A heterogeneidade cultural e linguística da Ucrânia é um facto bem conhecido, usado e abusado nas explicações sobre a atual guerra. Estando enraizada no início do período moderno na área intersticial contestada por três impérios – o polaco, o turco e o russo – a nação ucraniana foi, na realidade, formada através de processos demográficos que deixaram o seu rastro numa complexa composição multi-étnica de legados variados.
O sul, conquistado pelos russos aos otomanos no século XVIII, sofreu um processo de “colonização interna” (Etkind 2011) que consistiu na limpeza das recém-conquistadas terras dos nómadas turcófonos e na sua substituição por produtores agrícolas sedentários. Minorias perseguidas de outros países – menonitas alemães, otomanos sérvios, etc. – foram convidados pelo governo imperial e aí instalados. Contudo, muita da terra foi distribuída entre nobres russos que trouxeram com ele servos das regiões étnicas nucleares da Ucrânia e da Rússia. Este momento de instalação de colonos, semelhante a outro que acontecia na América do Norte ao mesmo tempo, combinava solos férteis com trabalho forçado e tornou o império russo o celeiro da Europa.
Um século mais tarde, durante a Longa Depressão de 1873-1896, esta região voltou a ser colonizada. Na altura, o capital francês, belga e britânico estava à procura de oportunidades de investimento lucráveis. A partilha de África oferecia estas oportunidades; outra opção era participar na rápida industrialização das estepes ucranianas, beneficiando do protecionismo generoso do governo russo. A chegada massiva de força de trabalho de todos os cantos do império intensificou-se na era soviética, quando muitos ou mesmo a maioria dos megaprojetos industriais foi concentrada no sudeste e leste da Ucrânia. Isto produziu cidades russófonas de indústria pesada sem vinculações etno-culturais fortes.
Os territórios da margem direita do rio Dniepre que hoje constituem a Ucrânia do norte e central tornaram-se parte do império russo depois da partição da Polónia no final do século XVIII. Para combater a influência do nacionalismo polaco aí, os etnógrafos russos promoveram a ideia de uma etnicidade ucraniana separada, sendo a religião ortodoxa o critério máximo em contraste com o catolicismo polaco. Esta ideia fez ricochete mais tarde quando os intelectuais românticos ucranianos se voltaram contra o próprio centro imperial russo. Na sequência da partição da Polónia, a zona mais a ocidente da Ucrânia tornou-se parte do império Austro-húngaro, mais tarde da Polónia e Checoslováquia do período entre guerras.
Ponto chave de uma guerrilha nacionalista nos anos 1940, a Galícia – a parte da Ucrânia que tinha sido controlada pela Polónia – tornou-se o “Piemonte ucraniano” durante o renascimento nacional de 1989-1991. Sendo a região menos russófona, a Galícia projetava uma aura de autenticidade étnica ucraniana. O passado de domínio Habsburgo permitia aos nacionalistas ucranianos articularem a sua ideologia com uma demanda por uma europeidade perdida, da qual imaginavam que a Rússia “asiática” estar excluída.
Admito que este seja um retrato extremamente superficial e quase caricatural das histórias étnicas na Ucrânia mas, ainda assim, é mais credível do que o conto simplista das “duas Ucrânias”, elaborado pela intelectualidade nacionalista ucraniana no início dos anos 1990 (Riabchuk, 1992). Esta foi retomada por Samuel Huntington, o profeta das guerras entre civilizações ([1996] 2011), e até, surpreendentemente, por um antropólogo anti-nacionalista como Chris Hann (2022). Nessa narrativa, a heterogeneidade histórica da população desliza facilmente para um abismo intransponível entre duas sociedades civilizacionais diferentes: os "ucranianos propriamente ditos" pró-ocidentais e os "crioulos" russificados.
Como começou
Ainda assim, ao longo dos 30 anos de independência da Ucrânia existiu uma diversidade considerável na geografia política e nas identidades políticas do país. Mas as diferenças cardinais foram mudadas junto com a transformação das lutas políticas. Ao contrário da narrativa nacionalista que gradualmente se tornou dominante, nos anos 1990 a linha de divisão política na esfera pública ucraniana estava mais próxima do binarismo clássico esquerda-direita – sobretudo nos termos utilizados pelos políticos e jornalistas. A mudança em direção a um vocabulário étnico chegou com a Revolução Laranja em 2004, quando o centro de gravidade do campo político se mudou da presidência para o parlamento. Como resultado desta mudança, a rivalidade entre grupos oligárquicos que estava por detrás das principais formações político-partidárias tornou-se mais transparente e evoluiu para uma luta eleitoral aberta. Foi nesta altura que as diferenças etno-linguísticas entre leste e ocidente se transformaram numa clivagem política cada vez mais profunda e que as “identidades culturais” começaram a absorver distinções programáticas mais convencionais.
A política ucraniana depois de Revolução Laranja tornou-se uma arena de confronto entre dois projetos nacionalistas concorrentes que se entendiam a si próprios como “ucraniano étnico” e “eslavo de leste” (Shulman, 2005). O primeiro valorizava a língua ucraniana e associava-a à identidade étnica, sendo implacavelmente hostil à Rússia, que acreditava ser sinónimo da União Soviética e ansiava por uma integração euro-atlântica. O segundo estava centrado na proteção dos direitos da língua russa, da Igreja Ortodoxa russa e da memória histórica da vitória do povo soviético na Segunda Guerra Mundial (que via como uma vitória sua), inclinando-se supostamente para a Rússia.
Esta divisão dava às elites uma ferramenta fácil para mobilizar a base eleitoral. Mas, ao mesmo tempo, servia como travão de segurança, ao prevenir uma consolidação autoritária do poder: qualquer potencial ditador apoiado por um dos blocos seria facilmente derrubado pelos rivais que mobilizassem a outra “metade” do país contra ele. Este “pluralismo por configuração” tornou-se a marca registada do sistema político ucraniano (Way, 2015). Um tal pluralismo era também um seguro de vida contra a consolidação neoliberal no domínio económico: a importância da componente “populista” não permitia que as elites governantes desvinculassem a economia das configurações sociais e políticas locais e forçava todas as forças políticas a manter o legado soviético de mecanismos redistributivos.
A criação da clivagem supostamente identitária serviu assim como um arranjo útil que permitiu a reprodução social durante a década de crescimento económico entre 2000 e 2010. Contudo, tal como todos os arranjos político-económicos, este era apenas temporário. Vários fatores contribuíram para o seu fim no início dos anos 2010. Em primeiro lugar, sem quaisquer controlos no interior do sistema, a amplitude do garrote nacionalista continuou a aumentar perigosamente até que a polarização atingiu níveis insustentáveis. Nas eleições parlamentares de 2012, o partido da extrema-direita (“ucraniana étnica) Svoboda chegou aos 10% de votos. A sua popularidade foi impulsionada pelo presidente “eslávico de leste” Yanukovich que tentava abertamente orquestrar a sua reeleição em 2015 da forma como Jacques Chirac a tinha alcançado em 2002 face a Le Pen mas que deve ter subestimado o nível de tensão já acumulado na sociedade. As atividades predatórias da equipa de Yanukovich no terreno económico irritaram tanto os oligarcas e a muito mais numerosa classe dos pequenos empresários e classe média urbana de Kiev e do ocidente, aumentando o voto nacionalista.
Isto coincidiu com o fim de um super-ciclo das mercadorias que tinha vindo a sustentar o crescimento económico ucraniano entre 1997 e 2012 (Chim, 2021). Havia cada vez menos para redistribuir – especialmente porque a Rússia, em 2012, afetada pela mesma viragem de ciclo global, lançou um ataque em grande escala contra a Ucrânia, com preços de gás exorbitantes e inúmeras guerras comerciais que afetaram as exportações ucranianas.
Depois da segunda metade de 2012, depois do fim dos estímulos aos projetos de infraestruturas associados ao campeonato europeu de futebol, a Ucrânia entrou numa recessão acentuada. A ofensiva económica russa marcou o final de um espaço geopolítico intersticial que tinha sido vital para a Ucrânia: Yanukovich foi forçado a escolher um campo sabendo que qualquer das escolhas seria desastrosa.
Todas estas contradições se juntaram na crise política conhecida como Euromaidan em 2013-2014. Com a deposição de Yanukovich, a anexação da Crimeia pela Rússia e o Donbass mergulhado numa guerra, o equilíbrio interno da política ucraniana ficou irremediavelmente distorcido. Milhões de eleitores “eslavos de leste” viram-se de repente fora de jogo e o partido “ucraniano étnico” tornou-se matematicamente dominante (D’Anieri, 2018). Este antagonismo, apesar de recente e de artificial, passou a dirigir a política nacional. Ao mesmo tempo, contudo, tanto a identidade “ucraniana étnica” quanto a identidade “eslava de leste” que marcava a arena política estavam apenas fracamente ancoradas na visão de mundo das pessoas comuns.
Em qualquer lado que se vivesse e fosse qual fosse a língua que se falasse mais naturalmente, a atitude popular dominante era uma rejeição anti-política dos jogos político-partidários, em vez de um firme apoio a um lado contra o outro. Como resultado deste desligamento entre a sociedade política e a sociedade política mais alargada, e empurrado pela lógica da esfera pública, Petro Poroshenko passou o seu mandato presidencial à deriva em direção a uma forma de nacionalismo “étnico ucraniano” cada vez mais radical. No final sofreu uma derrota humilhante nas eleições de 2019: 73% dos eleitores apoiaram Volodymyr Zelenski que era a verdadeira personalização da atitude anti-política e anti-elitista.
Uma vez eleito, porém, também Zelenski começou a obedecer à lógica estrutural do campo político. No outono de 2020, tornou-se claro para o governo russo que Zelenski não iria aceitar a sua versão dos acordos de Minsk, e o Kremlin começou os seus preparativos militares. Nos escalões mais baixos da sociedade ucraniana, entretanto, o mesmo desligamento da política identitária persistiu. Por exemplo, um dos líderes da greve mineira em Kryvyi Rih, a cidade natal de Zelenski, era louvado como um herói de duas das mais difíceis batalhas da guerra do Donbass. Contudo, isto não significava muito para ele subjetivamente: numa polémica sobre a guerra, disse que nunca se tinha considerado um patriota (Gorbach, 2022).
Como está a correr
O que aconteceu quando a Rússia acabou os seus preparativos de guerra e avançou com as suas tropas para a Ucrânia? Kryvyi Rih, um bastião da suposta elite “eslava de leste”, dá-nos um exemplo elucidativo. O presidente da Câmara, Yuriy Vilkul, foi eleito em 2010, depois da vitória presidencial de Yanukovich. O seu filho, Oleksandr, era administrador de duas grandes empresas industriais da cidade durante a altura da sua contestada transferência para Rinat Akhmetov, o homem mais rico da Ucrânia e o tradicional financiador dos projetos políticos “eslavos de leste”. A ancoragem do poder político desta família na cidade era acompanhada pelo financiamento de construção de numerosas igrejas ortodoxas russas e outros objetos religiosos, assim como monumentos que reforçavam uma versão centrada da memória histórica da Segunda Guerra Mundial centrada na União Soviética. Os nacionalistas ucranianos e os ativistas liberais estavam convencidos que a elite governante iria mudar de campo com a aproximação das tropas russas.
Em vez disso, Oleksandr Vilkul tornou-se o chefe da administração militar local. Pouco depois do início da invasão escreveu: “caros amigos, cada geração tem a sua própria fortaleza Brest e a sua própria Estalinegrado. Não vamos desistir de um metro sequer do nosso solo nativo para os ocupantes. Kryvbas está nas nossas costas, não temos nenhum lugar para onde bater em retirada. Nas nossas costas estão as nossas famílias e as sepulturas das nossas famílias… O inimigo será derrotado”.
Estas quatro frases contêm não menos do que cinco alusões a discursos de Estaline do tempo de guerra. A identidade “eslava de leste”, durante muito tempo entendida como sendo “pró-russa”, tornou-se uma ferramenta de mobilização contra a invasão russa. A sociedade civil “ucraniana étnica” tem ficado incomodada e desorientada por esta reviravolta mas, pensem o que pensarem, o facto permanece: a resistência à invasão russa está a ser eficientemente organizada sob os slogans do antifascismo soviético e da fé ortodoxa.
O líder político que passou anos a opor-se ao etno-nacionalismo ucraniano e a lutar contra a “descomunização” do espaço urbano pós-Euromaidan recebe agora visitas amigáveis de figuras de proa do nacionalismo ucraniano e iniciou a alteração de toda a toponímica que tenha algo a ver com a Rússia (o que implica até alterações maiores do que a retirada dos nomes comunistas).
E os trabalhadores? Nenhuma das minhas fontes em Kryvyi Rih, anteriormente “apolíticos” ou “eslavos do leste”, tem quaisquer dúvidas sobre a invasão. O espetro das reações vai desde as explosões emocionais patrióticas em chats de grupo até juntarem-se pessoalmente aos esforços de guerra. Um líder sindical pediu armas aos camaradas estrangeiros que queriam enviar ajuda humanitária; um mineiro deslocado de Donetsk deixou de lado o seu ceticismo acerca da política e passou a participar entusiasticamente na defesa da cidade. E abundam muitos mais exemplos.
O fim da ambiguidade?
Durante décadas, a relação da classe trabalhadora ucraniana com a política era distante, se não mesmo antagonística. A política de todos os tipos e cores era percebida como sendo o domínio da corrupção e das mentiras. O que mudou? Provavelmente não muito. A relação unívoca à invasão russa é tão forte precisamente devido ao seu caráter “não político”: a experiência da guerra e a resposta a ela são viscerais, sem mediação de ideologias “corruptoras” e politiquices. Ao contrário de acontecimentos políticos prévios, este é sentido como “real”. Toca a própria essência da vida quotidiana e não está dependente de reflexões abstratas que sejam mediadas pela classe intelectual. Daí o nível surpreendente de envolvimento pessoal.
Volodymyr Artiukh toca num ponto semelhante ao comparar as narrativas oficiais que acompanharam as comemorações da Segunda Guerra Mundial este ano: “enquanto o lado ucraniano combate sinais icónicos e apela a uma experiência corporal visceral através de indicadores, o lado russo apoia-se quase exclusivamente em símbolos desprovidos de qualquer relação com a experiência vivida” (Artiukh, 2022). Ambas as estratégias discursivas excluem a possibilidade de construir um movimento político sustentável a partir da base, mas ao passo que o simbolismo russo é desmobilizador, o apelo ucraniano é realidade vivida mobiliza ao gerar uma lealdade emocional poderosa face ao evento. Oleg Zhuravlev e Volodymyr Ishchenko estudaram uma “política imediata” similar no caso do Euromaidan – uma mobilização enorme que não tinha agenda verbalizada, dependendo em vez disso de ligações emocionais entre os participantes do movimento e entre eles e o seu objetivo político (Zhuravlev & Ishchenko, 2020).
Irá esta ligação estabilizar-se suficientemente para criar um senso comum partilhado, construindo finalmente uma nação ucraniana “apropriada”, indivisa, como resposta à guerra? É tentador antecipar a emergência de uma síntese destas duas ideologias antitéticas, cuja coexistência fazia com que a Ucrânia parecesse de algum modo deficiente em muitas narrativas. Contudo, mesmo que tal projeto se torne realidade, a que se irá assemelhar? Pode ou deslizar de volta a um etno-nacionalismo ou desenvolver-se para um projeto nacional inclusivo baseada na experiência partilhada da guerra, nas aspirações à União Europeia e numa agenda redistributiva. Pode permanecer pré-racional (afinal, o que é o nacionalismo se não uma negação romântica da racionalidade do Iluminismo?) ou transformar-se num programa político mais legível.
Há poucas certezas num momento em que tudo – incluindo a futura forma geopolítica da Ucrânia – depende do resultado da guerra. Contudo, é importante reconhecer que esta guerra também não é uma variável independente: o seu curso está estruturado pela ação política contraditória das pessoas que vivem no país.
Denys Gorbach é doutorando no Instituto de Paris de Estudos Políticos.
Texto publicado originalmente na revista Commons. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.