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Um professor, um ensaísta, um poeta e um militante comunista juntaram-se para imaginar os possíveis. Manuel Gusmão foi um estudante universitário politicamente ativo, militante do PCP, deputado na Assembleia Constituinte. E também colaborador permanente do jornal Crítica - com Eduarda Dionísio, Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo -, fundador da Associação Portuguesa de Literatura Comparada, autor de uma obra ensaística incontornável. Em todas as dimensões da sua obra—ação, Manuel Gusmão militou pela ideia de futuro, combatendo ferozmente os arautos do fim da história:
se não houver futuro, se não tivermos futuro, seremos como dizia o outro, "cadáveres adiados que procriam". Ora nós precisamos do futuro como do ar que respiramos. (…) Aliás, a tese sobre o "fim da história" começa por ser uma história mal contada e, mais do que um diagnóstico, representa uma tentativa de eternização de um presente reduzido e um bloqueamento do futuro por esgotamento dos possíveis.
(PÚBLICO, 2007)
Só em 1990 o mundo conheceu os poemas que vinha escrevendo desde os anos 60. Com Dois Sóis A Rosa/ a arquitectura do mundo, Manuel Gusmão confirmou, aos 45 anos, o poeta que já estava latente na obra. Seria um exercício estéril dissociar o ensaio da poesia, ou a poesia da política. Poesia permeada pelo rigor do seu ensaio, ensaio invadido pela sensibilidade da sua poesia, poesia e ensaio reproduzindo-se na mesma seriedade encantada. Faces do mesmo devir, capazes de convocar a tradição e de a desdobrar além dos próprios limites do tempo.
A Dois Sóis A Rosa seguiram-se Mapas/ O Assombro A Sombra (1996), Teatros do tempo (2001), migrações do fogo (2004), A Terceira Mão (2008), Pequeno Tratado das Figuras (2013). E, se a revolução é narrativamente evidenciada no libreto para a ópera Os Dias Levantados (1998) de António Pinho Vargas, toda a sua poesia conta justiça, diálogo, coletivo, resistência. E toda a sua escrita é permeada por duas urgências inseparáveis que regista no livro A Terceira Mão: “não consentir na humilhação da linguagem” e “não consentir no estreitamento daquilo a que chamam/malevolamente o real”.
Vivemos um tempo em que a linguagem é, tantas vezes, instrumentalizada para instituir em vez de produzir, castrando a sua suma capacidade de alargar o campo dos possíveis. A violenta ligeireza do discurso mediático promove um abastardamento das palavras com o intuito de as esvaziar de sentido e impor a imutabilidade acima da imaginação. Ou temos, por outro lado, o discurso divergente capaz de expor, visibilizar, apontar a injustiça no mundo, mas condenando-o a essa mesma imutabilidade por via do cinismo que desiste de imaginar outro rosto para o futuro. O “trabalho da esperança que magoa” precisa de lembrar mais vezes as palavras de Manuel Gusmão em Uma Razão Dialógica (2011):
Nós, na "tradição dos oprimidos" (Walter Benjamin), aprendemos a não ceder aos desastres, aprendemos a trabalhar para estoirar o tempo contínuo das derrotas e a perscrutar os momentos em que algo de diferente foi possível, mesmo que por umas semanas ou meses ou décadas. O trabalho da esperança que magoa ensina-nos que o que foi possível, e logo derrotado, será possível (de outra forma), outra vez.
(Manuel Gusmão, Uma Razão Dialógica. Edições Avante).
Sendo sempre interpelado pela “tradição dos oprimidos”, foi com a poesia que respondeu cabalmente a essa chamada, sem nunca a usar como veículo de uma qualquer mensagem pré-concebida, mas sim como terreno de ressignificação. Foi exímio no equilíbrio das dimensões política e formal da poesia, sem cedências - à semelhança do neo-realista Carlos de Oliveira (que tanto admirava e tão bem trabalhou). Escreveu, aliás, sobre Carlos de Oliveira: “não há nem tem que haver uma estética marxista, mesmo que haja hipóteses marxistas em estética”. E ele próprio teceu essas hipóteses.
Eisenstein, outro potenciador de hipóteses marxistas na estética, conta a história de uma criança que, representando o acto de “acender o fogão”, desenhou tudo na proporção mas, chegando a altura de desenhar a caixa de fósforos, representou-a de forma totalmente desproporcional, gigante. A caixa de fósforos ganhou a sua justa escala. Essa “proporção monstruosa” evidencia o que é indispensável, não importando tanto a representação mimética mas sim a forma como essa desproporção gera uma ideia.
A montagem na poesia (e também no cinema, talvez um pouco no desenho - “o que falta aos desenhos para serem um filme?”) é capaz de reestruturar e desproporcionar aquilo que assumimos como real, expor as suas várias camadas, e projetar outras tantas por cima. A linguagem da poesia é dialética no sentido em que combina imagens e as coloca em tensão para a produção de algo que antes lá não estava e que não é já a junção das duas imagens mas uma terceira coisa inteiramente nova. Uma possibilidade. Como intelectual e ensaísta, Manuel Gusmão sabia-o. Sabia que a poesia “preserva aberto ao humano o reino da possibilidade e das transformações” (A Foz em Delta). Sabendo-o, recuperou-a como conflito, nas imagens projetadas e sobrepostas escrupulosamente com o fulgor de um filme, com “uma tão violenta doçura” (nas suas palavras), como uma chama que deflagra infinitamente sem desgoverno nem extinção.
Num paradigma aparentemente demolidor de alternativas, a alucinação lúcida da poesia de Manuel Gusmão gera e alimenta espectros, simulacros que vão além de qualquer ideia de finitude. Ou onde o fim se desdobra em princípios ilimitados. Esse permanente “não consentir no estreitamento daquilo a que chamam/malevolamente o real”. Ou, como escrevia Sophia, “o não-aceitar fundamental”, que não é suficiente sem vislumbrar além da cortina de fumo da desesperança: “essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros/ das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia/ enquanto esperas por alguém que não virá” (Migrações de fogo, 2004).
Independentemente de quantas derrotas tenhamos ainda de cobrir de luto, o futuro será esse vislumbre do possível que Manuel Gusmão nos abriu de forma incansável e que, nos tempos que correm, convoca a esperança como única forma de não consentir com a barbárie. Sem ilusão e sem cinismo. “Nós somos a esperança que não fica à espera”. O que foi possível será possível. Ou não estaríamos aqui a fazer nada.
Maria Leonor Figueiredo é ativista e autora do livro "Calma é apenas um pouco tarde: resistência na poesia portuguesa contemporânea"