Argentina: uma multidão nas ruas pela memória contra um governo negacionista

25 de março 2024 - 20:47

Milei escolheu o aniversário do golpe militar que afundou o país numa ditadura sanguinária de extrema-direita para oficializar o discurso negacionista sobre as vítimas. Centenas de milhares responderam nas ruas.

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Foto de @VHMok/Twitter.

Este domingo foi “Dia da Memória” na Argentina. A data assinala o golpe militar que afundou o país numa ditadura sanguinária de extrema-direita entre 1976 e 1983. E foi o momento escolhido pelo governo do ultra-liberal Javier Milei para lançar um vídeo em que se afirma que o número reconhecido de desaparecidos, 30.000, é “inventado”.

Nesse vídeo surge Luis Labraña, um ex-guerrilheiro dos Montoneros, a dizer que inventou o número quando esteve exilado na Holanda, qualificando isso como envolvendo “um grande negócio” para financiar organizações de defesa dos direitos humanos. Esta personagem obscura assegurava nas imagens que apenas havia na altura 4.000 desaparecidos mas que as mães dos desaparecidos disseram que, com tal número, não podiam falar em genocídio, e assim se teria lançado um número maior.

No vídeo afirma-se ainda a tradicional versão de que a repressão e aniquilação sistemática da oposição foi afinal “uma guerra” com “excessos” de ambos os lados, para menorizar os crimes cometidos.

Com a promoção oficial desta teoria da conspiração, o negacionismo dos crimes da ditadura deixou de ser apenas gritado em comícios, sugerido em entrevistas ou obsessão de uma vice-presidente, Victoria Villarruel, que tem laços pessoais com figuras da ditadura, para se tornar discurso oficial a que se foram juntando tuítes e retuítes dos dois mais altos dignatários da nação ao longo do dia.

A reação, a isso e às políticas de destruição do Estado Social, veio logo a seguir com centenas de milhares de pessoas a sair às ruas em várias cidades do país gritando “são 30.000”. Em Buenos Aires, na maior das mobilizações, numa Praça de Maio a abarrotar, assim como as ruas transversais, uma faixa a perder de vista ostentava a cara destes desaparecidos.

A organização anunciou 400.000 manifestantes só na capital. Mas também noutras cidades as manifestações foram multitudinárias.

Voltaram a estar à frente da mobilização as mães e avós destas pessoas que ao longo dos anos fizeram desta a batalha das suas vidas. E coube a Estela de Carlotto, de 93 anos, a presidente das (poucas) avós da Praça de Maio ainda vivas, ler o documento com a resolução das organizações subscritoras da convocatória. Esta leu: “os principais responsáveis civis do terrorismo de Estado continuam impunes: são o poder económico e empresarial do genocídio. Para eles, também exigimos julgamento e castigo já. Continuamos a reclamar e a perguntar onde estão os corpos dos desaparecidos”.

Às várias organizações de familiares dos desaparecidos juntaram-se sindicatos, que tradicionalmente não costumam participar de forma organizada no cortejo - foi mesmo a primeira vez que a central sindical CGT o fez -, os trabalhadores da função pública despedidos por Milei, organizações de defesa dos direitos humanos, movimentos sociais e partidos de vários quadrantes, mas sobretudo os de esquerda. Assim, para além do lado memorial, no contexto atual não podiam faltar as reivindicações sociais contra a “miséria planeada” que grassa dados os planos de austeridade e o desmantelamento do Estado social protagonizados por Milei.

“São 30 mil e estão presentes”, “lute como uma avó”, “nem Milei nem ninguém vai apagar o que somos”, “não à junta militar”, “não é loucura, é fascismo”, “não nos calam nunca mais”, “mais que nunca, nunca mais” foram algumas das palavras de ordem que se podiam ler nos inúmeros cartazes.

Segundo dados da Procuradoria de Crimes contra a Humanidade da Argentina, desde o fim da impunidade de que gozaram os protagonistas da violência durante a ditadura, já foram condenadas por crimes contra a humanidade 1.176 pessoas. Decorrem ainda 79 julgamentos em várias fases com 409 pessoas processadas. Por outro lado, dada a idade avançada destas pessoas, apenas 661 responsáveis pela representação continuam presos.

De acordo com o jornal Página 12, a dimensão do que se passou foi “histórica”. Assim como o foi outro facto: pela primeira vez na história da democracia argentina as tradicionais mobilizações não foram transmitidas nos meios de comunicação social públicos. Entre os privados, claro, também nem todos fizeram a transmissão do evento.