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“Num país decente, a investigação é carreira permanente”

Manifestação contra a precariedade na Ciência reuniu mais de duas mil pessoas em Lisboa. O Esquerda.net acompanhou o protesto e falou com alguns trabalhadores sobre as suas reivindicações, a forma como a precariedade afeta as suas vidas e a própria produção científica.
Foto Mariana Carneiro.

Esta terça-feira, a manifestação nacional contra a precariedade na Ciência começou com uma concentração em frente à Reitoria da Universidade de Lisboa. Depois os trabalhadores científicos rumaram até ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, onde foi solicitada uma audiência com a tutela, por forma a proceder à entrega do manifesto reivindicativo. Alguns membros da organização do protesto foram recebidos pela assessora de imprensa do Ministério enquanto lá fora se ouviam as intervenções dos representantes das inúmeras organizações que convocaram o maior protesto do setor, pelo menos, da última década (Ver fotogaleria da manifestação).

As reivindicações não são novas, mas têm sido ignoradas pelos sucessivos governos. Os trabalhadores exigem o fim da precarização dos vínculos que abrangem investigadores, seja com contrato, bolsa ou vínculo pontual, os falsos docentes convidados, gestores e comunicadores de ciência e técnicos de investigação. Querem ver revogado o Estatuto do Bolseiro de Investigação e as bolsas substituídas por contratos de trabalho. Assim como a garantia de um aumento das transferências do Orçamento do Estado que ponha termo ao subfinanciamento crónico do setor.

Estas reivindicações estiveram patentes, aliás, nas palavras de ordem proferidas durante o percurso, como “Senhora ministra, num país decente, a investigação é carreira permanente”, ou nas faixas e cartazes onde se liam, entre outras, as seguintes frases: “Contratos permanentes já!”; “Pelo fim da precariedade na ciência”, ou “Não ao prazo na investigação”.

“O Ensino Superior e a Ciência estão unidos”

Ainda na Cidade Universitária, Bárbara Carvalho, presidente da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), destacou o facto de esta manifestação ser “muito agregadora”.

A dirigente associativa assinalou a presença de “investigadores com vínculos de bolsas, com vínculos de contratos precários, docentes de carreira, falsos docentes convidados, gestores de ciência, técnicos de investigação”, que vieram “um pouco de todo o país” e de “diversos tipos de instituições”.

Bárbara Carvalho acrescentou que o protesto mostra que “o Ensino Superior e a Ciência estão unidos e que as reivindicações são comuns”. “Aquilo que queremos e que precisamos é, de facto, integração nas carreiras, estabilidade e previsibilidade”, vincou.

A representante da ABIC agradeceu ainda a presença do deputado do PCP Manuel Loff e da deputada bloquista Joana Mortágua.

“A geração mais qualificada e mais precária de sempre”

Joana Mortágua saudou a “extraordinária manifestação de força” dos trabalhadores científicos e afirmou esperar que estes consigam, mediante esta mobilização tão expressiva, “forçar a ministra a sentar-se na mesa das negociações” e a responder às suas justas reivindicações.

A deputada bloquista frisou, inclusive, que deseja que este “seja o início de uma grande jornada, porque o momento é este”. De acordo com Joana, “vivemos o paradoxo de sermos confrontados com a absoluta precariedade dos setores da sociedade que nos disseram a vida inteira que eram os setores privilegiados”.

“A geração mais qualificada de sempre que, afinal, é a geração mais precária de sempre”, acrescentou.

A deputada bloquista referiu que “conseguimos perceber porque é que isso aconteceu”: “Porque o financiamento público foi substituído por financiamento privado, porque os diretores e gestores das instituições passaram a gerir empresas privadas à base da precariedade e de curtos orçamentos que gerem de acordo com os interesses daquilo que parecem ser acionistas privados e não no interesse de uma política pública de financiamento”, apontou.

Joana Mortágua acusou o Governo de ter “um modelo de combate à precariedade que é ele próprio precário” e de não passar das promessas, não avançando com “uma única proposta na mesa das negociações com os sindicatos e com as organizações representativas”. “E é por isso que o momento é este”, rematou.

Uma vida a prazo”

Raquel Ribeiro, do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais (FCSH) e Humanas tem agora um contrato ao abrigo do Estímulo ao Emprego Científico, mas explicou ao Esquerda.net que este vínculo não a deixa respirar totalmente de alívio, porque a própria faculdade a “obriga constantemente a apresentar candidaturas a fundos” para poder ter um novo contrato a seguir.

É uma “vida a prazo, vivemos aos soluços”, acrescentou Cristina Pratas Cruzeiro, do Instituto de História de Arte da FCSH. “Enquanto os nossos contratos e as nossas bolsas duram, vamos conseguindo manter as nossas obrigações, assim que se aproxima o fim das nossas bolsas, dos nossos vínculos precários, a situação altera-se e entramos numa situação de grande angústia”, detalhou.

Cristina foi bolseira de doutoramento, depois bolseira Pós-Doc, agora investigadora CEEC. “É um longo historial de precariedade, que é o que acontece com a grande maioria dos colegas”, vincou. E há quem viva nesta angústia “há cinco anos, 10 anos, 15 anos, 20 anos ou até 25 anos”.

Cristina lembrou a particularidade dos bolseiros, “que estão totalmente desprotegidos, sem sequer terem acesso ao subsídio de desemprego”.

Já Raquel referiu ainda a situação dos falsos docentes convidados, que “são mato numa instituição como a FCSH” e garantem grande parte das aulas e das avaliações.

A FSCH tem 180 contratados a prazo e 60 bolseiros, num total de 240 trabalhadores científicos, número que, conforme esclareceu Raquel, engloba também gestores de Ciência, alguns dos quais a cumprir greve esta terça-feira pela primeira vez.

Nos próximos dois anos, “uma percentagem relevante dos investigadores vai ficar sem contrato”, alertou Cristina. A investigadora do Instituto de História de Arte frisou que “a direção e as reitorias têm de se pronunciar e fazer pressão junto do Governo para que se altere esta situação e para que haja dotação no orçamento do Estado para a investigação e para a carreira de investigação”

“Tem de haver uma mudança de política, no fundo é aquilo por que lutamos, não basta ir abrindo concursos aqui e concursos ali. Há uma situação no país que tem de ser resolvida e essa situação só pode ser resolvida com uma vontade política que não tem havido por parte dos vários governos que temos tido”, denunciou.

Investigadores respondem a cada vez mais solicitações”

No Iscte - Instituto Universitário de Lisboa ou na NOVA School of Science and Technology | FCT NOVA, a precariedade na Ciência também é regra.

Susana Santos, representante do núcleo de investigadores do ISCTE, estima que existam 104 pessoas a trabalhar em investigação científica nesta instituição. E isto sem contar com os gestores de ciência. Do universo de 104 trabalhadores científicos, 88% precários, e “uma parte importante vai terminar o vínculo no próximo ano, em outubro e dezembro”.

Vítor Rosas, da FCT NOVA, está abrangido pela norma transitória. O seu contrato, de seis anos, acaba a 18 de dezembro de 2024. Só no departamento de química existem 45 investigadores ao abrigo da norma transitória que vão estar no desemprego daqui a um ano.

A capacidade de adaptação dos profissionais é extraordinária, mas, tal como sublinhou Susana, muitos acabam por emigrar ou por “ir trabalhar para outras atividades”. Vítor dá o exemplo dos investigadores estrangeiros que decidiram desenvolver os seus projetos em Portugal e que acabam por voltar para os seus países.

Ambos assinalaram que não só os profissionais são prejudicados como se desperdiçam recursos, dinheiro, conhecimento.

“O tempo de investigação pode demorar anos, e quando começamos a ter resultados… adeus, já acabou. Desperdiçam-se, inclusive, financiamentos da União Europeia”, afirmou Vítor.

Susana deu conta do tempo gasto em relatórios de avaliação de desempenho ou “a imaginar e criar projetos que nunca vêm a ser aprovados, ainda que bem avaliados”, para poder concorrer a concursos. “É tempo que não estou a dedicar ao meu projeto de investigação que foi aprovado pela instituição”, lamentou.

Os investigadores “respondem a cada vez mais solicitações”, o que se traduz no “sacrifício da sua vida pessoal”, diz a representante do núcleo de investigadores do ISCTE. E, por exemplo, ao assegurarem boa parte da avaliação dos centros de investigação, contribuem “muito ativamente para que instituições persistam e possam manter atividades”.

Pensos rápidos não resolvem um problema estrutural e sistémico”

André Carmo, coordenador do Departamento de Ensino Superior e Investigação do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e dirigente da FENPROF, adiantou que a adesão expressiva ao protesto desta terça-feira é resultado do “descontentamento enorme que se arrasta há muitos anos”.

De acordo com o dirigente sindical, se existiam algumas expectativas da academia, dos investigadores, dos docentes “face à alteração da figura responsável pela condução da governação desta área”, as mesmas têm vindo a ser totalmente defraudadas.

Inclusive, a substituição das bolsas por contratos de trabalho no âmbito do estímulo ao emprego científico (CEEC) traduz-se “numa valorização e uma dignificação do trabalho”, mas “não resolve o problema da precariedade”.

“Antes do CEEC já tinha existido o investigador FCT, e antes disso o programa Ciência, que geraram fundadas expetativas juntos dos beneficiários destes programas de que haveria um caminho que levaria à integração na carreira de investigação científica. Isso não foi assim. Depois tivemos o PREVPAP, em que se repetiu a mesma lógica. Andamos a empurrar com a barriga e a defraudar expetativas com pensos rápidos que não resolvem um problema que é estrutural e sistémico da Ciência em Portugal”, enfatizou André Carmo.

O dirigente sindical assinalou o “bloqueio sistemático ao combate à precariedade” por parte das instituições, do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) e do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (CCISP), que têm sido “atores de precarização da força de trabalho em vez de se juntarem a nós no combate à precariedade”.

E a razão para que assim seja está à vista de todos: “O sistema de ensino superior, o sistema científico e tecnológico nacional, está há décadas num quadro de subfinanciamento crónico permanente. Isto leva à retração das instituições”, nomeadamente na abertura de concursos, porque “temem aumentar a sua massa salarial”, referiu André Carmo.

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