Nas últimas semanas, o Governo de Javier Milei tem sido alvo de críticas pelo atual estado da economia na Argentina. Todas as quartas-feiras, manifestantes saem às ruas para protestar, tendo Milei respondido com repressão e violência. Em Portugal, a assembleia Argentina Não Se Vende organiza uma ação para lembrar o 24 de março de 1976, data do golpe que instituiu a ditadura no país. A ação está marcada para as 15h de dia 30 de março, em frente a embaixada da Argentina em Lisboa, unto dao Jardim do Arco do Cego.
Marta Fanti, membro da assembleia, fala com o Esquerda.net sobre a importância de relembrar a ditadura na Argentina, num momento em que a repressão volta, pela mão de Milei, a ser uma ameaça à liberdade de expressão.
Por que é que convocam esta ação?
Marcámos para lembrar o 24 de Março, que é uma data muito significativa na Argentina, porque lembra a ditadura, que foi muito violenta. Tivemos pelo menos 30 mil pessoas desaparecidas, muitas mais pessoas foram torturadas. Foram sete anos com muita morte em pouco tempo. Foram perseguidas pessoas que estavam envolvidas com partidos políticos, mas também morreram imensas pessoas que não tinham absolutamente nada a ver. Isso aconteceu com a conivência da Igreja e com a conivência de setores privados que ainda continuam a agir na Argentina como se nada tivesse acontecido. E nós temos uma cultura de manifestação muito grande, mas este ano a manifestação foi particularmente participada e foi muito emotivo ver as pessoas a manifestarem-se na rua. Em Portugal, vamos fazer várias intervenções artísticas e um siluetazo, que é um tipo de intervenção que nasceu nos anos 80 e que consiste em criar figuras com cartão, com a forma de pessoa, para colocar os nomes nas pessoas que foram desaparecidas.
É comum assinalar o 24 de março fora da Argentina?
Sim. A nossa assembleia faz parte de uma rede internacional que tem sedes em Madrid, Barcelona, Berlim, Londres, Paris, Málaga, Toulouse, Itália, Bruxelas. E não só na Europa, mas também na América Latina, Rio de Janeiro e Cidade do México. Fazemos muitas atividades coordenadas, sempre em rede a tentar criar uma conexão com o território onde acontece. Também tentamos fazer uma conexão com Portugal. E essa rede internacional tem um ano e meio e realmente conseguiu fazer uma coordenação muito boa e ter uma experiência de visibilização muito interessante e muito necessária. Também para ir contra a ideia de que as pessoas que emigram não têm interesse no país.
Falaste em tentar criar uma ligação com Portugal, a vossa experiência é de que há uma comunidade que se mobiliza em volta deste tema da memória?
No ano passado era ainda uma coisa muito nova. Mesmo assim tivemos participação do Partido dos Trabalhadores, do Brasil, e da CGTP. É uma coisa em que nós queremos crescer, na conexão com outros coletivos. Porque é muito claro o que está a acontecer a nível mundial. Somos um laboratório, como foi o Brasil. Então, achamos que a conexão é mesmo para alertar. Nós estamos desesperadas. Não vou tirar a emotividade disso, porque é muito desesperante. A extrema-direita continua a crescer cá em Portugal, mesmo num país que tem uma grande tradição socialista. Esses discursos não podem ter lugar.
Milei faz parte de um avanço da extrema-direita internacional. Como é que sentes essa ligação a Trump, por exemplo?
Trump é uma coisa muito assustadora. O que está a acontecer na sua relação com o México é mesmo perigoso, porque faz pensar que eles vão avançar territorialmente. De certa maneira não me surpreende, mas é realmente bizarro. Na América Latina e em África há muitas empresas norte-americanas e europeias que lucram de forma muito aberta com os recursos naturais. Isso é feito porque os grupos políticos de cada país são ineficientes e praticamente criminosos. Estamos a dizer de forma simples: as empresas que gerem os recursos naturais são estrangeiras. Faz parte de uma estrangeirização, de uma dominação e de um ataque à soberania, que é territorial. Na América Latina, o facto de termos moedas menos fortes fazem com que muitas vezes haja conivência.
Há um extrativismo neocolonialista dirigido aos países da América Latina. No Panamá também há uma indignação social grande, por causa das declarações de Trump. A Argentina tem visto greves gerais e grandes manifestações. O que é que podemos aprender com esse movimento social?
Há vários casos de empresas de mineração que se instalaram e começaram a trabalhar com zero controlo do Estado. Poluiram de uma forma muito intensa e as pessoas que moravam nessas regiões sempre fizeram um trabalho de militância muito forte no terreno. A respeito do lítio, por exemplo, a Argentina tem a pior legislação. Vem uma empresa de fora para ficar com tudo e o Estado acaba com uma percentagem muito pequena. As empresas levam quase tudo, mas há outros países da América Latina que têm uma legislação um pouco mais avançada. O peronismo teve medidas que foram favoráveis ao povo, mas quanto ao extrativismo, não fez muita coisa. No futuro, é preciso colocar leis que sejam muito mais estritas. Nós temos de sair à rua com a militância e com as organizações para fazer essa pressão, porque se não colocarmos essa pressão, isso não irá acabar.
Que balanço fazes dessa pressão que foi posta ao Milei e da sua resposta repressiva?
Nós temos a tradição de manifestação. Mesmo quando há mais estabilidade económica, vamos para a rua. Por isso, o protocolo anti-piquetes que Milei adotou vai contra a liberdade de expressão. Na manifestação de 24 de março não aplicaram esse protocolo porque é uma manifestação que acontece todos os anos. Mas estão a haver manifestações todas as semanas, todas as quartas-feiras. São os reformados que se juntam para pedir aumento das reformas, porque as reformas não aumentam. Nós temos uma reforma de menos de 200 euros. É praticamente impossível uma pessoa viver com isso. Eles saíram à rua e a polícia carregou sobre eles de uma forma muito cobarde. Começaram a juntar-se organizações e há três semanas juntaram-se as torcidas de futebol. A semana passada houve imensas pessoas detidas sem razão. E houve um fotojornalista que foi agredido e está no hospital. A liberdade de expressão não está garantida se eu não posso ir a uma manifestação sem medo de ser detida. Na Argentina agora estão a ser usados elementos de repressão que não são aceites pelas Nações Unidas e são extremamente tóxicos. Isso tem um custo muito grande e vai contra a ideia de que eles querem reduzir o Estado. Estão a reduzir o Estado na educação, na saúde, mas no controlo policial não.
Esse ataque à liberdade de expressão consideras que faz parte de uma ofensiva reacionária internacional? Na Hungria, por exemplo, querem agora proibir as marchas do orgulho LGBTQI.
Espero que não estejamos nesse ponto. Mas o ataque à comunidade LGBTQI é muito forte. Milei associou a homossexualidade à pedofilia, atacou mulheres, persegue uma cantora argentina muito famosa e insulta-a de forma pública. Sem ser Trump, nunca vi um representante eleito a chamar subnormais e pedófilos ao próprio povo. Isso é inadmissível. Como eu disse, seria muito difícil que na Argentina fossem proibidas as manifestações, mas criar um protocolo de repressão tão violento é uma forma também de tentar cortar isso. E é muito claro que o Milei segue a onda Trump. Ataque ao wokismo, que não tem nada a ver com a nossa realidade e que acabam a colocar tudo numa caixinha. Esse é o discurso da extrema-direita que podemos também associar com o machismo red pill.
Milei é um ultraliberal muito assumido. A Argentina também já tinha alguns problemas económicos no peronismo e o Milei ganha as eleições para “resolver” isso. Como é que a sua política económica se traduziu no pouco tempo que está lá?
Sim, a situação já era muito complicada antes. O que Milei fez foi um corte em tudo que é público. Porque o público “é o demónio”. Com essa ideia em mente, congelou os salários públicos, que com uma inflação tão alta significa que o rendimento real baixa. Em dezembro de 2024 passou o Decreto de Necessidade de Urgência, que nunca aconteceu na Argentina. Trezentas medidas entraram em vigor, votadas por legisladores que foram comprados. Privatizaram-se empresas e a Aerolíneas Argentinas também está em risco de ser privatizada. Há uma extrema financeirização da economia, e o que importa é que os números estejam bem. Mas com essa desculpa não se sobem salários, também se derrogou a lei de arrendamentos, que era uma lei relativamente nova que ajudava a controlar os preços das rendas. Há muitas pessoas que estão a viver na rua ou voltam a viver com os pais. A inflação está relativamente controlada, mas ao mesmo tempo os serviços subiram de uma forma incrível, o transporte subiu extremamente.
Vês com preocupação o facto de Milei ser para a direita liberal um modelo a seguir? Aqui em Portugal, a Iniciativa Liberal já aderiu a essa doutrina, e a nível mundial há quem o veja como a linha da frente do ultraliberalismo.
Custa-me acreditar que uma pessoa medianamente inteligente veja no Milei uma pessoa inteligente ou uma pessoa minimamente preparada para exercer esse cargo. É muito claro que ele tem outras pessoas por trás, como Victoria Villarruel, a vice-presidente negacionista da ditadura. E tem uma equipa económica que já esteve noutros governos neoliberais. Mas custa-me acreditar que de forma genuína as pessoas vejam nele um líder, só que é um exemplo a seguir. E se isso está no governo na Argentina, dá a ideia de que pode funcionar em muitos lugares. E é isso que me preocupa. Porque nós vamos sair desta situação, o Milei vai embora, vai vir outro governo melhor. Mas também pode voltar no futuro. Eu acho que realmente não vai ser novamente eleito. É preciso fazer um bom trabalho de apontar como é que ficou a Argentina depois do Milei e como foi um fracasso.