Durante muitos anos, alguns fabricantes de automóveis tentaram impedir a transição para os veículos elétricos. Não é difícil perceber porquê: quando se investiu muito numa tecnologia existente, quer-se extrair até à última gota antes de desinvestir. Mas, por mais desonestos que tenham sido, em alguns casos, esses esforços, parecem quase inocentes quando comparados com o programa concertado de uma indústria antiga e dos seus políticos domesticados para suprimir uma mudança muito mais importante: a indispensável transição para o abandono da criação de gado.
A criação de animais é, a par da produção de combustíveis fósseis, uma das duas indústrias mais destrutivas do planeta. Não se trata apenas das enormes emissões de gases com efeito de estufa e da poluição da água e do ar que provoca. Mais importante ainda é a quantidade de terra que requer. O uso da terra é uma métrica ambiental essencial, porque cada hectare que ocupamos é um hectare que não pode sustentar ecossistemas selvagens.
Os ecossistemas selvagens são fundamentais para a sobrevivência da maioria das espécies na Terra e dos próprios sistemas terrestres: por exemplo, a floresta tropical e o cerrado da América do Sul ajudam a regular os sistemas climáticos. A floresta amazónica está a ser destruída sobretudo pela criação de gado, cuja expansão é impulsionada, em parte, pela moda alimentar da carne de vaca “alimentada com erva”. O cerrado está a ser destruído principalmente pela cultura da soja para produzir ração para porcos e galinhas.
Alimentarmo-nos com produtos de origem animal é uma forma fantasticamente esbanjadora e ineficaz de utilizar a terra, consumindo pelo menos quatro vezes mais do que todos os outros alimentos que cultivamos e fornecendo apenas 17% das nossas calorias. Mais do que qualquer outro fator, é responsável pela destruição de florestas, zonas húmidas, savanas, rios e outros habitats. Libertarmo-nos destes produtos é tão importante como libertarmo-nos do petróleo, do gás e do carvão.
Como é que isto pode ser feito? A persuasão moral - tentar convencer as pessoas a mudar para uma dieta à base de plantas por razões éticas - não leva a lado nenhum: globalmente, o consumo de carne continua a aumentar, enquanto a percentagem de veganos se mantém em números baixos em todos os países, com raras exceções. Há muito tempo que estou convencido de que a única estratégia eficaz é produzir produtos alternativos que sejam, de facto, indistinguíveis da carne, dos laticínios e dos ovos, mas que sejam mais baratos e mais saudáveis. Em todo o mundo, cientistas e empresas emergentes estão a trabalhar nesse sentido.
Existe uma vasta gama de tecnologias em desenvolvimento, que são frequentemente apresentadas de forma enganadora como “carne cultivada em laboratório” ou “carne cultivada em células”. O que estes termos significavam originalmente era o cultivo de cortes inteiros num bioreactor sobre um suporte de colagénio. Depois de um entusiasmo inicial, acabei por ver que se tratava de um beco sem saída: era simplesmente demasiado complicado e demasiado caro. Atualmente, os termos são frequentemente utilizados para abranger todas as novas alternativas, incluindo tecnologias muito mais simples e baratas, como a produção de micróbios.
Estas novas tecnologias proteicas são a principal ameaça para a indústria pecuária mundial, porque podem ser utilizadas para substituir as fontes animais em tudo, do queijo e gelados às salsichas, hambúrgueres, ovos, peixe e bifes, bem como para criar uma vasta gama de novos alimentos que ainda não podemos imaginar. Uma vez que o teor de proteínas é tão elevado e a variedade de micróbios tão grande, alguns destes alimentos podem ser produzidos com menos processamento do que os produtos de origem animal com que competem. Os componentes prejudiciais à saúde, como as gorduras saturadas, podem ser excluídos e os saudáveis, como os ácidos gordos ómega 3, podem ser introduzidos.
Na primavera passada, a Solar Foods, a empresa em cujo laboratório comi pela primeira vez uma panqueca feita de proteína bacteriana, abriu a sua primeira fábrica, perto de Helsínquia. A transição para estas novas fontes de proteínas poderá ter um impacto tão profundo como a passagem da caça para a agricultura. Se for feita corretamente, poderá reduzir enormemente a procura de terras e de produtos químicos agrícolas.
Ao contrário da agricultura, ela poderia garantir que nem os inputs (como os fertilizantes) nem os outputs (como o estrume) se infiltrassem nos ecossistemas. Poderia reduzir consideravelmente o consumo de água doce: de facto, alguns micróbios podem ser cultivados em água salgada. Poderia permitir a produção de alimentos em locais que já não podem alimentar a sua população, por falta de terra fértil e de precipitação. Ao fazê-lo, desde que os governos evitem que as grandes empresas monopolizem as novas tecnologias, poderá aumentar consideravelmente a segurança alimentar e a soberania alimentar.
Se duvida do potencial destas tecnologias, então repare nos esforços para as travar por parte das empresas de carne e pelos seus políticos amestrados. A pedido dos lóbis da pecuária, a carne cultivada em laboratório foi proibida na Florida, no Alabama, em Itália e na Hungria. Os políticos em França, na Roménia e noutros estados dos EUA estão a tentar seguir o exemplo.
Dada a confusão de termos usados nestas leis, os legisladores não parecem ter a certeza absoluta do que estão a proibir. Mas alguns responsáveis estão a tentar garantir que todo o sector das novas proteínas seja travado. Uma tentativa da UE de tornar mais ecológico o abastecimento alimentar, incentivando as proteínas alternativas, foi esmagada pelo comissário da Agricultura, Janusz Wojciechowski.
Os governos que procuram proibir alternativas aos produtos de origem animal não têm procurado disfarçar a sua motivação: o protecionismo. Vários políticos e responsáveis admitiram abertamente que estão a tentar defender indústrias estabelecidas - carne e laticínios - contra a concorrência. Em todos os outros sectores, afirmam ser a favor dos “mercados livres”, e o protecionismo é punido com pesadas sanções. Neste sector, é aplicado pela lei.
Agora, de acordo com o canal de investigação do Greenpeace, Unearthed, uma nova campanha financiada pela indústria pecuária e liderada por um antigo executivo do sector da carne está a pressionar para uma proibição em toda a UE. Uma vez que o governo húngaro de extrema-direita detém a presidência do Conselho Europeu, a campanha poderá ter êxito. O apoio do governo britânico às novas proteínas é um dos raros benefícios do Brexit.
Não há qualquer subtileza nas ações dos EUA e da UE. São o exercício do poder bruto instituído. São reforçadas por uma afetação escandalosa da despesa pública. Uma investigação publicada na revista One Earth revelou que o governo dos EUA gasta 800 vezes mais em subsídios a produtos de origem animal do que em subsídios a novas proteínas, e a UE gasta 1.200 vezes mais.
Uma nova investigação de Kenny Torrella para a revista Vox revela que, longe de contestar esta manipulação anti-ambiental do mercado, alguns dos principais grupos ambientalistas dos EUA - WWF, The Nature Conservancy e Environmental Defense Fund - estão a participar em campanhas de greenwashing da indústria da carne. Porquê? A resposta parece ser pura cobardia: as suas justificações indicam que têm medo de incomodar os criadores de gado. A Greenpeace UK é muito peculiar ao tentar defender as novas tecnologias contra as antigas.
Devemos reconhecer a propaganda egoísta das empresas quando a vemos, enfrentar o protecionismo e a neofobia e apoiar as tecnologias que podem ser a nossa última e melhor esperança de evitar uma catástrofe ambiental.
Artigo publicado no blogue do autor. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net