Estreia esta semana em Lisboa no CinemaCity Alvalade, com sessões diárias às 19h entre 12 e 18 de maio o documentário "Não apaguem os nossos rastos! Dominique Grange, uma cntora de protesto". Nos dias 12 e 13 a sessão é seguida de debate com o realizador e convidados. O Esquerda.net falou com Pedro Fidalgo sobre mais este projeto autoproduzido e financiado por apoiantes, à semelhança do anterior "Mudar de Vida, José Mario Branco, vida e obra", estreado em 2014.
Dominique Grange e Pedro Fidalgo durante as filmagens.
Com este documentário, o realizador volta a evidenciar o poder da música nas lutas sociais, desta vez tendo como protagonista uma das vozes do Maio de 68, Dominique Grange. Mais de meio século após essa revolta, Dominique não perdeu o empenho militante e nas manifestações em que participa confirma que nem as lutas nem mesmo as canções que fez na altura perderam atualidade.
Ouça algumas das músicas referidas ao longo da entrevista realizada por Luís Branco.
Quase dez anos depois do "Mudar de Vida" em torno da obra do José Mário Branco, lanças este "Não Apaguem os Nossos Rastos" centrado no percurso da cantora Dominique Grange, umas das vozes do Maio de 68 e que também diz que "a cantiga é uma arma"...
Não passaram ainda 10 anos, o "Mudar de Vida" estreou no IndieLisboa em 2014. Mas ainda andávamos a filmar o "Mudar de Vida, José Mario Branco, vida e obra" e já eu me interessava pelas canções da Dominique Grange, contactei-a logo a seguir...
Quiseste replicar o modelo à realidade francesa?
Cheguei a França em Setembro de 2005 e, alguns meses após a minha chegada, assisti ao movimento contra o CPE [Contrato Primeiro Emprego]. As marcas do Maio de 68 pareciam-me presentes nos slogans, nas atitudes, nas reivindicações do meio estudantil que frequentava. Foi durante a mobilização e a ocupação da universidade de Paris 8 que pude ver o filme "Ghetto Experimental" de Jean-Michel Carré (1973) e que ouvi pela primeira vez uma canção de Dominique Grange em banda-sonora. No filme, dezenas de grupúsculos desejam um mundo novo, manifestam-se, militam e, de repente, a voz de uma rapariga, apenas acompanhada de uma guitarra, canta "A Bas l'État Policier!" (e no genérico "Chacun de vous est concerné"). Estas canções ficaram-me gravadas na memória como uma emanação do passado, mas que era ao mesmo tempo uma expressão do presente que então eu estava a viver. Além disso, o filme evoca a aventura da Universidade de Vincennes, da qual a minha universidade de então era herdeira direta. Foi a partir deste período que comecei a documentar a minha motivação política e os movimentos nos quais pude participar. Câmara na mão, queria fazer como os realizadores e coletivos que acompanharam o Maio de 68: Chris Marker, William Klein, os coletivos Slon, Medvekine, ou o Grupo Dziga Vertov... Referências banais para um estudante de Cinema, mas que me pareciam ganhar sentido quando participava na minha primeira "manif selvagem" ou na minha primeira barricada.
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O que é que te atraiu nesta artista militante?
O facto de ela ser pouco conhecida, de que quando procuramos canções sobre o Maio de 68, apenas encontramos músicas compostas postumamente, mas são raras as escritas e compostas, ou gravadas mesmo, durante o movimento. Há as canções do CMDO - Comité Pour le Maintien des Occupations que foram gravadas pelos situacionistas. Na sua maioria são adaptações musicais já existentes, mudam apenas os arranjos e as letras. Há mesmo uma letra escrita pelo Guy Debord, mas para além desse disco, restam-nos as canções auto-produzidas pela Dominique Grange para apoiar o movimento. Para mim é a "cantora do Maio de 68", não porque seja a única, mas porque as canções falam do que se passava e foram gravadas quase em tempo real, e porque ela transporta o mesmo estado de espírito até aos dias de hoje.
E como é que ela reagiu à ideia?
A primeira vez que nos encontràmos, a Dominique ficou surpreendida que um realizador português, bastante mais jovem, quisesse fazer um filme através do seu percurso. Contei-lhe que uma das suas canções mais emblemáticas, "Les Nouveaux Partisans" (escrita em 1970), tinha sido traduzida em Portugal e cantada durante o pós-25 de Abril. Qual não tinha sido também a minha surpresa quando descobri que a canção tinha sido precisamente gravada pelo grupo G.A.C. do qual fazia parte José Mário Branco sob o título "Até à vitória final"!
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Também foi com algum prazer que "descobrimos" ter um “adversário” em comum: Nicolas Sarkozy (entre outros!). Era o Ministro do Interior durante o movimento contra o Contrato Primeiro Emprego (2006), movimento em que participei e filmei ativamente desde a minha chegada em França, mas também era o gajo que queria “liquidar a herança do Maio de 68 de uma vez por todas”. Em resposta aos discursos de Sarkozy, Dominique Grange compôs uma canção que dá agora título ao filme: "N’effacez pas nos traces!". Foi assim que comecei a seguir de perto o percurso musical da Dominique, nomeadamente o álbum "Les lendemains qui saignent", que me impressionou bastante. As canções, acompanhadas de textos lidos pelo Tardi, marido da cantora, fazem parte do repertório antimilitarista, sendo algumas delas compostas por ela mesma, nomeadamente para o espetáculo "Putain de Guerre!", montado em 2014, com o grupo Accordzéâm, que foi apresentado no Amadora BD em 2015. A rodagem durou alguns anos, mas o filme é completamente atual, pois Emanuel Macron é herdeiro direto das politicas de Sarkozy, não é por nada que os expulsamos do filme a um dado momento...
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A par das músicas e palavras de Dominique Grange e das imagens do Maio de 68, o filme percorre também as lutas sociais em França nas últimas décadas através dessas imagens que filmaste junto dos movimentos de contestação aos sucessivos governos, solidariedade com a Palestina, entre outras, algumas com a presença dela. É uma forma de inscrever essas memórias no presente?
Este filme debruça-se também sobre as recentes lutas. Tanto para mim como para a Dominique é importante que este filme se insira na atualidade, pois a obra dela é concebida como um "compromisso perpétuo". O slogan de 1968 "Ce n'est qu'un début, continuons le combat" repercute-se tanto nela como em nós. Foi neste estado de espírito que filmei e acompanhei o movimento social em França: CPE (2006), LRU (2007), Retraites (2010), ZAD (2014), Lei Trabalho e Nuit Debout (2016), Parcoursup (2017), Coletes Amarelos (2019). Estes "arquivos do presente" entrecruzam-se e misturam-se com imagens e canções de Maio de 68, mas também com desenhos de Tardi. Trata-se de realçar as lutas do passado juntas, e rechear através delas o real do presente.
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Numa entrevista, ela queixa-se das manifestações em que há uns camiões com altifalantes que debitam palavras de ordem e música comercial que impedem as pessoas de cantarem canções. Temes que no futuro um realizador como tu já não consiga encontrar estes protagonistas musicais das lutas?
Não, bem pelo contrário. Ao longo do filme vemos a importância da canção como forma de protesto, cantada em manifestações, não só as tradicionais "Semana Sangrenta" ou "A Internacional", mas também as canções da Dominique Grange, por vezes cantadas por pessoas em manifestações. Também vemos no filme Dominique Grange cantar "A Internacional" ou a canção dos Coletes Amarelos contra Emmanuel Macron. Tardi, que dá voz ao filme enquanto narrador, evoca a certo momento do filme que a estrofe de "A bas l'État Policier!" voltou a ser entoada nas manifestações contra a repressão policial. Chegámos mesmo a ver pessoas na manifestação cantar o refrão.
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Jacques Tardi, que também faz a banda desenhada no documentário, é o companheiro de vida da cantora e autor do álbum que acompanha o CD lançado nos 40 anos do Maio de 68 com o mesmo título, "N'Effacez Pas Nos Traces!". De que forma é que a introdução da linguagem da BD influenciou a montagem do documentário?
Muitos dos desenhos fazem parte dos diversos espectáculos que filmei. Não podia fazer um filme sobre a atual Dominique Grange sem incluir o Tardi. Pois ambos trabalham juntos, seja ela como guionista de banda desenhada, seja a presença dele nos espectáculos ou as ilustrações dos últimos discos. No filme, os desenhos enriquecem sobretudo a narrativa permitindo aos arquivos viverem por si próprios e evitar uma simples ilustração. Os desenhos também realçam os arquivos sonoros e vice-versa. Trata-se do retrato de uma cantora, sim, mas também de um casal e de uma geração. Os desenhos vêm pontuar momentos históricos, algumas épocas em que não haviam fotografias ou filmes, como é o caso da Comuna de Paris.
O filme também está repleto de encontros: com Brigite Gothière, co-fundadora da Associação L214, que milita pelos direitos dos animais. Brigitte e Dominique falam-nos da relação que há entre a luta de classes e a causa animal. Dominique e Tardi encontram o militante anarquista e pacifista Maurice Montet na Radio Libertaire. Explicam a importância do espetáculo antimilitarista "Putain de guerre!" no contexto atual. Oreste Scalzone e Dominique falam-nos do direito ao asilo num café de uma rua típica de Paris e da extradição dos exilados italianos como Paolo Persichetti ou Cesare Batisti. Dominique canta no Jargon Libre, biblioteca anarquista onde se encontra Helyette Besse, ex-prisioneira política condenada por cumplicidade com o grupo Ação Direta. A cantautora também encontra uma carta que lhe foi enviada há 40 anos por Djamila Lesmale. Dominique nunca respondeu. As duas mulheres encontram-se através do filme no bairro pobre da Goutte d’Or onde Dominique Grange militou com o Secours Rouge e através do qual Djamila, apenas com 7 anos, a ouviu pela primeira vez cantar.
Todos estes encontros permitem relacionar as diferentes causas pelas quais Dominique militou e continua a militar, e os desenhos e a voz do Tardi estão lá para contextualizar a vivência contada na primeira pessoa por Dominique Grange. Não diria que é um filme interseccional, mas um filme que reúne as lutas através de uma transversalidade de épocas, movimentos e causas. A luta é sempre a mesma, opondo opressores e oprimidos, exploradores e explorados, dominantes e dominados, etc.
Mais uma vez, fizeste um filme financiado por apoiantes. É um modelo que queres continuar a seguir para os teus projetos? Sentiste mais dificuldade em atingir o objetivo do que no "Mudar de Vida", ou pelo contrário?
Este filme foi autoproduzido no intuito de garantir maior liberdade de tom e forma e porque não tenho paciência para andar a passar por júris compostos de especialistas de concursos e seleções de instituições estatais que acabam sempre por te fazer perder tempo. Segundo, porque dos poucos produtores que contactei, nunca te respondem, ou fingem responder dizendo que te responderão em breve, ou então, mais rápido, dizem que o filme não interessa porque a cantora não é conhecida... "Não apaguem os nossos rastos!" é uma obra militante ao mesmo tempo que um documentário cinematográfico. O filme foi rodado pelos meus próprios meios e com a ajuda técnica e imprescindível de amigos. Para que o projeto chegasse a bom porto, decidi-me por uma autoprodução solidária e participativa, a única capaz de ultrapassar diversos obstáculos financeiros dos quais depende a pós-produção e o tratamento estético dum filme com carácter político militante.
As dificuldades foram semelhantes à experiência anterior, estava desempregado, depois houve a pandemia e os isolamentos em plena montagem que teve novamente que ser feita à distância... A batalha agora é a da difusão! O filme vai estrear em Portugal antes de França... não é algo que me preocupe, pois com os recentes resultados das eleições presidenciais francesas o filme fica atual por mais 5 anos! Há tempo... Tenho consciência que algumas temáticas faladas no filme são bastante específicas e ligadas ao movimento libertario francês (para não dizer parisiense) e que um público mais distante se possa sentir excluído. Mas acho que é um filme que para além do retrato de uma cantora dá a conhecer alguns momentos cruciais do movimentos social em França dos últimos 50 anos. Espero que gostem.