Argentina

O adeus a Nora Cortiñas: uma despedida que foi uma celebração da sua vida

02 de junho 2024 - 12:23

A fundadora das Mães da Praça de Maio faleceu na quinta-feira aos 94 anos. Muitos foram despedir-se da “mãe de todas as batalhas” no antigo centro de tortura transformado em Casa da Memória e da Vida.

por

Luciana Bertoia

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Nora Cortiñas.
Nora Cortiñas. Foto de Ainara Lizarribar.

Em plena ditadura. Uma mulher pequena levanta as mãos, fala alto, inventa uma desculpa para o seu interlocutor. Diz que quer comprar aquela velha casa para montar um lar de idosos. Por fim, sai com as suas suspeitas às costas. A mulher é Nora Cortiñas. Acredita que o seu filho Carlos Gustavo Cortiñas, que procura há meses, pode ter sido raptado na Mansão Seré. Passaram-se anos e nunca conseguiu prová-lo. Voltou inúmeras vezes àquela propriedade em Castelar, junto à linha do comboio. Esta sexta-feira foi a sua última vez naquele local que já não é um campo de concentração, mas a Casa da Memória e da Vida. Centenas de pessoas choraram a perda da Mãe da Praça de Maio - a mãe de todas as batalhas - e celebraram a sua vida.

Uma fila de pessoas aglomera-se em frente ao caixão, situado num dos lados do micro-estádio dentro do que era a Mansão Seré. Nora descansa ali. Segura a fotografia do seu filho desaparecido. Marcelo, o filho mais novo, conversa com os que passam por ali.

Nora é a mãe de todas as lutas. À sua volta, centenas de lenços de várias cores, t-shirts de grupos de defesa dos direitos humanos, de sindicatos, a bandeira da Palestina. De um lado, está a bandeira com que costumava marchar todas as quintas-feiras na Praça de Maio: a que diz que estão presentes 30.000 desaparecidos.

O fluxo de pessoas não pára. Ana Careaga, sobrevivente da ditadura e filha de Esther Ballestrino de Careaga - uma das três mães raptadas em dezembro de 1977 - está ali desde manhã cedo. As pessoas estão sempre a chegar", diz. É a expressão do amor que Nora semeou. Ela estava lá onde havia injustiça.

Nora morreu na quinta-feira, com 94 anos. Estava nos cuidados intensivos do Hospital de Morón, perto da sua casa, há treze dias. Desde que a notícia da sua morte foi conhecida, multiplicaram-se as manifestações de pesar nas redes sociais. Houve quem decidisse confrontar a sua dor na Plaza de Maio. Centenas de pessoas vieram deixar um bilhete na Pirâmide de Maio ou acender uma vela no local onde ela tantas vezes desafiou os senhores da vida e da morte.

Outros foram até Morón para se despedirem. Há tristeza, mas também há anedotas que provocam sorrisos. Martín Sabbatella está a par de tudo o que acontece. Em 2000, era presidente da câmara e inaugurou o primeiro espaço de memória da América Latina no que era a Quinta Seré. Nora estava com ele nesse dia. “Estamos tristes com a sua morte, mas só de pensar nela ficamos felizes”, diz. E traduz o que muitos sentem.

Horacio Pietragalla Corti, ex-secretário de Direitos Humanos da Nação, aparece para se despedir. “Devemos estar felizes por sermos contemporâneos, porque elas entrarão para a história como mulheres que, através da luta, do amor e da resistência, conseguiram realizar um feito magnífico”, diz ele. “Acredito que ninguém substitui uma mãe como Norita. O legado tem que ser multiplicado por milhares para preencher o vazio que ela deixa”.

Há funcionários judiciais na sala. Alejandro Slokar, juiz da Câmara de Recurso, apareceu para cumprimentar. Mais tarde, entra o juiz federal de La Plata, Alejo Ramos Padilla. Estabeleceu contacto com Nora como advogado de defesa. Ela ia ouvir as alegações contra Miguel Osvaldo Etchecolatz ou contra o padre Christian Federico Von Wernich. A sua forma de apoiar os jovens advogados - como Ramos Padilla, Guadalupe Godoy ou Myriam Bregman - era acenar afirmativamente com a cabeça. Eles sentiam que estavam a fazer as coisas bem. Ou que estavam do lado Norita da vida.

“Nora ensinou-nos a luta abnegada e o prazer”, diz Guadalupe Godoy, que saca rapidamente do telemóvel e põe a tocar um áudio que a membro das Madres lhe enviou depois de uma decisão favorável.

“- É preciso ir com tudo para cima dos juízes. Parabéns, Guadalupe. Aqui é Nora Cortiñas", diz ela, como se alguém não reconhecesse a sua voz.

Há também Sergio Smietniansky, o Cherco, um advogado da Coordinadora Antirrepresiva por los Derechos del Pueblo (CADEP). Para ele, Nora é a pessoa mais fotogénica do mundo. Todos apreciam o comentário e escolhem a sua imagem preferida da Mãe da Praça de Maio. Lembra-se também que Nora foi a primeira a acompanhar a exigência de justiça pelo massacre de Budge, em 1987, quando a polícia disparou sobre três miúdos que bebiam cerveja numa esquina.

Está presente um grupo de membros da Asociación de Ex Detenidos Desaparecidos (AEDD). Há sobreviventes de La Plata, como Laura Bretal. Também está presente Marta Ungaro, irmã de Horacio, uma das crianças raptadas durante a Noite dos Lápis. Carlos Lordkipanidse, sobrevivente da Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA), entra com lágrimas nos olhos.

Até o encontrarmos

“Foi uma despedida ao estilo de Norita”, diz Myriam Bregman. “Acho que foi o que ela merecia: muita gente e muito carinho”. A deputada do FIT aproximou-se do caixão para se despedir. “A única coisa que consegui fazer foi acariciar a foto do filho que ela trazia sempre no peito”.

A ditadura sequestrou Carlos Gustavo Cortiñas em 15 de abril de 1977. Nessa altura, ele mantinha uma relação com Ana e tinha um filho de dois anos, Damián.

Passaram quarenta e sete anos de incerteza. Nora nunca conseguiu saber o que aconteceu ao mais velho dos seus filhos. Damián é um adulto. Fica comovido com todos aqueles que vêm a Morón para declarar o seu amor pela sua avó. Não fica surpreendido. Ele sabe que ela estava lá sempre que alguém precisava dela. Se alguém fazia um protesto ou ia para a prisão, Nora fazia uma concentração.

Damián costumava dizer-lhe três coisas sempre que a via: porta-te bem, cuida de ti e sê mais peronista. Todos estes conselhos eram sistematicamente ignorados por Norita, que se divertia com as suas brincadeiras.

A sua avó dizia-lhe sempre uma coisa: que a Praça de Maio - o local por onde passou durante 47 anos - era mágica. Talvez porque toda a dor se transformava em poder. Por isso, o conselho de Nora era: “Vem à Praça”.

Damián quer que ela seja recordada como “uma lutadora de todas as lutas, de todos os tempos e de todos os lugares”.

Sempre na Praça

Taty Almeida, líder das Mães da Praça de Maio - Linha Fundadora, chegou cedo para se despedir da sua companheira de luta.

Mais tarde, chegou Elia Espen, que costumava marchar às quintas-feiras com Norita. Elia, de lenço na mão, aproxima-se do caixão e agarra um microfone para fazer uma promessa à sua amiga.

-Nora, fica tranquila. Garanto-te que não vamos desistir da luta contra estes genocidas sem coração. Continuaremos a lutar. Tu estás ali e sempre estarás.

Vera Jarach estava numa cadeira de rodas ao lado de Elia.

-Norita, continuarás a caminhar connosco. Passo a passo. Em busca de memória e de justiça. Nós amamos-te, amámos-te e continuaremos a amar-te. Estarás presente agora e sempre.

Tantas vezes te mataram

À entrada do micro-estádio, há uma mesa com um retrato de Nora. Alguns deixaram pequenas notas ou reflexões. “Quando o fogo crescer, tu estarás lá”, diz um cartaz. “Foste a minha primeira heroína”, lê-se noutro apontamento. São gestos simples mas profundos de amor, como Nora.

A legisladora de Buenos Aires, Victoria Montenegro, entra e sai da sala. "A querida Norita fará muita falta - afirma. Mãe de todas as lutas, aquela que nunca perdeu a capacidade de lutar sem perder o sorriso. Cabe-nos a nós defender tal legado e prometer-lhe que tanta luta não foi em vão. Por muito difícil que seja, havemos de vencer”.

Era assim que Nora costumava encerrar cada intervenção. Nos últimos tempos, aliás, tinha adquirido outro hábito: cantar Como la cigarra - o hino de María Elena Walsh - que praticava nas suas aulas de canto.

E na sua despedida não houve ninguém que a quisesse contrariar. Com dor, com a garganta apertada, com lágrimas, cantou-se: “A la hora del naufragio/ Y la de la oscuridad/ Alguien te rescatará/ Para ir cantando/ Cantando al sol como la cigarra/ Después de un año bajo la tierra/ Igual que sobreviviente/ Que vuelve de la guerra” (À hora do naufrágio/ E à hora da escuridão/ Alguém te resgatará/ Para ir cantando/ Cantando ao sol como a cigarra/ Depois de um ano debaixo da terra/ Igual que sobrevivente/ Que volta da guerra".


Artigo publicado no jornal Página12. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

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