Mulheres de Abril: Testemunho de Maria Emília Brederode Santos

09 de maio 2019 - 18:00

O movimento associativo foi uma escola extraordinária. Foi um período de grande consciencialização política. E também de aprendizagem de competências democráticas. Por Maria Emília Brederode Santos.

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Maria Emília Brederode Santos, 1963 ou 1964.
Maria Emília Brederode Santos, 1963 ou 1964.

Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.


Sou completamente lisboeta, alfacinha. Eu digo que a minha terra é Campo de Ourique, onde nasci. Naquela altura, Campo de Ourique era o único bairro com jornal próprio, o Carreira Nove (o número da carreira de autocarro que o servia), e as pessoas conheciam-se todas. Era um bairro algo sui generis. A minha mãe dizia que não gostava de lá viver porque não havia lá nada. Hoje, há lá tudo, como se sabe… Sinto-me privilegiada, tanto no meio social como no meio afetivo em que nasci. Cresci numa família oposicionista democrática. O lado da minha mãe é muito aristocrático, o que não impediu o meu avô materno de lutar pela República e vir a ser duas ou três vezes ministro da República. Ouvi mais tarde falar dele como um “socialista à maneira tolstoiana”. Foi fundador da primeira companhia de seguros portuguesa. Penso que, à época, os seguros apareciam como uma forma de proteção social dos mais vulneráveis. Sei também que ele tinha uma forma de gestão dessa companhia de seguros interessante, dividia os lucros com os trabalhadores. Era um humanista a sério. Afastou-se da família pelas suas opções políticas mas, por outro lado, quando o seu primo Paiva Couceiro foi preso, depois de ter feito as tentativas de revolta monárquica do Norte, foi buscá-lo à cadeia para o proteger, porque constava que o iam assassinar à saída. Defendia com firmeza as suas convicções, mas não alinhava com violência de qualquer lado.

O meu pai também era uma pessoa muito engraçada. Era de uma família republicana da Madeira. Nasceu em África porque o meu avô estava lá colocado, era médico militar. Fez muito cedo a sua opção política. Sei que teve de fugir de Coimbra logo no primeiro ano após um período das greves, e que era conhecido como o “caloiro dos discursos”. Segundo as normas, os caloiros não podiam discursar, mas como ele era muito eloquente, acabavam por o chamar para falar nos comícios. O primeiro grande caso que teve depois de se ter formado em Direito foi defender um dos autores do atentado contra Salazar. A minha mãe falou-me sobre toda a pressão de que ele foi alvo para não aceitar o caso. Argumentavam, nomeadamente, que era estranho um pacifista defender aqueles arguidos, mas o meu pai respondia que todas as pessoas tinham direito a defesa. Esse caso veio a marcar-lhe a vida e a carreira.

Sinto que pertenci a uma minoria, claramente

Portanto, a minha família tinha opções políticas claras e eu vivi sempre nesse ambiente. A minha mãe talvez fosse menos convicta, mas não contrariava e era uma mulher culta, aberta, moderna, das primeiras mulheres em Portugal a conduzir carro. Teria hoje 106 anos. Frequentou o ensino superior mas acabou por desistir por ocasião da morte de um irmão. Os meus pais não eram religiosos e não me batizaram. Era uma privilegiada, ainda que não tivéssemos propriamente muito dinheiro. Sinto que pertenci a uma minoria, claramente. E muitas das opções, a nível da educação, nomeadamente, eram marcadas pela orientação política da minha família. Quando tinha três anos, inscreveram-me no Colégio Inglês. Já sabia ler quando entrei para lá. Eles achavam que eu era um grande génio porque a lenda era que eu tinha aprendido sem ninguém me ensinar, mas creio que isso se deveu ao facto de a minha avó paterna ter sido professora do ensino primário. Penso que ela foi sufragista, na medida em que foi escolhida pela Carolina Beatriz Ângelo para ser madrinha da filha. De qualquer forma, era uma pessoa que acreditava imenso na educação, e achava inadmissível que existissem pessoas que não soubessem ler nem escrever. Qualquer pessoa que entrasse lá em casa sem saber não saía de lá sem aprender. Imagino que ela, sem forçar nada, me tenha ensinado a ler ou, pelo menos, tenha respondido às minhas perguntas. Lembro-me de ir no autocarro com ela e de tentar ler os cartazes. O "h" fazia-me imensa confusão, por ser uma letra que não traduz um fonema. Os meus pais decidiram colocar-me no Colégio Inglês por causa do próprio inglês, que era já então uma língua importante, e para não ter de frequentar aulas de religião e moral católicas. Na realidade, a diretora do colégio era católica e uma grande apoiante de Salazar. Mas, de facto, tinha uma aula paralela à de religião e moral católicas para onde iam todos os alunos que tinham outra religião ou que não tinham nenhuma, como era o meu caso. Falávamos sobre o antigo testamento. Era um colégio misto. Na verdade, vivi sempre num mundo muito masculino. Tinha dois irmãos, o Fernando, o mais velho, e depois o Nuno, que, para nós, era o Manel, porque ele era Nuno Manuel e o meu pai também se chamava Nuno. E todos os amigos dos meus pais, com quem eles se davam muito, tinham filhos rapazes. Da minha geração, era quase a única rapariga. Nunca senti o problema de não ter contacto com rapazes durante a infância.

Maria Emília Brederode Santos com os seus irmãos Fernando, à direita, e Nuno, à esquerda. Data estimada: 1946.

Vivia num mundo muito fechado

No quinto ano atual, fui para o Liceu Francês Charles Lepierre, nas Amoreiras, acabado de abrir. A opção pelo Liceu Francês também tinha a ver com as línguas, a abertura ao mundo, mas também porque a parte portuguesa do liceu era dirigida pelo Dr. Ercílio Cardoso, um homem da oposição, muito ligado aos ingleses – naquela altura ainda se sentiam as sequelas da Guerra. Ele acolhia muitos professores extraordinários que estavam proibidos de ensinar no ensino oficial. Dava lá aulas de matemática o pintor José Júlio, a professora de música Luisa Madeira Rodrigues, a Alice Gomes, o Rui Grácio e a Maria Ângela Miguéns, que eram professores e pessoas excecionais. No que respeita à parte francesa, a minha ideia é de que até era bastante reacionária. A consciencialização social costuma vir antes da consciencialização política, mas creio que comigo foi quase ao contrário: a consciencialização política talvez tenha surgido antes. Eu vivia num mundo muito fechado.

Lembro-me apenas de um episódio que me chocou imenso. Vivíamos num prédio que tinha um pátio onde as crianças de todo o prédio se encontravam, inclusive as filhas da porteira. A quarta classe foi um corte, porque elas foram para o comercial e para o industrial, enquanto que todos os outros foram para o liceu. A consciencialização política à época ainda era um bocadinho infantil, como é óbvio. Quando estávamos no sétimo ano, estudávamos Esparta e Atenas, a civilização grega com a Maria Ângela Migueis, que era a mulher do Rui Grácio, e, nos recreios, fazíamos batalhas campais entre Esparta e Atenas. Eu optava sempre por ser de Atenas, enquanto quase todas as minhas amigas queriam ser de Esparta. Sempre me senti pertencente a uma corrente minoritária: não era batizada e era contra Salazar. Naquela altura, parecia-me que todas as famílias das minhas amigas eram ou indiferentes ou pró-regime. Lembro-me que a minha mãe ia sempre a um sapateiro num sítio muito esconso porque ele era da Oposição. Ela chegava lá e ele perguntava-lhe sempre pelo Norton, que era o Norton de Matos. Havia assim umas cumplicidades subterrâneas. 

Há momentos que são fogachos

Quando se deu a invasão da Hungria, em 1956, lembro-me de eu e o meu pai estarmos a ouvir na rádio o relato dos acontecimentos e de desatar a chorar. Primeiro, porque aquilo era feito de uma maneira muito demagógica, com meninos a chorarem. Por outro lado, pela própria situação. O meu pai, que era da Oposição, mas de uma oposição moderada, social-democrata, digamos, tinha vibrado com as possibilidades abertas por Imre Nagy. Em relação aos da minha geração, eu também era da Oposição, mas de uma linha muito minoritária. Nunca fui do Partido Comunista, nunca fui de extrema-esquerda, muito menos dos pró-chineses, fui sempre bastante pacífica, não gosto de gente agressiva, não gosto de grandes ruturas, não sou muito radical... Gosto de questionar tudo. De interrogar tudo, de estar aberta a diferentes perspetivas e de pôr tudo em causa. Mas não sou muito militante de causas, até porque sou pouco perseverante – a não ser na educação, na democracia e no socialismo…

Em 1958, em plena campanha do Humberto Delgado, fui passar um fim-de-semana a casa de uma amiga do liceu, que tinha uma quinta com cavalos. No regresso, de comboio, assisti, na estação, a uma manifestação pró-Delgado. Sabia que o meu pai estava envolvido no apoio à sua candidatura. Falávamos sobre isso, ainda que sem dizer demais. Havia sempre esse cuidado. E várias pessoas frequentavam a nossa casa: Azevedo Gomes, António Sérgio, Nikias Skapinakis, depois o Cunha Leal. O meu pai tinha estado com o Arlindo Vicente, depois deu-se a decisão de apoiar o Delgado... Aquilo, para mim, foi uma grande aflição. Vi um homem em sangue a ser levado em ombros. Foi um momento de grande comoção. Acredito que aprendemos de diferentes maneiras, de forma cumulativa, sem dar por isso, mas depois há assim uns momentos que são uns fogachos. E aquele episódio foi um deles. Percebi logo de que lado estava.

Depois das eleições, fiz um protesto no liceu que passava por fazer greve aos transportes e pôr um adereço a assinalar que estava de luto. Não me lembro se foi uma iniciativa de âmbito apenas local ou inserida num movimento mais amplo. Foram poucos os estudantes do Liceu Francês a aderir à ação. Na altura, senti que era uma obrigação. Era preciso fazer qualquer coisa e o meu contributo foi esse protesto.

A entrada para o secundário e a viagem para os EUA

Entretanto, entrei para o secundário, e pensei em seguir Direito. O meu pai não queria, porque dizia que não se tratava de um curso para senhoras. Os meus pais sempre tinham sido muito abertos, mas, a partir daquela altura da adolescência, passaram a tratar-me de uma maneira um bocadinho diferente, a serem mais protetores. Na realidade, enquanto passei de um colégio privado para outro colégio privado, os meus dois irmãos saíram de um colégio privado para ir para a escola pública, pelo que talvez eles já fizessem alguma distinção anteriormente. Mas só comecei a sentir a diferença na adolescência, quando ir ao café passou a ser uma ousadia terrível, e quando os meus pais queriam que estivesse sempre acompanhada por um dos meus irmãos. Comecei a sentir-me muito presa. De qualquer forma, entrei no décimo ano na alínea de Direito, e tive como professor o Rui Grácio que era, de facto, excecional. Ele dava História, Organização Política e Filosofia.

Nesse ano, concorri a uma bolsa da American Field Service (AFS) e fui para os Estados Unidos da América. Fiquei lá um ano, em casa de uma família que tinha sido escolhida de acordo com as minhas características. Frequentei um liceu no sul da Califórnia. Esse foi, sem dúvida, um momento marcante. Primeiro, por causa da questão da religião. Como eu era de um país católico, colocaram-me numa família católica, que tinha sido recusada por ser demasiado restritiva. Posteriormente, acharam que, para uma estudante portuguesa, a família era boa, e repescaram-na. Na Califórnia, os católicos eram uma minoria, o que fazia com que levassem as coisas mais a sério. Ao domingo não se trabalhava, não se estudava, tínhamos de nos dedicar a atividades de divertimento, o que passava, geralmente, por fazer desporto, que eu detestava. Senti-me uma fraude, já que eles julgavam que eu era muito religiosa. Foi um pesadelo passar semanas a pensar como iria confessar-lhes que era uma fraude. Um dia lá conversei com a senhora. Respondeu-me que isso não tinha importância nenhuma, e que ela também não era católica. A senhora era nazarena, pertencia àquilo a que hoje chamaríamos uma seita, mas que eu apreciei imenso. Eram um grupo de cristãos que queriam voltar ao cristianismo primitivo. Ela era muito asceta, vivia uma vida muito coerente, coisa a que os católicos portugueses me parecia estarem pouco habituados. Explicou-me que tinha casado com o marido, que era católico, e que, a bem dos filhos, tinha decidido adotar o catolicismo, mas que tinha sido uma negociação. O marido comprometeu-se a banir certos comportamentos que ela não poderia aceitar. Ele não podia beber, nem sequer cerveja, não podia jogar nem a feijões... Havia toda uma série de regras e comportamentos que não tinham nada a ver com os católicos. Descobri que, afinal, a religião era uma coisa mais relativa do que eu tinha pensado. Até ali, tinha sido sempre um peso o facto de ser a única que não era batizada. Muitas vezes, no princípio do ano escolar, perguntavam quem não era batizado, e, quase sempre, só eu levantava o dedo. Isso acabava por acarretar um certo peso. Na Califórnia, o padre a quem fui dizer que não podia comungar respondeu-me logo que me ia batizar, quer os meus pais quisessem, quer não. Nunca mais lá pus os pés. Enquanto a senhora da casa onde eu estava tinha sido muito aberta e acolhedora, o padre foi completamente intrusivo e autoritário – vacinou-me!

Quando lá cheguei, senti também um choque cultural. Um dos presentes que eu levava para a família era uma capa de cabedal para guardar livros, mas não existia nenhum livro lá em casa. Pensei logo que não iria conseguir viver ali. Mas adaptei-me perfeitamente. Eram, de facto, principalmente o senhor, pessoas com muito pouca escolaridade. Ele era muito conservador. Hoje, com toda a certeza, teria votado Trump. No entanto, entendi-me muito bem com eles e eles comigo. Ele gostava imenso que eu levasse os livros escolares para casa. Adorava lê-los e discutir comigo política, religião... Apesar de ser um choque cultural muito grande estar num meio cultural tão diferente, tão pouco literato, ao mesmo tempo foi uma experiência muito positiva, porque me apercebi de que existiam outras realidades também dignas.

A terceira razão para este período da minha vida me marcar teve a ver com uma questão de classe social. Por estranho que possa parecer, para nós que temos outra imagem dos Estados Unidos, naquela altura o país era muito mais igualitário socialmente ou, pelo menos, existia muito mais trânsito entre as classes sociais do que aqui em Portugal. Quando havia um piquenique ia a senhora das limpezas com a sobrinha, que era bibliotecária, o senhor que era físico nuclear e que namorava com a refugiada húngara... Sobretudo ali na Califórnia, existia uma população mais recente, muito mais diversa e menos catalogada socialmente do que cá. Lembro-me de, em Portugal, existirem os elevadores para os inquilinos e os elevadores para o pessoal, casas de banho separadas... Esse género de coisas era impensável nos Estados Unidos. Não existiam profissões menos consideradas. Suponho que hoje em dia tudo esteja diferente. Mas, naquela altura, foi o que eu senti e o que conheci. A certa altura, apercebi-me de que, na minha zona, e no meu liceu, não existiam negros. Portanto, suponho que existisse uma discriminação aí, pelo menos de caráter urbanístico. Os únicos afro-americanos que existiam no liceu eram muito apreciados, até porque eram músicos e filhos de um casal de músicos do Haiti.

Estudantes estrangeiros com alguns professores em escolas do sul da Califórnia, no ano 1958/59. Maria Emília Brederode Santos está de cócoras, em frente na ponta direita. Ao meio, a sua amiga alemã, Silke, que foi tomada por espia russa quando a visitou em Lisboa, em 1962.

No que respeita à Educação, o liceu que frequentei não era particularmente conhecido, sendo que fiquei com a perceção de que o tipo de ensino era comum ao resto das escolas públicas. Toda a gente ia até ao décimo segundo ano. Ou havia essa expectativa. As exceções eram, por exemplo, as meninas que engravidavam. A escolarização era muito maior para toda a gente do que em Portugal, onde eram só quatro anos. Por outro lado, o ensino era inclusivo. Existiam alunos com síndroma de Down, por exemplo, que eram integrados, pelo menos, em certas disciplinas. Também não existia a cultura dos chumbos, não havia essa ameaça. Uma coisa que era pior do que cá, certamente, era a História. Eu tinha tido professores de História fantásticos em Portugal. Já nos Estados Unidos, o ensino da História era muito mais infantil, apesar de a disciplina ser dada por um professor da Universidade de Stanford. Por outro lado, a Literatura era dada de uma forma maravilhosa, porque liam-se livros de Literatura moderna e discutiam-se entre nós nas aulas. De repente, descobri que a Literatura podia ser uma coisa interessantíssima para a vida. Tínhamos também imensas opções. Recordo-me de ter escolhido  creative writing (escrita criativa). A propósito da manifestação da campanha do Humberto Delgado a que assisti, fiz um relato do senhor levado em ombros todo em sangue que impressionou muito a professora. Tínhamos que escrever em vários géneros e ganhei um prémio com a poesia! Havia também ”Speech”, para aprendermos a falar em público. As escolhas também podiam ser mais práticas, como datilografia ou aprender a conduzir automóveis. Também existia economia doméstica, que cheguei a experimentar, mas desisti logo. No que respeita a atividades extracurriculares, havia o jornal da escola, os clubes de línguas, o grupo de teatro, o coro... No grupo de teatro fiz cenografia, dava apoio no grupo de francês, colaborava pontualmente com o jornal. Tínhamos também as majoretes. Não fui majorete mas fui cavalo, que era a mascote! Gostei imenso de toda esta experiência do ponto de vista educativo. Como a escola podia ser algo tão interessante e tão valorizador das várias facetas de cada um.

Cartão de estudante de Maria Emília Brederode Santos do seu liceu americano.

Nos EUA conheci o Kennedy

Nós éramos bolseiros e o American Field Service (AFS) era financiado por entidades privadas. A organização nasceu durante a I Guerra, para apoio às ambulâncias. Depois da II Guerra, uma das pessoas da organização defendeu que, em vez de continuarem a ajudar a resolver os problemas, podiam começar também a tentar preveni-los. Foi aí que surgiu a ideia dos intercâmbios estudantis. Inúmeras organizações, como os Lyons, os Rotários… convidavam os estudantes estrangeiros para fazerem intervenções sobre os seus países. Enquanto os outros tinham imensos diapositivos para mostrar, eu não tinha nada. Escrevi uma vez para a embaixada e mandaram-me os discursos de Salazar… Numa dessas iniciativas, um senhor na assistência perguntou o que é que não tínhamos feito durante a nossa estadia que gostássemos de ter feito. Respondi que gostava de ter ido a São Francisco e que gostava de ter conhecido pessoas do Partido Democrata ou, pelo menos, pessoas que não fossem do Partido Republicano. A minha família americana era toda do Partido Republicano, as pessoas que conhecia eram todas republicanas… Acresce que, no liceu, tinha uma cadeira chamada Seniors’ Problems, que visava preparar-nos para a vida política, económica, etc. O professor era um encanto de pessoa, um homem sedutor, de um reacionarismo que não se imagina que possa existir. Dizia coisas como: “Há estudos que provam que o cérebro das raças não brancas é mais pequeno”. E explicava-nos que estava contra o partido democrata porque era o primeiro degrau para o Socialismo e o Socialismo era o primeiro passo para o Comunismo. E, para ele, este era o inferno.

Nesta sessão nos Estados Unidos, expliquei que gostaria de conhecer pessoas com outras orientações políticas. Na audiência estava o chefe dos democratas da zona. Como o Kennedy, que apesar de ainda não o ser formalmente, já se preparava para ser candidato à presidência da República, ia passar por ali, ele convidou-me a assistir a um dos comícios, caso os meus pais americanos dessem autorização. Lá fui. Falei diretamente com o Kennedy, que me perguntou: “Como está o meu amigo Salazar?”. Ao que respondi: “Está muito mal, não devia ser amigo dele!”. Ele disse “o meu amigo” de forma um pouco irónica. De facto, como pude verificar pelo resto da conversa, ele tinha imensa informação sobre o que se passava em Portugal. 

Cartão de visitante do Senado americano com a assinatura de Lyndon Johnson. O cartão é de 1959, quando Lyndon Johnson ainda estava longe de vir a ser vice-presidente, e depois presidente, dos EUA.

Em Direito, descíamos umas escadinhas e entrávamos nos subterrâneos da liberdade

Quando voltei, fiz exame de inglês e de organização política em setembro. O ano do final do secundário no Liceu Francês foi interessante. Já tinha perdido os meus amigos todos. Uns tinham ido para Ciências, os outros tinham ido para outros sítios, os que escolheram Letras já tinham passado à frente. Tive de fazer amigos novos. Ao pé do Liceu existia uma leitaria onde alguns nos encontrávamos para discutir ideias, sobretudo depois das aulas de Filosofia que eram entusiasmantes.

Continuei ligada também a pessoas que conheci na viagem aos Estados Unidos. Havia uma amiga alemã que me veio visitar várias vezes. Esteve cá, por exemplo, na crise de 1962. Trouxe outra amiga com ela. Constou em Lisboa que existiam duas espias russas. Elas eram muito altas e muito louras, não passavam despercebidas. No verão organizavam-se reuniões na Europa. Fui com o meu irmão Nuno a uma delas, na Suécia, porque os meus pais, que me tinham deixado ir sozinha para os Estados Unidos, achavam que não devia ir sozinha ao encontro… Passámos pela Alemanha, por Paris, onde nos enfiámos na Cinemateca a ver o “Chien Andaloux” do Bunuel. O meu irmão dizia que eu tinha vomitado na cena da lâmina a cortar o olho. Não me lembro de nada disso. Acho que ele é que se sentiu mal. Fomos à livraria Maspero procurar os livros que não podiam entrar em Portugal.

Entrei para a Faculdade de Direito. Detestei e adorei. A Faculdade era um horror. Era um mundo completamente rígido, estratificado. No 1º ano existiam duzentos e tal rapazes e catorze raparigas, que se sentavam todas à frente nas aulas. Os professores ou tinham sido ministros de Salazar ou queriam sê-lo. Nem olhavam para nós.

Por outro lado, descíamos umas escadinhas e entrávamos nos “subterrâneos da liberdade”, como gosto de lhes chamar, que era a associação académica. Nesse ano letivo, de 60/61, uma lista unitária da Oposição, chefiada pelo Jorge Sampaio, e à qual pertenciam também o Vítor Wengorovius, o Jorge Santos, o Jorge Sá Borges, o Zé Abreu e o Zé Felismino, ganhou as eleições. Dizem que 62 foi um grande acontecimento, mas 62 só existiu porque antes houve a grande vitória dessa lista e a associação foi tomada pela Oposição. A lista da direção era da Oposição, claramente, mas de uma esquerda moderada. E compunha com o Conselho Fiscal e a Assembleia Geral, mais ao centro. A lista da Assembleia Geral era constituída essencialmente por católicos dialogantes, entre os quais o Zé Vera Jardim a presidir, a Teresa Rapazote  e o Sérgio Vieira (que viria a ser Ministro do Machel!) No Conselho Fiscal creio que estava o Miguel Galvão Teles e talvez o Joaquim Pires de Lima e o Rui Machete.

Passei a frequentar assiduamente a associação. Adorei os debates. Entrava-se naquela cave e tudo se debatia. Claro que algumas pessoas iam lá para jogar matraquilhos e ping-pong, mas era o debate de ideias que caracterizava a associação. Até alguns elementos de extrema-direita, um dos quais descobri, depois do 25 de Abril, que era informador da PIDE, iam para lá discutir connosco. Era um espaço de liberdade, ainda que com todas as precauções que se possa calcular: não se diziam nomes ou localizações concretas. Mas a discussão de ideias era muito aberta.

Cartão do Imagem. Data estimada: 1959 ou 1960.

Sentia-me muito próxima da direção da associação, esquerda não engajada. Em miúda costumava dizer que era monárquica socialista, na adolescência, passei a identificar-me como republicana socialista. De uma maneira geral, mantive um pouco essa linha. As pessoas têm fases um pouco mais radicais, claro. O Mário Soares costumava brincar comigo porque dizia que, quando me conheceu, o tinha interpelado agressivamente. Não me lembro. [Risos] Só me lembro de ser moderada. A oposição entre Liberdade e Igualdade não fazia, para mim, sentido nenhum. Era óbvio que queria as duas coisas. Queria uma sociedade mais igualitária e queria uma sociedade mais libertária. Mais livre, pelo menos. E a direção da Associação Académica de Direito nessa altura, com o Jorge Sampaio, o Jorge Santos, e outros elementos da AE como o F. Ferreira Gomes, representava um pouco essa linha. Havia uns mais à esquerda, outros menos, mas cultivavam essa abertura e essa aspiração de mudança social e política.

Integrei o grupo cénico de Direito, que não era tão bom como em Coimbra, com o CITAC [Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra] e o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra [TEUC], mas que, em todo o caso, estava a impor-se. Foi uma experiência muito engraçada. Assisti ao que era conseguir levar uma peça ao palco. O Fernando Midões, que morreu há pouco tempo, começou por escolher uma peça do Bernardo Santareno, “O Bailarino”. A escolha foi logo chumbada, tratando-se de um homossexual. Outras escolhas se seguiram até que o Midões optou pela peça “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman. Lembro-me perfeitamente da resposta da comissão de censura: cortou-a toda, sem apelo nem agravo, porque continha “linguagem desbragada e uma visão derrotista da vida”. Acabámos por fazer “A Terra Que o Coração Deseja”, de William Buttler Yeats. Foi sobretudo no teatro que trabalhei mais quando estive em Direito e no movimento associativo.

Antes ainda fiz parte de umas comissões de unidade antifascista. Creio que se chamavam Juntas Patrióticas, mas não tenho a certeza. Lembro-me muito bem de duas ou três pessoas: o António Viana Martins, por exemplo, que foi a pessoa que me contactou e que suspeito que seria do Partido Comunista (PC). Cheguei a ser convidada duas ou três vezes para aderir ao PC, mas nunca me senti suficientemente convicta. Às vezes, as coisas também são muito pessoais. A pessoa que mais vezes me convidou não era alguém que apreciasse muito. Também sentia que o meu pai era demasiado criticado por ser moderado, e isso deixava-me desconfortável e incomodava-me. E não queria estar desse lado. Podia não estar totalmente nem sempre de acordo com ele, no entanto, também não queria estar do lado que o criticava. Sempre me senti meia de fora, meia de dentro em todos os grupos e acções. Isso dava-me uma grande liberdade intelectual mas perdia aquela experiência de fusão no colectivo que alguns tanto apreciam.

A diferença entre Direito e Letras era enorme

Não detestava Direito, até achava fascinante o tipo de raciocínio, e tinha essa tentação, daquele discurso muito formalista, mas tive medo disso. Comecei a pensar onde é que ia parar uma pessoa que enveredasse por ali. E, em termos de profissão, as coisas também não eram fáceis: se quisesse ir para o corpo diplomático, ou ser juíza, não podia, porque eram profissões barradas às mulheres. Sobravam as profissões chatas de conservadora, notária etc, que eu nem imaginava que pudesse ser. Ou advogada. Mas como era um bocado tímida, apesar da experiência dos discursos nos Estados Unidos, também não me imaginava advogada. E, basicamente, achava que aquele raciocínio era demasiado sedutor mas sem conteúdo. Aí, comecei a pensar em ir para Letras, mas não mudei de curso até fazer os exames, para provar ao meu pai que podia fazer Direito se quisesse. Fiz os exames, passei, e transitei para Letras sem problemas.

A diferença entre Direito e Letras era enorme. Primeiro, o ambiente em Letras era muito mais simpático, mais informal. Vários professores assistentes iam conversar para o bar, como o David Mourão-Ferreira. A relação entre professor-aluno era muito mais próxima do que em Direito. Os professores andavam de autocarro, lembro-me de encontrar várias vezes o Lindley Cintra. Também existiam coisas estranhas como o Gineceu, que era uma sala de estar para meninas, o que era ridículo. A haver uma sala, que fosse para meninos, já que eles é que eram poucos.

A geração acima da minha tinha gente muito interessante culturalmente: as Luizas Neto Jorge e Ducla Soares, a Fiama Hasse Pais Brandão, o Gastão Cruz, o Joaquim Bairrão Ruivo, com quem colaborei bastante mais tarde, o Costa Félix, o João Paulo Casais Monteiro, o Mário Cardia, o Passos Valente… Era um grupo culturalmente interessante. Depois até se perdeu um pouco essa dimensão, porque tudo se tornou tão politizado que acabou, talvez, por empobrecer o lado cultural. Quando cheguei à Faculdade de Letras, também me inscrevi logo no grupo de teatro. Havia um francês que ia lá ensaiar-nos.

Foi em Letras, no grupo de teatro, que conheci o José Medeiros Ferreira que, quando entrava, falava deliberada e orgulhosamente com um sotaque micaelense muito carregado. [Risos] A pró-Associação não tinha instalações e não tinha formalidade jurídica. Mas existia e tinha atividades, sobretudo culturais. Na direção da pró-Associação estava um estudante de Filosofia, o Trindade Santos, o José e várias raparigas: Teresa Amado, filha do Fernando Amado, do teatro, a Maria Benedita Monteiro, neta da Maria Lamas, a Leonor Gonçalves, filha do Cansado Gonçalves, a Iolanda Artiaga, a Isabel Franco… Tudo de famílias conhecidas da Oposição. Era um mundo tão pequenino! Nesse ano, ainda estive muito mais ligada ao movimento associativo em Direito.

A crise académica de 62

Já em março de 62, o ministro Lopes de Almeida proibiu a comemoração do Dia do Estudante e a 24 de março a polícia de choque ocupou a cidade universitária. Um grupo de estudantes falou com Marcelo Caetano, reitor da Universidade Clássica, que ficou bastante “incomodado” com a situação e tentou interceder junto do ministro do Interior, Santos Júnior.

A polícia não desmobilizou e foi convocado um plenário de estudantes de Lisboa para o Estádio Universitário. O reitor Marcelo Caetano terá sugerido que o melhor era os estudantes irem jantar ao restaurante Castanheira de Moura. Antes de aí chegarmos, quando descíamos pelo Campo Grande, enfrentámos uma enorme carga policial.

A crise de 1962 foi também um berço de grande criatividade. Por exemplo, em 60/61, lembro-me de ter ido a Coimbra, e creio que ao Porto também, e o que se cantava eram canções russas, ou da resistência espanhola, ou o Bella Ciao… Em 62, agarraram em canções tradicionais portuguesas e mudaram-lhes as letras. Depois apareceram o Zeca Afonso, o Adriano Correia de Oliveira, e aí houve todo um desenvolvimento da música de intervenção.

A vida tornou-se toda política. Era difícil ter uma atividade sem implicação política.

O movimento precisava de ser alimentado com os plenários e comícios nas faculdades e inter-faculdades. Para esse efeito, foi muito importante existir a Cidade Universitária, que era uma coisa nova e reunia num espaço próximo Direito, Letras, Medicina, o Estádio e a Cantina. A mobilização era também alimentada com os comunicados, redigidos depois dos comícios, que davam conta das decisões que tinham sido tomadas. Alguns deles extremamente bem escritos e interessantes. O Manuel Lucena foi, talvez, o mais reconhecido redator de comunicados. Mas o Vasco Pulido Valente, a partir de certa altura, também colaborou. Bem como o meu irmão Nuno, que fez uma entrada fulgurante na faculdade. Através de mim, ele conhecia bem os dirigentes de Direito. Havia uma espécie de circuito em Campo de Ourique. Morávamos ao pé do Jardim da Parada e, na mesma rua, morava a avó do Jorge Sampaio, com quem ele ficava várias vezes porque os pais moravam em Sintra. Na outra ponta, o Vítor Wengorovius tinha um quarto alugado. Propiciavam-se, portanto, encontros fáceis na pastelaria Ertilas, na Rua Ferreira Borges. E a minha Mãe adorava ter a casa cheia de gente. Havia sempre comida e dormida para quem precisasse.

O movimento associativo foi uma escola extraordinária. Foi um período de grande consciencialização política. E também de aprendizagem de competências democráticas. Desde competências mais formais, como gerir uma assembleia ou organizar um processo eleitoral, a ouvir os outros, fundamentar posições, persuadir, tentar fazer compromissos e chegar a consensos. Era no movimento associativo que isso se aprendia. Certamente que não era nas aulas. Também existiam as secções: a secção cultural, o teatro, a propaganda, a pedagógica… É engraçado ver como muitas pessoas que trabalharam nessas secções depois tiveram vidas profissionais mais ligadas a isso do que propriamente ao curso que fizeram, àquilo que estudaram.

Hoje pergunto-me como é que estudantes tão jovens, como o Jorge Sampaio, o José Medeiros Ferreira, o Eurico Figueiredo... tinham tanta capacidade estratégica para conseguirem manter o movimento de 62 durante tanto tempo. E com opções muito duras, muito difíceis, às vezes. Lembro-me, por exemplo, do 1º de Maio. O PC queria que se mantivesse a greve, de maneira a mobilizar para as manifestações do 1º de Maio. Mas a mobilização estudantil repousava numa ficção retórica, que era a de que aquele movimento era apolítico e arreligioso. E tínhamos tido a sorte de o reitor se ter sentido ultrapassado e ter apoiado os estudantes, o que contribuiu para alimentar um movimento de massas. Nesse contexto, havia outra linha que achava que, para manter aquela ficção, e para manter a mobilização estudantil, se devia interromper a greve. Foi complicado, porque os elementos mais radicais à esquerda fizeram discursos terríveis. Para os dirigentes, aquilo era muito duro. Eles gostariam de continuar a greve, mas sabiam que era mais inteligente politicamente suspendê-la. Fico pasmada como é que tinham essa capacidade de perceberem até onde é que deviam ir. Outro momento marcante foi quando foi necessário decidir se deixavam ir os alunos a exames ou não. Os mais radicais eram contra. Acompanhei essas decisões com uma grande empatia e uma grande compreensão pelos dirigentes. Achava que tinham um papel muito mais difícil do que o papel de quem estava de fora e queria radicalizar muito o movimento.

A certa altura, começaram a vir muitos jornalistas internacionais para fazer a cobertura da crise académica de 62. Portugal apareceu nas primeiras páginas de toda a parte. Como falava bem inglês, pediram-me para fazer a ponte com os jornalistas de televisão, rádio e imprensa escrita. Ia acompanhada pelo Nuno Bragança ou pelo Alberto Arez, um estudante de Medicina que vinha de África e sabia bem inglês. O Jorge Sampaio tinha tido a sabedoria de constituir uma comissão consultiva com os dirigentes mais velhos que tinham lutado contra o 40.900 e outros, muitos católicos de esquerda como o Carlos Portas, o João Cravinho, o Nuno Bragança ou o João Bénard da Costa.

Fiquei amiga de alguns desses jornalistas que, quando vinham cá, me traziam imensos livros de literatura inglesa e de política. Livros como “Os dez dias que abalaram o mundo”, do Jonh Reed, por exemplo. Depois de dar declarações, combinávamos com eles que nos davam um sinal para saber se tinham passado ou não a reportagem. Mas alguns não tinham cuidado nenhum. Passaram a mandar aquilo por papel, ou diziam a alguém que julgavam que era de confiança. Comecei a ter uns contactos um bocado mais esquisitos e, a certa altura, vieram-me dizer que a casa do Alberto Arez estava cercada e que era melhor eu desaparecer por uns tempos. Estive cerca de um mês em Inglaterra, em casa de uma rapariga cujo pai era produtor de cinema e que me convidava para o five o’clock tea oferecendo-me vinho Mateus Rosé. [Risos]

Durante a crise académica, aprendi a ser muito cuidadosa e não queria saber mais do que o necessário. O meu pavor era ser presa e falar e dizer coisas que pudessem comprometer os dirigentes do movimento.

O Luís Filipe Lindley Cintra, professor em Letras, foi muito ativo e deu-nos um grande apoio, embora não fosse o único. Mas teve maior visibilidade pela sua dedicação e também porque outros eram assistentes, como o Oliveira Marques. Em Medicina também houve vários. Recordo sobretudo o Luís Dias Amado, filho do Luís Hernâni Dias Amado, que tinha sido um daqueles professores afastados durante os anos 50. O Luís Dias Amado passou bastante despercebido, o que é uma injustiça, porque ele foi muito ativo, chegando a levar pancada com o Lindley Cintra. 

Os anos de "chumbo”

Depois entrámos numa fase de refluxo, com a qual me identifico muito. Acho muita graça a 62, e àquele momento extraordinário, e, sobretudo, ao papel dos dirigentes estudantis, quer o Jorge Sampaio, quer o José (Medeiros Ferreira), quer o Vítor Wengorovius, quer o Eurico Figueiredo, que era muito mais radical, mas extremamente democrático. Defendia a sua posição, mas, se era vencido, era ele que ia defender em Plenário a posição dos outros. Acho isso admirável. Portanto, realmente aprecio 62 por tudo o que teve de extraordinário, mas digamos que a minha cumplicidade é mais com o tempo a seguir.

Maria Emília Brederode Santos, 1963 ou 1964.

O movimento de 62 acabou, uns tantos foram presos, como o Eurico, o meu irmão foi expulso, o Jorge Sampaio acabou o mandato como secretário-geral da RIA e, como já tinha saído da faculdade, não podia recandidatar-se. O José foi eleito secretário-geral da RIA e foi logo preso em outubro. O movimento foi, de certa forma, decapitado. No entanto, mantiveram-se pequenos grupos que, em cada faculdade, mantiveram a chama: conseguiram ter determinadas atividades culturais, determinados contactos, fizeram ligações políticas,… Um trabalho de verdadeiros resistentes. Sinto-me quase mais parte disso, mais identificada com esse movimento ao longo desses anos “de chumbo” do que propriamente com os grandes momentos muito emotivos.

A seguir a 62, a sociedade civil foi muito interpelada pelos estudantes e existiram personalidades e movimentos da sociedade civil que procuraram entrar em contacto com os estudantes. Lembro-me, concretamente, do Mário Soares e do Salgado Zenha terem contactado o José, porque queriam conhecê-lo. Recordo-me ainda do Michel Giacometti, que tinha chegado há relativamente pouco tempo a Portugal, mas já estava em contacto com o Lopes Graça e já tinha começado a fazer recolhas etnográficas. Ele tinha seguido com muito interesse o movimento estudantil e achava que éramos bem intencionados mas também uns burgueses que não conhecíamos a realidade. E tinha razão. Propôs-se organizar uma visita de trabalho a uma zona do Alentejo em que cada um de nós tinha uma determinada função. Eu aceitei ir, juntamente com uma amiga minha, a Inês Brandão. Fiquei com a função de recolher histórias, benzeduras e superstições. A minha amiga recolhia jogos. O Jorge Neto Valente também foi, bem como um casal de arquitetos do Porto, o José Forjaz e a mulher, uns de música, o Jorge Constante Pereira e a mulher. Foi um banho de realidade rural que, de facto, não imaginava. Lembro-me de a Vera Azancot fazer uma cena porque havia uma criança que estava doente e ela achava que podia ser paralisia infantil e ninguém fazia nada. Recordo-me também que um senhor que ia pastorear porcos com o filho ganhava trinta escudos por semana. Era uma miséria. Por outro lado, o Michel Giacometti também nos fazia ver o lado de grande qualidade cultural, humana e até estética das populações. Data dessa época a “descoberta” da arte popular como os bonecos da Rosa Ramalho em Barcelos onde também fui com um grupo do Norte.

Em 63/64 fui para a direção da pró-Associação de Letras. O Anselmo Aníbal era o presidente, o Vasco Pulido Valente o vice-presidente, eu era a vogal para as Relações Exteriores. Pertenciam ainda à direção a Ani Alves, o José Raimundo, o Portilheiro, o Feijão. São pessoas que não tiveram visibilidade, mas que foram grandes resistentes. Lembro-me de ter sido chamada à diretora, a Virgínia Rau, por causa das iniciativas e manifestações que organizávamos. Como éramos poucos, éramos facilmente identificados mas não éramos facilmente intimidados.

Não sei situar bem no tempo, mas lembro-me de uma feira de material audiovisual pedagógico que foi uma coisa extraordinária. Foi o Daniel Ricardo, sobretudo, que a organizou. Foi algo pedagogicamente muito interessante. Foi a primeira vez que apareceram os filmes do Norman McLaren. Teve um grande impacto. Fazíamos mais atividades pedagógicas e culturais do que outra coisa. Também o movimento cineclubista se tornou mais importante. O Cineclube Universitário passou a ter um papel muito mais intervencionista, o Imagem continuou mais politizado.

Em 64/65 houve uma vaga de prisões no seio do PC e nós, que ficámos cá fora, achámos que devíamos continuar a luta, até para os apoiar lá dentro. Por causa do apoio aos presos políticos, dos comícios e outras iniciativas que organizámos, fomos expulsos, de todas as universidades do país. Foi uma expulsão muito mais violenta do que a de 62, em que os que eram expulsos de Lisboa iam para Coimbra, os que eram expulsos de Coimbra vinham para Lisboa. O Sedas Nunes conseguiu abrir um instituto de estudos sociais, que era um embrião da faculdade de Sociologia, e inscrevemo-nos todos lá. Claro que uma semana depois estávamos todos expulsos outra vez. Formalmente, fui expulsa por cerca de três meses, contudo, na prática, implicava perder a época das matrículas. Ou seja, perder um ano. Era algo típico do regime. Era aquela perversidade salazarenta.  

Plenário do movimento estudantil em 1964/65. No pódio, Maria Emília Brederode Santos, de sobretudo e lenço na cabeça, a arengar às massas, ladeada por Jorge Almeida Fernandes (Direito) e José Eduardo Freire (Medicina e Secretário-Geral da RIA). Em baixo, reconhece-se Daniel Ricardo (Direito).

Neste período, foram elaborados processos sobre o movimento estudantil, com vários volumes. Um  desses volumes desapareceu. Tínhamos combinado que ninguém dizia nada. A polícia estava à procura de casais que tivessem saído juntos. A lógica deles era: tem de ser um casal porque era verão, e as pessoas usavam roupa leve, pelo que tinha de existir uma rapariga que levasse um casaco no braço para esconder o processo; por outro lado, tinha de haver um rapaz para poder pensar nisso, ter essa ousadia. Prenderam uma amiga minha, a Magú Seixas e o António Melo, que ela namorava, mas acabaram por os libertar. O meu irmão tinha combinado aquilo com o João Bernardo e a Luísa Lemos, que tinham saído juntos, Prenderam o João Bernardo e a Luísa Lemos. O meu irmão pediu-me para os avisar que ele ia sair para Paris, para eles, se precisassem, poderem dizer que tinha sido ele. Nunca o fizeram e o meu irmão pôde voltar. A Luísa Lemos, entretanto, foi para Macau. Há uns anos voltou e matou-se. Hoje, quando nos lembramos destas aventuras, rimo-nos mas, de facto, há pessoas que ficaram terrivelmente marcadas por certas situações.

O trabalho na agência de publicidade e os encontros no VáVá

Depois das expulsões, resolvi ir trabalhar. Entrei para uma agência de publicidade que ficava por cima do VáVá, a Forma. Era uma agência pequenina, mas que tinha contas boas, como por exemplo, a Compal. Fiz a campanha da Compal, incluindo o slogan que ainda hoje existe: “Compal é mesmo natural”. Foi uma aprendizagem ótima. Estava o mundo às avessas : no trabalho divertíamo-nos e aprendíamos imenso e a Faculdade era uma chatice. Foi na altura em que apareceram com mais força as agências de publicidade, que estavam à procura de gente criativa e foram buscar muitos estudantes do movimento associativo que tinham sido expulsos. Lembro-me da Êxito, que contratou o Fernando Vilhena. O José também colaborou na Êxito fazendo a avaliação de uma campanha.

Maria Emília Brederode Santos na agência de publicidade Forma, no meio de estudos para a campanha da Compal. Data estimada: 1965.

Como também tínhamos sido expulsos da cantina, fomos comer para o Toxinas de Medicina, mas, entretanto, acabámos todos no VáVá. Eram os associativos, os cineastas, os publicitários. Três grupos que passaram a conviver ali, muito graças a pessoas como a Lena Carneiro e a Milice, que eram muito sociáveis. Formou-se ali uma tertúlia culturalmente muito interessante também com gente do jazz, do design e das edições.

O João Martins Rodrigues, irmão do Xico Martins Rodrigues, era um habitué do VáVá, embora fosse um homem muito metido consigo. Ele passava a vida a fazer desenhos, e as pessoas iam ficando com os desenhos dele. Um dia pedi-lhe para fazer a minha caricatura, para o nosso livro de curso. Disse-me que não conseguia fazê-la. Pedi ao Carlos Martins Pereira, que fez o meu perfil. Quando o mostrei ao João Rodrigues, ele disse que isso também ele era capaz de fazer e ofereceu-se para fazer o enquadramento.

Maria Emília Brederode está no pódio da escadaria da Faculdade de Letras, deduz-se que a falar num comício. Sentado à direita, reconhece-se o cineasta João César Monteiro. A segurar o cartaz que diz “Viva” está o autor dos “bonecos”, o João Rodrigues, ao lado a Ana Maria Alves. Os outros serão habitués do Vává. O passaroco com o telemóvel avant la lettre simboliza o PIDE de serviço para escutar e denunciar.

Na agência de publicidade também conheci gente muito engraçada e aprendi a planear uma  campanha, a pensar tendo em conta os objectivos, a audiência, os recursos,... toda essa problemática, essa parte mais operacional, acho que aprendi na agência de publicidade. O Fernando Pernes era chefe de publicidade na Forma, e eu era copywriter. Divertíamo-nos imenso a fazer os diálogos da farinha Saluzena, do avô e da neta a comer papa. Era um dos nossos preferidos. Havia gente muito boa do design, como o Cipriano Dourado ou o Acácio. A parte gráfica da Forma era dirigida pelo senhor Rafael, do PC, e à frente da parte comercial estava o senhor Alfredo Castro, que não tinha jeito nenhum para aquilo, mas era um homem muito interessante. Ele tinha estado na Faculdade de Agronomia com o Amílcar Cabral. Era um mundo de contrastes e isso é que tinha piada. Uma agência de publicidade é uma coisa consumista, e eu tinha a consciência de que não queria continuar a trabalhar naquele ramo até ao fim da vida. Por outro lado, tinha aquele lado criativo, moderno, que era muito apelativo. E foi lá que descobri o Edgar Morin e o Roland Barthes!

Depois começa a fase mais terrível, mas também interessante, em que surgem movimentos de esquerda pró-chineses. Nunca foi para mim uma tentação, mas reconheço que foi uma diversificação das conceções e das formas de luta. Mas começou tudo a tornar-se mais pesado.

Em 66 ou 67, o meu irmão Fernando, que era o menos politizado de nós os três, implicou-se muito com o Hélder Costa nos movimentos mais pró-chineses e radicalizou-se. Era uma personagem encantadora mas uma espécie de eterno adolescente. Comecei a preocupar-me muito porque achei que era óbvio que ia ser apanhado. E foi. Ele foi preso quando já estávamos a preparar a sua fuga. Quando foram lá a casa para fazer uma busca, de manhã, não sabíamos se já estava preso ou não. A minha mãe, que era uma mulher muito contida, só dizia, olhando para os pides: “Que triste profissão! Que triste profissão!”. Fui atrás deles para o quarto do meu irmão, para tentar perceber o que é que eles apanhavam. Vi os pides porem de lado um papelinho e uma chave. Pensei logo que tinha de tirar aquilo dali. A certa altura, passei por ali e, com o coração aos pulos, roubei o papelinho e desapareci. Cá fora, nas escadas, abri o papelinho e vi que continha a descrição de armamento. Comecei a pensar na chave que lá tinha ficado. Comi o papelinho e voltei para trás para ir buscar a chave. Quando ia a entrar em casa, ouvi a minha mãe a dizer: “Eu não minto! Se eu disse que não tirei é porque não tirei!”. Desapareci outra vez e deixei lá a chave, que nem sei do que era. O Fernando esteve preso em vários sítios. Em Elvas, tive a grande tentação de o libertar, mas não tive coragem. O meu irmão tinha montado, com outros, uma passagem clandestina para Espanha a partir de Elvas, perto de onde o Picão de Abreu morava. Quando foram presos, um dos julgamentos foi em Elvas. O senhor que tomava conta da cadeia era amigo dos pais do Picão e facilitou-nos as visitas. Só pensava que, se tivesse coragem, dava uma pancada no velhote e levava o meu irmão dali para fora. Mas não tive coragem. E o meu irmão depois disse: “Ainda bem que não o fizeste, coitado do velhote!”. Ao todo, o Fernando esteve preso cinco anos e meio, em Elvas, em Caxias e em Peniche. Também me lembro de ele estar no hospital de Caxias com o Manuel Serra e de eu lhes levar um livrinho vermelho do camarada Mao, trazido especialmente do estrangeiro. [Risos]

O exílio na Suíça

Nessa altura, já estava a namorar com o José. Para ele, começava a tornar-se muito próxima a necessidade de tomar uma posição em relação à ida para África. Para mim era muito óbvio. Mas a verdade é que a decisão não era minha. Não sei se tivesse sido minha se teria sido tão óbvia, mas penso que sim, porque, apesar de tudo, não tinha os condicionalismos dele. Para mim era óbvio que não ia colaborar numa guerra injusta. Para ele também, mas era muito mais duro porque tinha dois irmãos militares e sabia que para eles ia ser negativo, também sofreriam as consequências. De qualquer maneira, o José decidiu que não ia e tivemos de começar a fazer os preparativos. Ele não queria ir através de nenhuma organização, foi algo ad hoc, com amigos. Arranjei-lhe um passaporte de um nosso colega madeirense, o Hermes Serrão, graças ao Jorge Ricardo, meu colega da Forma, arranjei também quem substituísse a fotografia e o carimbo, que era feito com batata crua. Ficou uma coisa muito trapalhona e mal feita, mas, seja como for, ficou feito. Fui buscá-lo à tropa, deixei-o debaixo de uma ponte que havia ali na 5 de Outubro, dali ele apanhou um táxi. Um amigo foi buscá-lo, outro levou-lhe a mala. O que o foi buscar, creio que o Joaquim Mestre, levou-o até perto da fronteira e aí juntou-se a outros para atravessar a fronteira a pé. O José Garibaldi foi ao seu encontro do outro lado da fronteira para o levar até Madrid. Este processo envolveu, apesar de tudo, uma organização bastante grande. Nem eu nem o José sabíamos para onde é que ele ia. Tive, entretanto, oportunidade de aceitar um lugar na Universidade de Bristol. Existiam dois professores de português em Bristol – um do Instituto de Alta Cultura e o outro contratado pela Universidade de Bristol. Este lugar tinha sido ocupado pela Teresa Amado mas ela não quis continuar e candidatei-me eu. Quando o José se foi embora, ou pouco depois, eu já sabia que ia para Bristol. Mas ele não quis ir para Inglaterra. Foi primeiro para Paris, onde esteve uns tempos em casa da Milice. No primeiro dia em que chegou, teve de dormir nas escadas, porque eles não estavam em casa. Dizia sempre que tinha sido a pior noite da sua vida. [Risos] O Eurico Figueiredo mandou-lhe um telegrama, de Genebra, a dizer para ele ir para lá, que já tinha uma casa para ficar. Foi muito solidário. O José decidiu ir para Genebra. Ele veio passar férias a Inglaterra, eu fui passar férias a Genebra, até que concorri a uma bolsa da Gulbenkian. Pedi ao Rui Grácio para escrever uma carta de referência, que era necessária na altura. Ele respondeu-me que escreveria se eu assim o quisesse, mas que não estava bem visto na Gulbenkian. Insisti que não queria que mais ninguém a escrevesse. A bolsa foi-me atribuída e fui estudar para Genebra, para o Instituto de Psicologia e Ciências da Educação. Ao fim de um ano, convidaram-me logo para assistente, mas não quis, porque me estava a saber muito bem estudar. Nunca tinha estudado, de facto, com tanta tranquilidade como nesse ano. Ao fim de dois anos, insistiram e eu acabei por aceitar e fiquei como assistente até voltar para Portugal. Foi uma experiência muito rica e pessoal e profissionalmente muito compensadora. É mesmo verdade que se aprende sobretudo quando se ensina… ou quando se organiza as aprendizagens dos outros. No Instituto combinavam-se então umas bases bem sólidas com a abertura às novidades de toda a Europa e com os questionamentos e a imaginação de Maio de 68. Às vezes, estes até se sobrepunham demais como quando o Paulo Freire veio do Brasil e o meu Instituto convidou-o para animar um seminário de pós-graduação. Sempre que o Paulo Freire ia falar era interrompido. Tinha havido o Maio de 68 e os alunos reclamavam o poder.

Quando vinha a Portugal, essencialmente nas férias, servia muitas vezes de correio para passar documentos e ser acompanhante de crianças era uma boa cobertura. Cheguei a trazer a filha do Carlos Almeida e da Manuela Pinto Nogueira várias vezes. Perdi o medo aos aviões por causa dos miúdos. Uma vez, fui interrogada pela PIDE quando cheguei a Portugal devido a uma combinação com a Diana Andringa por causa de presos dos movimentos de libertação nacional. Noutra ocasião, vim acompanhada pelo Mário Borges, um professor da Faculdade de Arquitectura oriundo do Porto, e ele foi preso logo à entrada com base numa acusação de há vários anos, de quando tinha saído do país.

Em 1973, fui ao Congresso de Aveiro, por causa da tese do José. Ele escreveu uma tese, intitulada “Da necessidade de um plano para a Nação”, em que defende duas coisas: primeiro, que são as Forças Armadas que vão deitar abaixo o regime, coisa que, na altura, era uma heresia; segundo, que era preciso um plano para o país depois de se derrubar o regime, e que, segundo ele, devia passar por descolonizar, socializar, desenvolver através de uma profunda democratização (o que veio dar origem ao slogan do 25 de Abril). Andei com o texto a visitar os amigos e a pedir-lhes a opinião. Quase todos estavam contra. A única pessoa que disse que ele tinha razão, mas que era precoce, foi o Jorge Sampaio. Os outros diziam que ele estava fora da realidade, que não percebia o que se estava a passar cá dentro... O Mário Soares disse que não convinha apresentar esse documento, porque quem ia gostar muito daquilo era o Spínola. Lembro-me de que, em Aveiro, fui muito bem acolhida. Penso que foi o Vítor  Wengorovius e o Zé Dias que organizaram a minha estadia. Fiquei em casa de um médico da Oposição, o Dr. Seiça Neves, da filha Manuela e até pediram à filha do Mário Sacramento então com 15 ou 16 anos para me acompanhar! Havia sempre umas extraordinárias cumplicidades e correntes de solidariedade.

O 25 de Abril e o regresso a Portugal

Em 1974, o meu filho nasceu. Foi o ano de todos os prodígios, como diria a Lídia Jorge. O nosso filho nasceu em janeiro e depois deu-se o 25 de Abril.

Maria Emília Brederode Santos com o filho Miguel, dias depois do seu nascimento, em janeiro ou fevereiro de 1974. 

O Joaquim Pinto de Andrade, que tinha estado preso com o José no Aljube telefonou-nos de madrugada. Tivemos a intuição de que o golpe era bom, mas, em todo o caso, não era certo. E, sobretudo lá fora, foi encarado com muito ceticismo, por terem sido os militares a fazê-lo. Recordo-me que o Le Monde, por exemplo, publicou um artigo a dizer que a música que estava a passar, a “Grândola”, tinha uma parte em que se ouvia a marcha dos soldados, e que era preciso ter cuidado porque podia estar em causa um golpe da extrema-direita. O José veio logo a Portugal e começámos a combinar o regresso. Foi uma opção óbvia. Cheguei em julho, quando terminou o ano letivo. Tive uma experiência muito negativa porque o meu filho adoeceu muito gravemente: pessoalmente, porque foi a pior coisa que me aconteceu na vida; por outro lado, foi uma desilusão política. Estive com o meu filho em coma vários dias e, quando eu, exausta, pedi para que a minha mãe me pudesse substituir ao lado dele para eu poder descansar, o pessoal, reunido em plenário, decidiu recusar. Digo que foi uma desilusão política porque percebi por que é que, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ao lado da Liberdade e da Igualdade tem que estar a Fraternidade… E confirmei que a democracia exige um poder bem distribuído e controlado.

Maria Emília Brederode Santos com o seu irmão Nuno. Foto de Miguel Baltazar. Data estimada: 2010.

No que respeita à minha vida profissional, o Rui Grácio chamou-me para o Instituto de Tecnologia Educativa. Éramos quatro “estrangeirados” a fazer a preparação pedagógica a distancia dos professores, porque naquela altura havia falta de docentes e muitos dos que existiam tinham pouca formação pedagógica.

A  Educação passou a ser uma parte fundamental da minha vida. E estou agora no CNE, no mesmo edifício do que era então o Instituto de Tecnologia Educativa. Como um círculo que se fecha.

Maria Emília Brederode Santos. Foto de Veríssimo Dias, 2018.

Maria Emília Brederode Santos foi eleita Presidente do Conselho Nacional de Educação pela Assembleia da República em novembro de 2017.

Foi presidente do Instituto de Inovação Educacional do Ministério da Educação de 1997 a 2002 e representante do Ministério da Educação na Comissão Nacional para a Educação em matéria de Direitos Humanos (Comissão Nacional para a Celebração do 50.º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Década das Nações Unidas para a Educação dos Direitos Humanos) de 1998 a 2004. Foi coautora do Manual de Educação para o Direitos Humanos Compasito, Conselho da Europa, 2007, do jogo Direitos à solta - o Jogo de Democracia a 3 Dimensões, Associação para a Promoção Cultural da criança/APCC, 2004 e A Constituição da República Portuguesa Trocada por/ para Miúdos, Assembleia da República, 2001 e 2002.

Foi diretora pedagógica do programa televisivo e da revista Rua Sésamo (1987 a 1997) e autora do livro Aprender com a TV, 1991 (Learning with TV, CTW, 1992). Foi presidente da Associação Portuguesa de Intervenção Artística e de Educação pela Arte (2006 a 2008), da Comissão de Avaliação da Escola Superior de Educação pela Arte (1981 a 1982) e do Grupo Interministerial para o Ensino Artístico (1996). Autora dos livros Avaliação da Escola Superior de Educação pela Arte, IIE/ME, 1994 e de Os Aprendizes de Pigmaleão, Lisboa, IED, 1985 e 1991 – sobre a sua experiência de formação de professores na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Foi membro da Comissão Instaladora da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal e presidente do seu Conselho Científico. Foi Presidente do Conselho Geral do Instituto Politécnico de Setúbal até novembro de 2017. É membro do Conselho de Opinião da RTP.

É membro de várias Associações (como a Associação Portuguesa de Educação Permanente) e membro da direção da APGES (Global Platform for Syrian Students) e de grupos informais como o Grupo informal de Educação para a Literacia Mediática (GILM) e o grupo Inquietações Pedagógicas (blog, facebook e página do Jornal de Letras).

É mestre em Análise Social da Educação pela Boston University, E.U.A, e licenciada em Ciências da Educação pelo Institut de Psychologie et des Sciences de l’ Education da Universidade de Genebra (onde também lecionou) e pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Recebeu o prémio Rui Grácio da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação em 1992 e o prémio da Boston University General Alummi Association em 1994.

Foi agraciada em 2004 com a Ordem da Instrução Pública pelo Presidente da República Jorge Sampaio.