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O mundo do desporto é o novo alvo da transfobia

Primeiro eram as casas de banho, agora é o atletismo. Os casos das jovens atletas Terry Miller e Andraya Yearwood estão a ser usados para promover a agenda transfóbica da direita norte-americana. Artigo de Dave Zirin, em The Nation.
Corrida de atletismo feminina
Foto Bruce McIntyre/Flickr

Há uma revolta a crescer contra as mulheres trans que competem no desporto feminino. Na semana passada, um artigo da lendária tenista Martina Navratilova no londrino Sunday Times argumentava que as mulheres trans deviam ser impedidas de competir nos desportos femininos — e a extrema-direita está a usar o seu argumento a seu favor. No Dakota do Sul (para desgosto de Martina, deve sublinhar-se), os políticos Republicanos também usaram o seu artigo para justificar a proposta de proibição de atletas trans nos desportos escolares. Foi a quarta vez que uma lei anti-trans foi a debate na atual legislatura no Dakota do Sul. Todas as quatro foram chumbadas.

Entretanto, no Connecticut, duas atletas escolares trans despoletaram nova polémica. Terry Miller e Andraya Yearwood terminaram na primeira e segunda posições, respetivamente, nos campeonatos estaduais de atletismo em pista coberta no mês passado. Mas em vez de festejarem um dos grandes momentos das suas vidas, foram imediatamente postas na defensiva sobre o seu direito a competir.

O Daily Caller, o site nacionalista branco fundado por Tucker Carlson, publicou um artigo (vão perdoar-me por não o linkar) que logo no título troca grosseiramente o género de Miller e Yearwood, “Atletas masculinos continuam a dominar as pistas femininas escolares no Connecticut”. Foi partilhado milhares de vezes, ajudando a promover a ideia de que as jovens mulheres trans — que o Daily Caller identifica como “masculino” — estão a invadir os desportos das raparigas e mulheres. Primeiro foram as casas de banho, agora é o atletismo.

Yearwood disse à Associated Press, “Aprendi muito sobre mim e sobre as outras pessoas ao longo desta transição. Tento sempre focar-me sobretudo no encorajamento positivo que tenho recebido da minha família, amigos e apoiantes. Uso a negatividade como combustível para correr mais rápido”.

Falei com o ativista trans Chase Strangio da ACLU, que me disse, “Nas últimas semanas temos visto uma escalada na retórica em torno das atletas trans que competem em desportos de acordo com o seu género. A raiva dirigida a essas atletas — muitas das quais são crianças — está a ser lançada por pessoas que nunca passaram um dia das suas vidas a defender o desporto feminino e aparecem agora a defender que o facto de raparigas e mulheres trans competirem viola a integridade dos desportos femininos. Outros são atletas que, como Martina Navratilova, são movidas pelo medo e a desinformação sobre o que significa ser trans e como os corpos sexuados agem no mundo. Apelo às pessoas para terem cautela antes de atacarem atletas trans, pois muitas estão a ser arrastadas nas polémicas daqueles [como o Daily Caller] que preferiam que as pessoas trans não existissem de todo.”

Contactei a Dra. Nicole LaVoi, diretora do Centro Tucker de Investigação sobre Raparigas e Mulheres no Desporto, acerca da forma como a ignorância alimenta as chamas contra estas atletas. Disse-me ela: “Infelizmente, a polémica à volta destas duas atletas deve-se em parte à falta de educação e conhecimento factual sobre as pessoas transgénero. Ambas as raparigas estão em supressão hormonal, o que contraria qualquer vantagem competitiva devido à testosterona, mas muita gente não sabe disso. Há muitos factores relacionados com o desempenho atlético — por exemplo, o treino físico, condicionamento, dedicação, motivação, qualidade do treino, nutrição e aptidões psicológicas que são apagadas quando nos focamos apenas na identidade de género e hormonas”.

Andraya Yearwood disse algo semelhante à Associated Press quando aformou que quaisquer “vantagens” que possa ter fazem parte da lotaria de vantagens que todo o atleta tenta potenciar. “Um atleta de salto em altura pode ser mais alto e ter pernas mais compridas que outro, mas este outro pode estar em perfeita forma e vencê-lo”, afirmou. “Um velocista pode ter pais que gastem muito dinheiro num treinador pessoal para o seu filho, o que pode levar essa criança a correr mais rápido”.

Há outro argumento contra permitir que atletas trans compitam contra atletas cisgénero, que sugere que a sua presença magoa as mulheres e raparigas cis.  Mas esta linha de pensamento não reconhece que as mulheres trans são de facto mulheres. O argumento central do Daily Caller e dos seus congéneres apaga esta realidade da forma mais horrível. A Dra. Katrina Karzakis, co-autora do livro Testosterone: An Unauthorized Biography, disse-me que o “desporto é um dos piores sectores para a discriminação contra as pessoas trans. As conversas sobre “justiça” no desporto centram-se apenas no desporto feminino e estão frequentemente impregnadas de linguagem paternalista em torno da “proteção” das atletas femininas. Essas conversas são prejudiciais porque os seus pressupostos de base são intrinsecamente sexistas — que as atletas mulheres são sempre inferiores aos atletas homens, por isso devemos policiar o desporto feminino de forma a proteger as mulheres. Esse policiamento não faz nada para proteger as mulheres; apenas serve para virar as mulheres umas contra as outras. Além disso, continuamos a assistir a uma ênfase excessiva  na biologia, em especial nas hormonas, como fator dominante no atletismo, o que sabemos não ser o caso.

Devemos sublinhar que não existem provas de que as atletas trans estejam a chegar em massa ao desporto feminino ou a dominar as competições em que participam. Também deve ser assinalado que as discussões sobre quem é realmente “feminina” foram usadas contra as atletas mulheres desde que as mulheres entraram no desporto, com os primeiros comentadores desportivos a descartarem atletas mulheres como “másculas”, “amazonas” ou “hermafroditas”. A própria Martina Navratilova foi castigada dessa forma nos anos 1980.

As mulheres negras têm sido especialmente alvo deste tipo de abuso ao longo das décadas, desde responsáveis do Comité Olímpico Internacional que defendiam a sua exclusão das competições nos anos 1950 ao caso da velocista sul-africana Caster Semenya, que teve de lutar contra a Federação Internacional de Atletismo para poder competir enquanto atleta mulher. E agora, os blogs de direita estão a queimar duas adolescentes negras por atreverem-se a competir.

Como afirmou Karzakis, “Há espaço para um debate matizado sobre a forma como entendemos a justiça no desporto, mas em vez disso assistimos à transfobia animada por crenças erradas sobre biologia e género. Em vez de se centrarem na inclusividade, estas discussões promovem a incompreensão profunda sobre a identidade de género e aumentam a discriminação das atletas trans”.

Uma estratégia para combater esses ataques está a ser trabalhada pela ACLU e Strangio. Ele disse-me: “Vamos estar ao lado destas atletas nos tribunais, nos parlamentos estaduais, nos órgãos administrativos e onde quer que seja necessário deixar claro que este é um assunto de direitos humanos, um assunto de decência elementar e um assunto constitucional. As atletas trans não têm sucesso por serem trans e não fazem batota ao competir. Elas trabalham duro, encontram-se a si próprias e ao sentido de comunidade no desporto, como muitos de nós fazemos, e são recebidas com hostilidade, discriminação e ameaças por parte daqueles que não compreendem o que significa defender a verdade da sua existência a cada minuto de cada dia”.

Katie Barnes, escritora e repórter para a ESPNW que escreveu sobre Anraya Yearwood, afirmou num e-mail: “Há crianças transgéneros a competir em desportos em todo o país a todos os níveis. O Centro para o Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) publicou um relatório no mês passado que dizia que quase 2% dos adolescentes se identificam como pertencendo à comunidade transgénero, por isso temos a obrigação enquanto amantes do desporto de usar isto como uma oportunidade para rever aqueles sistemas e considerarmos políticas baseadas em provas, em vez de marginalizar jovens que apenas tentam fazer desporto e viver as suas vidas. O mesmo estudo do CDC concluiu que quase 35% dos estudantes que se identificam como transgéneros já tentaram o suicídio. Para alguns, o desporto poder ser só campeonatos, mas para a juventude trans, a aceitação é muitas vezes um assunto de vida ou morte”.

A luta pela inclusividade trans no desporto vai sem dúvida aquecer nos próximos meses. É fundamental que as pessoas abordem estes argumentos com factos. A direita vai usar a ignorância para dividir as pessoas que devem estar ombro a ombro com as atletas trans. Temos de conseguir discutir pacientemente com quem não está informado, e enfrentarmos os fanáticos que usam o tema para promover a sua agenda profundamente transfóbica, divisiva e perigosa.


Artigo publicado em The Nation. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.  

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