocupar área de Reserva Agrícola nem de Reserva Ecológica, mas o município B vai. Temos um instrumento, que tem sido ultrapassado, mas que é uma lógica de proteção à escala nacional. Como é que agora vamos dar esta discricionariedade a cada um dos municípios, de trabalharem de forma diferente. De fazerem a ocupação do território de forma diferente de acordo com a decisão da Assembleia Municipal. Não tem realmente sentido.
Abre uma contradição entre os mecanismos de ordenamento do território a nível nacional e a nível autárquico.
Exatamente. No limite, é como se disséssemos: cada município define as regras, como vai ocupar o território. Nem precisamos de Planos Diretores Municipais, nem há regras comuns. Cada um decide o que há de fazer. No limite, é isso. É a liberalização do planeamento e do ordenamento do território à escala municipal e local. Nós queremos integridade do ponto de vista nacional e, portanto, há uma clara contradição.
A justificação para a alteração está relacionada à crise da habitação. Acha que esta é uma solução eficaz e legítima?
Não é por aí que nós vamos, até porque essa história de que os terrenos seriam para habitação acessível já desapareceu. Antes de um diploma destes, é preciso fazer uma avaliação clara. Olhar para o relatório que foi feito sobre o ordenamento do território em 2024, fazer uma avaliação com esses dados à escala nacional e à escala municipal daquilo que são as implicações ambientais e da estratégia de sustentabilidade para os diferentes municípios. Não houve nenhuma avaliação técnica e científica antes de apresentar um diploma tão dramático como este em termos de impacto no ordenamento do território.
A médio e longo prazo, esta alteração vai funcionar numa especulação sobre os terrenos rústicos?
Não temos dúvidas. Já temos, inclusive, expetativas criadas só à custa da saída da legislação. Não há grandes dúvidas sobre o sobre impacto da mesma.
Acha que esta alteração colide de frente com o Relatório do Estado do Ordenamento do Território 2024?
Sem dúvida que colide, porque o Relatório do Estado do Ordenamento do Território fala precisamente da importância de não impermeabilizar os solos, da importância da Reserva Ecológica Nacional. Apesar de nós sermos críticos em relação ao relatório, porque ele deveria fazer uma avaliação muito mais direta e incisiva. Mas traça-nos um quadro onde a salvaguarda dos solos é um elemento absolutamente fundamental, principalmente das zonas mais críticas e sensíveis, onde se incluem muitas das áreas onde eu agora pretendo colocar habitação. Portanto, há aqui uma contradição entre aquilo que os especialistas da própria administração nos dizem e esta lei.