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Não, os nazis não eram socialistas

A ideia de que os nazis eram socialistas é completamente absurda. Infelizmente, figuras da direita não só reforçam essa falácia como se apropriam até dessa conceção. Na verdade, eles eram declaradamente anti-socialistas. Por Scott Sehon.
Bandeiras nazis na Alemanha. Fonte: Wikimedia.

“À medida que uma discussão online se prolonga”, afirma a Lei de Godwin, “a probabilidade de uma comparação envolvendo nazis ou Hitler é maior”. Quando atacam os socialistas democráticos com fake news, poderíamos esperar que essa tática estivesse limitada a trocas de gritos no Twitter.

Mas não. O senador Rand Paul, no seu livro The Case Against Socialism de 2019, declara: “Hitler era um socialista”.

Dá vontade de apenas revirar os olhos e seguir em frente. Mas, como a ideia de que os nazis eram socialistas contagia o pensamento de muitas pessoas razoáveis, é bom saber exatamente como responder. A versão mais curta é: não, os nazistas não eram socialistas.

Ignorância ou má fé?

O senador Paul começa por ridicularizar a esquerda por negar que os nazis eram socialistas: “Portanto, apesar dos nazis terem literalmente a palavra ‘socialista’ no seu nome – Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães – a esquerda fez um esforço conjunto para rotular os nazis como ‘extrema-direita’.”

O argumento de Paul aqui parte da premissa inegável de que os nazis tinham “socialista” como parte do seu nome para concluir que os nazis eram, de facto, socialistas. Para que essa inferência funcione, Paul precisa de uma premissa intermediária como a seguinte: se uma organização tem um adjetivo no seu nome, então a organização está corretamente descrita por esse adjetivo.

Mas se o senador Paul realmente acreditasse nisso, então seria forçado a concluir que a Alemanha Oriental comunista e a atual Coreia do Norte são consideradas democracias, pois a República Democrática Alemã e a República Popular Democrática da Coreia do Norte têm o adjetivo “democrático” como parte do seu nome. Eu não acho que ele acredita nisso.

O senador Paul aponta então para três outras provas. Primeiro, Paul cita o plano de vinte e cinco pontos que o incipiente Partido Nazi elaborou em 1920. Ele começa com este ponto: “Exigimos a nacionalização de todas as indústrias (anteriormente) associadas (trustes). (A essência do socialismo – propriedade estatal dos meios de produção.)”

As palavras em itálico depois deste ponto são do próprio autor, adicionadas como comentário, sugerindo que os nazis estavam a defender a propriedade estatal dos meios de produção. Mas uma tradução mais direta do alemão original seria: “Exigimos a nacionalização de todas as empresas (trustes) anteriormente socializadas”.

Assim, ao invés da nacionalização de todas as empresas, o documento fala apenas sobre certos tipos de trustes, sem ser muito explícito quanto à natureza ou extensão dessas entidades. É difícil dizer exatamente o que os nazis tinham em mente aqui, mas não era um apelo a uma expansão da propriedade estatal dos meios de produção.

O último item citado por Paul é o número dezassete dos vinte e cinco pontos e parece ser o mais explicitamente socialista: “Exigimos uma reforma agrária adequada às nossas necessidades, a criação de uma lei para a livre expropriação de terras para fins de utilidade pública, a abolição dos impostos sobre a terra e prevenção de toda especulação fundiária.”

No entanto, num documento assinado pelo próprio Hitler, os nazis acrescentaram, explicitamente, um ponto explicativo em 1930. Ainda, bem antes de chegarem ao poder, esta declaração afirma o cerne da posição nazis (ênfase no original; a tradução é minha):

Face a interpretações desonestas do Ponto 17 por opositores do partido, a seguinte declaração é necessária: uma vez que o NSDAP se baseia na propriedade privada, é evidente que a palavra “expropriação” apenas se refere à criação de possibilidade legal de desapropriar, quando necessário, terras adquiridas de forma injusta ou que não estejam a ser administradas de acordo com o interesse do bem comum. Consequentemente, isto é principalmente dirigido contra empresas de especulação imobiliária judaicas.

Quando os nazis falaram sobre expropriação, queriam dizer apropriar-se de propriedades pertencentes aos judeus; eles eram totalmente a favor da propriedade privada para os outros.

Muito possivelmente, o senador Paul simplesmente ignorava essa adenda crucial. Ou talvez soubesse disso, sabia que minava o seu argumento básico e simplesmente optou por não mencioná-lo.

A segunda evidência do senador Paul parece originar-se num meme que foi divulgado em círculos conservadores há alguns anos, apresentando uma foto de Hitler com uma suposta citação começando com “somos socialistas…”. Uma simples verificação de veracidade do meme já mostra que a informação é falsa, em parte porque a citação não era de Hitler, mas de Gregor Strasser.

Paul entende isso, mas ainda assim usa o mesmo texto do meme e diz: “Da mesma forma, o nazi Gregor Strasser falou aos seus companheiros nazis: ‘Somos socialistas. Somos inimigos, inimigos mortais, do atual sistema económico capitalista, com a sua exploração económica sobre os mais fracos, com a sua injustiça salarial, com a sua avaliação imoral dos indivíduos de acordo com a riqueza e dinheiro em vez de responsabilidade e realização, e estamos determinados, sob todas circunstâncias, a abolir este sistema!’”

Mas, como o snopes.com publicou, Gregor Strasser é um nazi peculiar para ser citado sobre este ou em qualquer ponto.

Strasser era de facto um nazi, com visões nacionalistas e anti-semitas totalmente repreensíveis que misturou com algumas ideias económicas tradicionalmente esquerdistas. E ele era um nazi de alto escalão, comandou o departamento de propaganda do partido e as suas operações diárias durante algum tempo.

Mas quaisquer ideias esquerdistas que ele tivesse foram totalmente rejeitadas por Hitler no final dos anos 1920. Strasser renunciou a qualquer posição de autoridade dentro do partido no final de 1932, antes dos nazis chegarem ao poder em 1933, e ele foi literalmente assassinado pelos nazis na “Noite das Facas Longas” no início de 1934, quando Hitler fez com que centenas de oponentes políticos fossem executados extrajudicialmente – incluindo, crucialmente, toda a ala do partido pró-Strasser.

Se o melhor que o senador Paul pode fazer para representar os nazistas como socialistas é citar um nazi cujas opiniões fizeram com que ele e outros como ele fossem expulsos do partido e assassinados – e cujas opiniões reacionárias são consideradas completamente desprezíveis por todas as grandes correntes de socialistas hoje – então não está a argumentar corretamente.

Mais uma vez, temos as mesmas duas possibilidades em relação ao senador: ou ele não demorou cinco minutos para descobrir quem era Strasser, ou decidiu varrer essa informação para debaixo do tapete – talvez pensando que os socialistas teriam preguiça de verificar.

A terceira fonte de Paul para a sua afirmação de que Hitler é um socialista é um artigo no Independent de George Watson. Watson baseia as suas afirmações quase inteiramente em algumas coisas que Hitler supostamente disse ao seu ex-conselheiro Otto Wagener.

As memórias de Wagener foram publicadas postumamente em alemão em 1978 num livro com um título que se traduz como Hitler de perto: Notas de um Confidente 1929-1932. Por que apenas até 1932? Porque Wagener foi logo a seguir removido da sua posição de autoridade e até mesmo detido na “Noite das Facas Longas”. Wagener escreveu o texto enquanto prisioneiro de guerra em 1946.

Wagener relata que Hitler disse que via todo o nacional-socialismo baseado em Karl Marx. Essa é uma afirmação estranha da parte de Wagener, dado o documento que mencionei acima assinado por Hitler, segundo o qual o Partido Nazi “se baseia na propriedade privada” – não é uma ideia caracteristicamente marxista.

De modo mais geral, se a melhor evidência que temos de que o governo nazi era socialista se resume a alguns comentários esparsos que Hitler supostamente fez em particular, antes de assumir o poder, e para alguém que foi expulso do partido, então essa é uma prova bastante fraca.

Em comparação, suponha que houvesse um livro publicado na década de 1990 por alguém alegando que Ronald Reagan havia dito em 1977 que suas ideias centrais eram baseadas nos escritos de Leon Trotsky, mas que o autor deste livro foi expulso do Partido Republicano no início de 1981 e não desempenhou nenhum papel adicional na administração de Reagan. Tomaríamos isso como prova decisiva – ou sequer como prova a qualquer nível – de que a presidência de Reagan nos anos 80 era trotskista?

O oposto do socialismo

Em vez de confiar no que eles supostamente disseram, vejamos o que os nazis de facto fizeram enquanto estavam no poder.

Para começar, os nazis prenderam os 81 parlamentares do Partido Comunista Alemão devidamente eleitos e prenderam-nos em campos de concentração administrados pelos nazis. Os nazis também prenderam 26 dos 120 social-democratas eleitos.

Isso não foi por acaso – ao evitar que esses representantes estivessem presentes no Parlamento alemão, os nazis conseguiram aprovar a Lei de Habilitação, que deu a Hitler o poder ditatorial, pois foram apenas esses partidos de esquerda que ousaram opor-se a Hitler.

Depois de terem o poder absoluto, se os nazis fossem realmente socialistas, poder-se-ia esperar que tivessem agido como socialistas. Em particular, a característica definidora clássica de um socialismo é a propriedade coletiva dos meios de produção. Os nazis aumentaram a propriedade coletiva nacionalizando recursos privados? Não. Na verdade, eles fizeram o oposto.

Num artigo de 2010 na Economic History Review, Germà Bel relata que “o governo nazi na Alemanha dos anos 1930 implementou uma política de privatização em grande escala” que envolvia a venda de “propriedade pública de várias empresas estatais” que operavam nos setores de “aço, mineração, bancos, estaleiro, linhas de navios e ferrovias”.

O senador Paul admite que houve pouca propriedade coletiva sob os nazismo, mas afirma que “as indústrias eram propriedade privada apenas no nome”. Ele diz: “O controle do Estado sobre a indústria era tão completo que, na realidade, os proprietários foram essencialmente privados do controle privado das suas propriedades”. Como prova para essa afirmação, Paul parece citar o economista de meados do século Ludwig von Mises:

“Sob o nacional-socialismo havia, como Mises colocou, ‘um sistema superficial de propriedade privada… mas os nazis exerciam controle central ilimitado de todas as decisões económicas’. Com o lucro e a produção ditados pelo Estado, a indústria funcionava como se o governo tivesse confiscado todos os meios de produção, impossibilitando a previsão e o cálculo económico.”

Digo que o senador Paul “parece” citar Mises porque a fonte das palavras entre as aspas está longe de ser clara. A única nota de rodapé no parágrafo de Paul é para um artigo de Chris Calton publicado no site do Mises Institute e as primeiras seis palavras da citação, “um sistema superficial de propriedade privada”, são na verdade apenas de Calton, sem nenhuma sugestão de que Mises as disse.

A situação piora. O resto da suposta citação, alegando que “os nazis exerceram controle central e ilimitado de todas as decisões económicas”, não pode ser encontrada em nenhum lugar do artigo de Calton, nem no livro de Mises ao qual Calton se refere no seu artigo. Uma pesquisa no Google revela essas palavras apenas no próprio livro de Rand Paul.

Acontece que a afirmação mais clara de Paul sobre o controle nazi da economia foi, aparentemente, apenas algo que o senador inventou e falsamente atribuiu a Ludwig von Mises.

Fontes mais informadas fornecem uma imagem diferente. Embora a autoridade fosse altamente centralizada na Alemanha nazi, esse controle não era de forma alguma tão amplo quanto afirma o senador Paul. Num artigo no Journal of Economic History, Christoph Buchheim e Jonas Scherner escrevem: “A noção de que a propriedade da empresa privada durante o Terceiro Reich tinha sido preservada apenas num sentido nominal e que na realidade quase nada restaria da autonomia das empresas como atores económicos é gravemente deturpada.”

Buchheim e Scherner continuam observando que as empresas alemãs, mesmo aquelas relacionadas com a produção de guerra, “ainda tinham amplo espaço para seguir os seus próprios planos de produção”. Além disso, “a liberdade de contrato foi respeitada” e “até no que diz respeito aos seus próprios projetos de investimento relacionados com guerra e a autarcia, o Estado normalmente não usava o poder para garantir o apoio incondicional da indústria”.

Os autores concluem que “as economias da Alemanha e dos Aliados ocidentais ainda eram bastante semelhantes, pois eram todas basicamente capitalistas”.

Uma injúria vazia, não uma alegação séria

Porque os conservadores como o senador Paul continuam a repetir a afirmação de que os nazis eram socialistas? A motivação óbvia é simplesmente caluniar aqueles que defendem o socialismo e não há calúnia maior do que associar alguém a Hitler.

Mas, ao invés de oferecer argumentos sérios para sustentar essa afirmação, o senador Paul apresenta um raciocínio de má qualidade, põe de lado factos inconvenientes e até inventa citações. Ou talvez ele possa apenas dizer que está a tentar apresentar “factos alternativos” sobre a Alemanha nazi.

Numa reviravolta irónica, o senador Paul afirma, num capítulo anterior, que os governos socialistas têm de contar com um “ministério de propaganda” para distrair as pessoas com afirmações falsas. Não consigo pensar numa descrição mais adequada para explicar o objetivo do seu próprio livro.


Scott Sehon é professor de filosofia no Bowdoin College. É autor de "Free Will and Action Explanation" e atualmente ele está a trabalhar num livro chamado "Socialism for Smart People".

Texto publicado originalmente na Jacobin. Traduzido para português por Deborah Almeida, David Guapindaia e Isabela Gesser para a Jacobin Brasil. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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