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Negócios das arábias

França fechou contrato com os Emirados Árabes Unidos para a venda de 80 aviões de combate Rafale e helicópteros Caracal por 17 mil milhões de euros. É o maior contrato de sempre da indústria de armamento francesa.
Houdeida, Iémen, julho 2019. Foto de José Manuel Pureza.

É bom para a economia, cria empregos, disse o Presidente francês. Depois de falhado o negócio dos submarinos para a Austrália, a França fechou contrato com os Emirados Árabes Unidos para a venda de 80 aviões de combate Rafale e helicópteros Caracal por 17 mil milhões de euros. É o maior contrato de sempre da indústria de armamento francesa.

O relatório de 2020 do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês) dá conta de que França é o terceiro país que mais armas exporta (8,2% de quota de mercado), logo a seguir aos Estados Unidos e Rússia, e à frente da Alemanha e da China. Do lado dos países importadores, os Emirados Árabes Unidos ocupam a 9ª posição (3% do total das importações), mas convém notar que esta monarquia do Golfo tem apenas 83.000 km2 (Portugal tem 92.000) e cerca de 9 milhões de habitantes, sendo que a esmagadora maioria são expatriados. Os Emirados têm, obviamente, muito dinheiro. E o dinheiro ajuda a esquecer o que têm feito no Iémen, bem como o apoio que deram ao Marechal Kalifa Haftar, líder das forças que controlam a região oriental da Líbia e inimigo do governo sediado em Tripoli e que é reconhecido pela ONU.

Iémen

Parecem assim esquecidas as acusações de crimes de guerra por tudo o que os Emirados fizeram no Iémen, país em relação ao qual a ONU já fez soar todas as campainhas de alarme, embora poucos tenham ouvido. O Iémen chegou àquele ponto em que se sabe que morreram muitos milhares de pessoas sem ao certo se saber quantas. E também se sabe que cerca de 20 milhões de pessoas precisam de assistência básica para poderem sobreviver. Mais uma vez a ONU alertou para a eventual “pior crise de fome vista na história moderna”.

Jamal Khashoggi

Depois dos Emirados, Emmanuel Macron esteve no Qatar e na Arábia Saudita. No Reino da Casa de Saud a história é obrigatoriamente diferente. Para além dos contratos de armamento que Paris mantém com Riad (disclose.ngo/fr/), há uma outra questão importante: a liderança do príncipe herdeiro Mohammed Bin Salman (MBS), acusado de ter autorizado o assassinato (2 de Outubro de 2018) e desmembramento do cadáver do jornalista saudita Jamal Khashoggi, no consulado saudita em Istambul. Este caso é um dos maiores embaraços da diplomacia internacional: estar perante a evidência de um crime e não conseguir/querer punir os responsáveis. O relatório da CIA libertado em fevereiro de 2021 não deixa dúvidas e o certo é que o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ainda não deu qualquer passo de aproximação ao príncipe MBS, tendo aliás prometido durante a campanha eleitoral que o transformaria num pária diplomático.

Apertos-de-mão

Emmanuel Macron esteve na Arábia Saudita, almoçou com MBS e a secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard, não poupou nas palavras: “foi a reabilitação de um príncipe assassino”!

Saúde-se, no entanto, a franqueza de Macron. Reconhece desde logo que a alteração do posicionamento dos Estados Unidos no Médio Oriente, abre oportunidades a outros actores internacionais e acrescenta, citado pela Agência France Press, que “o diálogo com a Arábia Saudita é uma necessidade”, devido ao seu “peso demográfico, económico, histórico e religioso”. É, de facto, uma necessidade, atendendo ao potencial do Reino para as exportações francesas. Nem que para isso Macron tenha de apertar a mão e almoçar com MBS. Em Riad, entre vários contratos no âmbito da aviação civil, a Airbus vendeu helicópteros e a multinacional francesa Vieolia assinou contratos para gestão de água potável e ainda para o tratamento de resíduos industriais, neste caso com a petrolífera saudita Aramco.

Direitos Humanos

O que está em causa no relacionamento e na venda de armas a regimes que não respeitam os Direitos Humanos não é propriamente a atitude de Emmanuel Macron, porque a história diz-nos que outros fizeram o mesmo, como por exemplo o “socialista” François Hollande e, não há muito tempo, a Administração norte-americana de Donald Trump, utilizando algumas vezes aquele argumento tolo de que as armas fornecidas aos países membros da coligação que combate os rebeldes Houthis no Iémen, não serviriam para esse combate, como se fosse possível verificar todas as armas utilizadas e, aliás, como se não existissem provas de que essas armas foram mesmo utilizadas no Iémen. O que está em causa não são as armas vendidas mas sim a utilização que lhes é dada e a quase certeza de que as características dos regimes que as compram são mais do que meio caminho andado para desmandos de todos os géneros. Em resumo, é uma questão de Direitos Humanos.

Escolhas

Mas é também uma questão de legitimidade política. Não é possível estar à mesa do Conselho Europeu a criticar o Primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, devido à discriminação da comunidade LGBTI na Hungria, enquanto se aceita tudo o que é feito noutros países apenas porque são bons parceiros comerciais; não é possível ameaçar a Polónia com sanções por ter um governo ultranacionalista que rejeita a primazia do Direito europeu sobre o Direito nacional e aceitar vender armas que matam civis no Iémen; não é possível criticar e aplicar sanções ao presidente bielorusso Alexander Lukachenko – que não respeita a liberdade de imprensa – e aceitar a impunidade de quem é responsável pela morte do jornalista Jamal Kashoggi.

Os Direitos Humanos são – sempre – uma linha vermelha. Para a vida fazer sentido e a política ser credível (não venham depois queixar-se dos populismos…), há apertos-de-mão que não se podem dar e negócios que não se podem fazer.

Por José Manuel Rosendo em meu Mundo, minha Aldeia.

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