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O anti-imperialismo consistente e a guerra na Ucrânia

Tal como o verdadeiro anti-imperialismo durante a I Guerra Mundial era o que rejeitava ambos os lados imperialistas, o único anti-imperialismo consistente atualmente consiste em rejeitar ambos os lados da Nova Guerra Fria. Mas isto não supõe uma atitude neutra perante a invasão russa da Ucrânia. Por Gilbert Achcar.
Gilbert Achcar. Foto: esquerdaonline.com.br.
Gilbert Achcar. Foto: esquerdaonline.com.br.

A Nova Guerra Fria que tem vindo a acontecer desde a viragem do século não contrapõe sistemas sócio-económicos e políticos antagonistas como o fez a Guerra Fria na segunda metade do século XX. As alegações em sentido contrário são apenas manifestação de apoio a um dos lados desta confrontação global.

Assim, os apoiantes do Ocidente geo-estratégico e da Nato alegam que se trata de um conflito entre democracia e autoritarismo, fazendo vista grossa ao facto de que vários dos protegidos e aliados do Ocidente são regimes autoritários e de que a extrema-direita está a crescer no coração da aliança ocidental, incluindo nos próprios Estados Unidos, onde o presidente anterior era de extrema-direita.

Do lado oposto, os apoiantes da Rússia na guerra com a Ucrânia alegam que é uma luta contra as intrusões imperialistas do Ocidente, uma alegação que pressupõe que a Rússia tem um direito sagrado imperialista sobre as nações que subjugou historicamente, quer sob o czarismo quer sob o estalinismo.

A verdade é que a Nova Guerra Fria se parece mais ao período de tensões e rivalidades globais que precedeu a I Guerra Mundial que colocou igualmente potências imperialistas umas contra as outras. Washington estava perfeitamente feliz em promover o capitalismo na Rússia e na China e em acomodar o seu autoritarismo, ou melhor, em encorajá-lo como fez com Boris Yeltsin na Rússia, desde que servisse aos seus interesses.

Voltou-se contra estes Estados não quando eles se tornaram mais autoritários, mas quando se recusaram a permanecer confinados a um estatuto de subordinação. Até há alguns anos, Vladimir Putin expressava o desejo de ingressar na Nato. Ele tornou-se um feroz oponente da Aliança apenas quando percebeu que a sua expansão para leste, ao manter as suas portas firmemente fechadas para a Rússia, foi construída sobre o postulado de que esta última é o potencial inimigo atávico do Ocidente.

Da mesma forma que o verdadeiro anti-imperialismo durante a I Guerra Mundial era o que rejeitava igualmente ambos os lados imperialistas, o único anti-imperialismo consistente atualmente consiste em rejeitar igualmente ambos os lados da Nova Guerra Fria. Contudo, isto não supõe de forma alguma uma atitude neutra perante a invasão russa da Ucrânia: nenhum anti-imperialismo pode permanecer neutro numa situação em que uma nação subalterna é atacada por uma potência imperialista. A solidariedade com as vítimas das agressões imperialistas é um dever elementar dos anti-imperialistas.

O que implica uma oposição igual a ambos os lados da Nova Guerra Fria é que a solidariedade com a Ucrânia deve permanecer confinada aos limites do seu direito à auto-defesa. A Ucrânia tem o direito de lutar para repelir a presente invasão do seu território e portante o direito de obter os meios defensivos apropriados. A atitude mais inconsistente perante a guerra atual é, na verdade, a que supostamente apoia o direito da Ucrânia à auto-defesa mas se opõe ao seu direito de obter os meios que são indispensáveis a esse propósito.

A solidariedade anti-imperialista com a Ucrânia também significa oposição à transformação da resistência da Ucrânia à agressão num impulso para infligir uma derrota estratégica ao imperialismo russo em nome do imperialismo Ocidental. Isto não seria do melhor interesse do povo da Ucrânia, uma vez que implica o pagamento de um preço elevado, muito além do que já está a pagar.

A solidariedade anti-imperialista com a Ucrânia deve assim opor-se à escalada da guerra atual de uma guerra de auto-defesa para uma investida estratégica contra a Rússia, exigindo a disponibilização de caças a jato e mísseis de longo alcance à Ucrânia.

A administração Biden tem até agora recusado ultrapassar essa linha, apesar da pressão dos nacionalistas ucranianos e dos belicistas ocidentais. Espera-se que continue com esta auto-limitação.

Dito isto, não pode haver uma resolução justa e pacífica da guerra em curso sem um regresso às Nações Unidas e aos seus princípios. O plano de 12 pontos anunciado pela China a 24 de fevereiro reafirma o princípio da Carta das Nações Unidas da “soberania, independência integridade territorial de todos os países”.

Em vez de agarrar a mão que lhe foi estendida por Pequim a fim trabalhar em conjunto para um acordo baseado na ONU, Washington rejeitou imediatamente a posição chinesa, de acordo com a posição anti-chinesa reforçada que tem adotado desde a presidência de Donald Trump. Assim, torna-se claro que a administração Biden – embora não tenha querido até agora utilizar a Ucrânia para uma ofensiva estratégica contra a Rússia – contenta-se em utilizá-la para uma guerra de atrito com o seu rival russo.

Os anti-imperialistas consistentes devem combinar o seu apoio ao direito da Ucrânia à auto-defesa com o apoio a uma acordo de paz baseado na ONU. Aqueles que apelam à paz ao mesmo tempo que se opõem ao direito da Ucrânia de obter o que precisa para a sua defesa estão, de facto, a advogar a sua capitulação. A história mostra abundantemente que a “paz” baseada na superioridade militar de um lado não é mais do que uma acalmia temporária numa prolongada hostilidade geradora de conflitos. Aqueles que apoiam a continuação da guerra a longo prazo por objetivos maximalistas, incluído a recuperação militar da Crimeia pela Ucrânia, estão, de facto, a apoiar, um cenário apocalíptico em nome do direito. Os anti-imperialistas consistentes devem permanecer em oposição simultânea a ambas as posições.


Gilbert Achcar é professor de Estudos do Desenvolvimento e Relações Internacionais no SOAS da Universidade de Londres.

Artigo publicado no Labour Hub. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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