Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.
O meu nome é Luísa Amorim. Nasci em março de 1946, logo a seguir à Guerra. Sou filha de um casal da pequena burguesia, com um pai determinante na família. Um minhoto, self made man, que fez um percurso desde merceeiro até conseguir superar o desafio de montar uma fábrica de plásticos, ainda nos anos 50. Começou a trabalhar na mercearia, depois ficou com uma quota com um espanhol que tinha vindo da Guerra Civil de Espanha. Ele manteve a mercearia mas fez um pequeno investimento de capital para construir uma fábrica em que simultaneamente era o patrão e o único empregado. De algum modo, é um homem que é muito determinante para mim, porque me ensinou a olhar o mundo. Sendo um homem muito simples, praticamente analfabeto, está permanentemente a fazer duas coisas: a fazer com que eu singre na vida, tirar um curso, ser alguém, e, ao mesmo tempo, garantir que eu não me esqueça que a nossa família era uma família de dificuldades.
Luísa Amorim com seis meses.
A minha avó paterna morreu de tuberculose por trabalhar para sustentar os filhos, na medida em que o pai das cinco crianças, um agricultor minhoto pequeno-burguês, nunca casou com ela devido ao seu estatuto social. A minha avó foi uma mulher que lutou pelos seus filhos, e o meu pai contava-me todas as dificuldades pelas quais passaram, de como apanhavam pinhas para vender na vila para poderem comer. Após a minha avó morrer, o meu pai foi trabalhar para uma mercearia, na sua terra natal, Monção, onde tinha um banquinho para chegar ao balcão. O resto da família tinha emigrado para o Brasil e fazia chegar algum dinheiro para os miúdos mais pequenos. Para mim, este foi sempre um lado heroico da família, um lado do qual o meu pai fazia destacar a honra das pessoas de trabalho. Por outro lado, sendo rapariga, empurrava-me sempre para ter os valores da virgindade, do bom comportamento. Mas o meu pai queria que fosse autónoma. Era filha única - tive um irmão, mas ele morreu com um mês -, por isso, o meu pai investia em mim para ser ao mesmo tempo uma rapariga que iria ter estudos, mas preparada para ser uma boa dona de casa e uma mulher modelo.
Fiquei sempre com a ideia de que nunca me poderia esquecer e ganhei este sentido de dignidade que nunca me abandonou. Foi a grande mensagem que o meu pai me queria passar: de dignidade, de que quem faz este país são estas pessoas. O “fato de pó “, tipo de bata que ele usava na mercearia era o seu fato de honra. Dizia-me que nunca me deveria envergonhar, e que era aquele fato que distinguia que ele era uma pessoa de trabalho. O meu pai não era um homem de esquerda, era um homem analfabeto, muito inteligente, e com este sentido de dignidade muito forte.
O Largo de Santa Marinha foi um mundo de descoberta para mim
Vivemos em Lisboa, em duas zonas bastante interessantes: entre Alfama e a Graça. O primeiro bairro onde vivemos, e onde o meu pai tinha a tal mercearia, era mais perto de Alfama do que da Graça. O Largo de Santa Marinha foi o primeiro romance neorrealista de que tive experiência na vida. Haviam as mulheres peixeiras, as prostitutas, um casal de lésbicas,… Havia todo um mundo que gravitava ali à volta em que tudo o que acontecia dentro de casa acontecia de portas abertas, pelo que todos nós assistíamos. Quando existiam conflitos, as discussões acabavam na rua, tomava-se partido. Os maridos batiam nas mulheres, que vinham gritar para a rua. Tomava-se partido em relação à pancadaria, que nunca era muito favorável às mulheres.
Luísa Amorim com dois anos.
Fiquei com a imagem de algumas figuras que ainda hoje não sei se são realidade, como a Tia Maria das Azeitonas, que vendia azeitonas num pote à porta de casa. Um dia ela levou tanta tareia que o seu corpo saltou por cima de um muro de arbustos. Recordo-me desta imagem mas nem tenho a certeza se é verdadeira, de tão surreal. Isto foi um mundo de descoberta para mim. Era um mundo diferente do meu, porque, apesar de tudo, eu era uma filha mais privilegiada. O meu pai envolvia-se muito na comunidade e vendia fiado às mulheres do bairro. Quando os maridos iam para a pesca do bacalhau, as mulheres vestiam-se de negro. Estas histórias acompanharam o meu crescimento até aos onze anos, idade até à qual vivi nesta zona.
Tive a vantagem de ter uma avó, que na verdade foi a senhora que criou a minha mãe, uma figura de referência para mim pelo amor que me tinha, que me deixava viver muito na rua, no Largo de Santa Marinha. A minha mãe era uma domesticadora por excelência, queria que eu fosse uma menina bem-educada. Já o meu pai guardava aquilo para mais tarde. Como queria um rapaz, ensinava-me a ser aguerrida, a andar à pancada com os miúdos.
É giro que há um realizador de cinema, o Geada, que morava nessa zona. Ele era um menino mais fino do que eu, que não deixavam brincar na rua, e que ficava à janela a assistir às nossas brincadeiras. Um dia mais tarde disse-lhe que sabia porque é que ele se tinha tornado realizador: estava sempre à janela a ver o filme à distância.
Luísa Amorim mascarada de cigana com cerca de 5 anos.
Quando eu tinha oito anos, a minha avó morreu e eu fiquei mais “enclausurada” em casa dos meus pais. Nesse momento, começou a domesticação da minha mãe, que não foi muito bem conseguida, e a minha rebeldia. Aí o meu pai ainda estava na fase da proteção.
Com 7/8 anos, fui expulsa da escola por me recusar a ir à catequese
Fui expulsa da escola, porque a minha família era anticlerical. Tinham tentado pôr parte dos filhos em seminários, para poderem escapar às dificuldades e darem-lhes algum estatuto. Um dos irmãos do meu pai foi posto na rua por ser filho de pai incógnito. Isto criou em todos os irmãos um sentimento anticlerical fortíssimo. Ou seja, a minha formação religiosa começou a ser marcada também por esta história de família, em que a igreja católica, na sua hipocrisia, rejeitou um jovem por ser filho de pai incógnito.
Fui para uma escola onde tentaram dar-me formação religiosa e a minha rebeldia fez-me recusar a ir. Fui expulsa da escola. A professora levou-me a todas as turmas para comunicar o motivo da minha expulsão. Eu que, de início, achei que tinha feito uma obra muito meritória, depois fiquei sem saber como é que o meu pai ia reagir. O gesto dele foi um momento importante nas minhas convicções religiosas. O meu pai foi à escola e tomou o meu partido. No dia seguinte levou-me às aulas. A professora disse-me que o meu pai era muito inteligente e que íamos encerrar o assunto, estava tudo resolvido.
Luísa Amorim à porta da fábrica de plásticos do seu pai com 6/7 anos.
Todo este mundo que me rodeava em criança era muito rico, muito construtor
Quando o meu pai saltou de estatuto social, ao passar da mercearia para a fábrica de plásticos, subimos da proximidade de Alfama para o centro da Graça. Morei no alto da Travessa das Mónicas, em frente à prisão das Mónicas. Aí, deparei-me com outro mundo. Via as mulheres presas na cadeia das Mónicas a partir da minha janela de casa. Quando elas eram vítimas de grande repressão, ou de grandes injustiças lá dentro, ameaçavam atirar-se dos muros da cadeia. Isso permitia-lhes tornar público o que se estava a passar, as violências de que eram vítimas, muitas vezes de guardas. Vinham para junto do muro do jardim da prisão, juntava-se ali a multidão e elas contavam tudo, as desgraças da sua vida, o que se passava lá dentro, e pediam ao diretor da cadeia para lá ir. Era outro mundo que me trazia toda uma riqueza. Nada era monótono ali.
Desde muito criança, tive uma grande curiosidade pelo mundo e, ao mesmo tempo, o mundo esteve muito próximo de mim. Não consigo distinguir se foi a minha curiosidade que me fez ver esse mundo ou se esse mundo me entrava pelos olhos dentro. Mas todo este mundo que me rodeava em criança era muito rico, muito construtor.
Travei lutas complicadas que tiveram muita importância na construção do meu caráter
O meu pai foi um homem cheio de contradições. Foi construtor, mas também foi um homem que me ajudou a descobrir, já na adolescência, que havia um grande antagonismo entre o meu estatuto de mulher e o filho dele. O filho que começava a ter sexo quando passava a ser adolescente. Primeiro, ele investiu muito numa criança que era quase uma pessoa assexuada, viva, turbulenta, inquieta. Depois a situação alterou-se.
O meu problema começou na adolescência. Um dia, na sequência de um confronto com o meu pai, em que a minha mãe tomou o seu partido, saí de casa. Tinha 17 anos. O meu pai mandou-me prender. Na esquadra que ficava em frente à nossa casa, disse-lhe que voltava para casa, mas que iria sair outra vez. O meu pai decidiu que desistia, e que, a partir daquele momento, não tinha mais uma filha.
Tudo o que conquistei do meu estatuto de autonomia, conquistei-o à minha custa. Algumas vezes, com bastantes dificuldades. Ou seja, com muito sofrimento, no meio de um processo em que o meu pai era a figura de referência e durante o qual eu tinha, concomitantemente, de entrar em confronto com ele, a pessoa que mais amava na vida. Travei lutas complicadas que tiveram muita importância na construção do meu caráter.
Um dia, o meu pai descobriu que eu tinha um namorico, que, na verdade, era perfeitamente platónico, e confrontou-me perguntando se ainda era virgem. Estávamos numa época em que a virgindade era considerada sagrada. De me sentir tão irritada e tão violentada, respondi-lhe que não, que já não era virgem. O meu pai caiu de cama doente, vivendo o drama de que teria acontecido uma grande desgraça naquela família. Como não conseguia aguentar aquela realidade muito tempo e porque era, de facto, virgem, contei-lhes a verdade. A única alternativa que tive foi ir com a minha mãe a uma médica testar a minha virgindade. Foi das coisas mais violentas que me aconteceram na vida. Era uma jovenzinha cheia de idealismo e fui confrontada com o dilema entre o muito que gostava do meu pai e as minhas convicções. Foi uma experiência muito traumática em que achei que toda a vida devia arranjar uma maneira de ninguém me conseguir tirar a virgindade. Nunca consegui resolver esse problema [Risos]. Achava que ninguém era merecedor da minha virgindade a não ser eu própria. Esta era a realidade deste país há menos de 60 anos.
No meio deste processo, acabo por descobrir a luta revolucionária
Como adolescente, tive uma fase de desencanto muito grande, em que rejeitei esta sociedade, que achava que era absolutamente hipócrita, uma sociedade que vivia do faz de conta, que não tinha nada a ver comigo. A vida era para ser vivida com liberdade, com intensidade. A liberdade individual era, para mim, algo de extremamente importante. Achava que todos tínhamos direito à liberdade. Portanto, andava ali numa onda existencialista, de Sartre, Camus... Na altura, ainda não tinha consciência de que, na minha condição de mulher, pertencia a um grupo com condições e condicionamentos, idênticos.
Luísa Amorim com 24 anos.
No meio deste processo, acabei por descobrir a luta revolucionária, através de alguns amigos meus, universitários. Nesta altura, tive, inclusive, um namorado que morreu. Entrei, entretanto, para a Faculdade de Medicina, em 1964. Este é um período muito intenso porque, embora não tendo ainda muita consciência política aderi, por rebeldia, às primeiras greves. Um colega nosso de Medicina estava preso, a sua companheira estava grávida, e eu achava que tínhamos de ser solidários. É um processo em que vamos despertando.
Entretanto, envolvi-me com um jovem, dirigente estudantil de Económicas, que foi expulso da universidade e entrou para a clandestinidade. Na minha postura do tudo ou nada, adiro ou Partido Comunista e também vou para a clandestinidade, em 1965. Ainda não tinha uma grande consciência política mas já tinha a convicção que a alternativa era lutar por um mundo melhor, acabar com as injustiças e a desigualdade. As histórias do Largo de Santa Marinha estavam presentes em mim, bem como a história da minha avó. A própria clandestinidade é um processo de consciencialização política. Saltámos de casa em casa. Ficávamos sempre em casa de outras pessoas, ocupávamos apenas um quarto. Quando percebíamos que o local já podia estar queimado, passávamos para outro sítio. Na clandestinidade, fiz traduções de livros do Lenine, participei em algumas reuniões e encontros, distribui propaganda do Partido. Agora dá-me vontade de rir, porque eu era uma pequeno burguesa e nós, de facto, começámos a passar dificuldades. Mas as dificuldades eram facilmente ultrapassáveis com a força do idealismo do mundo que nós queríamos construir.
Tive um episódio engraçado. Numa das casas, a senhora guardava uma bilha com azeitonas. Tirava-lhe uma ou duas ou três azeitonas todos os dias, convencida de que não se iria notar. Mas comi tantas azeitonas que a mulher notou que a bilha estava mais vazia e fez um escarcel. Fiquei envergonhadíssima, porque não estava à espera de ser apanhada. [Risos]
Passados cerca de dois anos na clandestinidade, um dia ele saiu para ir a uma reunião e não apareceu nas seguintes 48h, pelo que tive de tomar uma série de medidas. Adivinhava-se que já estaria preso. Posteriormente, soube que houve uma vaga de prisões desencadeada por um anúncio posto por um funcionário a convocar para uma reunião. Ele denunciou onde era o ponto de encontro, o que levou à prisão de vários camaradas.
Na altura, estávamos em Queluz. Entupi a casa de banho a queimar papéis e, no dia seguinte, fugi de casa com o mínimo possível. Tinha muito pouco dinheiro e precisava de, rapidamente, fazer um contacto. Fiquei em casa de uns amigos não clandestinos que davam apoio. A ideia era tentar arranjar-se uma casa de segurança. Deixei imediatamente de ter qualquer tipo de tarefas, durante cerca de seis meses, para proteger os organismos do Partido. Quem fazia a ligação comigo deixou de contactar-me.
As contradições das mulheres marcam toda a realidade que nos rodeia
Há um episódio que revela como as contradições das mulheres marcam toda a realidade que nos rodeia. Eu era muito jovem, e engraçada, e fiquei com um casal que me deu apoio. Como não tinha nada para fazer decidi arranjar a casa deles, julgando que estava a ser prestável. Isso provocou uma discussão em que ele, utilizando o meu exemplo, disse à mulher que ela já podia ter feito o mesmo. Desencadeei ali uma rivalidade. Apercebi-me que, por um lado, ela sabia que não me podia pôr fora porque eu estava numa situação delicada. Por outro lado, não estava dependente dela arranjar uma casa em segurança, e já tinham falhado várias tentativas.
Ela era professora, e dava aulas fora de Lisboa, pelo que passava a semana fora. Para não me deixar sozinha em casa com o marido, optou por arranjar um esquema em que fingia que estava a notar vigilância à porta de casa, para que eu passasse a ir com ela todas as semanas. Fiquei na pensão onde ela passava a semana, até que um dia, por crueldade “inconsciente”, que é fruto da rivalidade entre as mulheres, ela disse-me que tinha aparecido um tipo com ar de pide a perguntar por mim e que eu devia desaparecer de imediato. Foi a forma que encontrou de se livrar de mim. Não sabendo ainda do que se estava a passar, saí com a roupa do corpo, em direção à estação de comboios. Estava cheia de receio de ser apanhada lá, porque aquela era a única forma de sair da vila. Lá entrei no comboio e saí numa daquelas estações de apeadeiro. E fiquei várias horas à espera de outro comboio, decidida a ir para o Porto. O dinheiro estava a acabar. Passei por um período difícil. E ainda não tinha percebido que era tudo uma história mal contada. Estive um tempo no Porto até ir para Lisboa, passadas duas ou três semanas, para uma marcação.
Mais tarde, ambos os membros do casal foram os meus padrinhos de casamento. Quando vim a saber a verdade, nunca tive a coragem de lhe falar sobre o assunto, porque é algo que não se oraliza. Mas fiquei sempre com aquela mágoa por perceber o que nós, mulheres, fazíamos umas às outras.
Voltei à legalidade e continuei na luta política
Voltei à legalidade e continuei na luta política. Houve um período em que estive mais protegida, porque já vinha com este escaldanço todo. A PIDE convocou-me para comparecer na Rua António Maria Cardoso, para ser interrogada. Eu sabia que o processo dele já estava completamente fechado, pelo que não podia ser reaberto. A minha versão foi a de que eu era uma jovem ingénua que queria ir para Paris com o namorado. Neguei ter qualquer ligação política.
Voltei para a Faculdade, passei a ter atividade na pró-associação e estive ligada à comissão pedagógica e à comissão de estudantes de turma. Estávamos num período de ebulição, em que havia repressão. A PIDE tentava invadir a sala de alunos e nós tínhamos de fugir, distribuíamos panfletos, integrávamos as manifestações do movimento estudantil. Os protestos decorriam ali, no espaço universitário, e passavam por ludibriar a polícia: gritávamos os slogans quando os polícias viraram as costas, ficávamos calados quando se dirigiam para nós. Às vezes, era preciso fugir “a sete pés” quando eles investiam a sério contra nós. Escondíamo-nos nas igrejas, ficávamos nas paragens do autocarro a fingir que estávamos lá à espera do transporte. Houve momentos em que estudantes foram brutalmente espancados.
Lembro-me de irmos comemorar o 5 de outubro para o cemitério e de aquilo acabar sempre connosco a fugir à polícia pelos terrenos de trabalho agrícola que existiam em frente. Uma vez, não consegui fugir, estava tudo entupido com gente a tentar escapar-se. Encostei-me à parede, gelada, a ver a polícia passar por ali e olhei em frente, para ver se eles não me viam. E, de facto, eles continuavam a perseguir os outros estudantes. Uns tinham saltado as vedações de madeira para dentro de uma pequena horta, acabando por destruir aquele espaço.
Agora temos um olhar romântico. Nem sempre estas coisas foram tão divertidas. Mas toda a nossa juventude e toda a nossa alegria de viver e todo o nosso projeto de um mundo melhor faziam com que, de facto, de todas as dificuldades, sobressaísse a nossa capacidade de humor em relação às partidas que tínhamos pregado: tínhamos escapado, não nos aleijaram muito, enganámo-los, conseguimos dizer as palavras de ordem que queríamos. A nossa postura era sempre de um saldo positivo.
Engravidei da minha filha Catarina na cadeia da Trafaria
Como o meu namorado era oficial militar, e tinha desertado da guerra, a PIDE entregou-o à tropa. Ele estava preso na Trafaria, que era uma prisão militar. Depois foi para o forte de Elvas. Para poder visitá-lo, tivemos de casar, que era algo que não fazia parte dos meus planos. Aliás, quando o meu pai nos visitou, ainda na clandestinidade, perguntou ao meu namorado se éramos casados ou se íamos casar e ele respondeu que não sabia se eu queria. O meu pai ficou em polvorosa e disse que eu não tinha melhorado nada. Para casarmos, os militares trouxeram-no, munidos de metralhadoras, a casa dos meus pais, na Travessa das Mónicas, na Graça. Não pudemos ir no mesmo barco porque eles tinham medo que houvesse uma tentativa de fuga no Tejo. A vizinhança reuniu-se ali à volta, os pides todos à porta.
Engravidei da minha filha Catarina na cadeia da Trafaria. O forte da Trafaria tinha uma muralha e, no meio, tinha os soldados. Depois havia uma porta para o segundo círculo, onde estavam os oficiais. No caso dos soldados, as visitas realizavam-se no meio de grandes multidões, enquanto que os oficiais tinham cada um o seu quarto. Havia uma sala de visitas, mas podíamos ir até ao quarto. Nós éramos jovens, eu não sabia quanto tempo é que ele ia apanhar, e tinha o romantismo de querer ter um filho. Quando estávamos no quarto, tinha sempre imenso medo que batessem à porta. Os soldados, como não tinham privacidade, porque estavam em camaratas, auto-organizavam-se e iam à casa de banho à vez com as mulheres, com a conivência dos guardas. Quando começaram a ver a minha barriga a crescer, as mulheres diziam-me que eu tinha aproveitado bem a casa de banho. Lá percebi como tudo se passava na zona dos soldados e expliquei-lhes que as condições eram diferentes nas divisões dos oficiais.
Fui ao julgamento dele, militar, com um casaco de camurça, com uma barriga enorme já, a tentar disfarçar que estava grávida. De algum modo, achava que a promiscuidade do olhar deles estragava a beleza da minha barriga grávida.
Após o julgamento, passou para o Forte de Elvas, que era horrível. A primeira vez que lá fui só não me deu um treco porque não era mulher para trecos. O Forte de Elvas era de uma crueldade enorme. Ficava no alto de uma serra e não tinha abastecimento de água. Uma latifundiária, face à violência daquilo a que assistia, ainda tinha tentado fazer chegar água ao forte, mas o fascismo achava que fornecer água era um luxo que eles não mereciam. Os soldados presos vinham em bandos e carregavam os barris, que não podiam encher, sob um calor horrível. Estavam permanentemente a ser guardados por soldados com metralhadoras. Eram autênticos trabalhos forçados. Era de uma violência atroz. Aos oficiais presos não era exigida esta tarefa, mas viviam em grande isolamento. Já os soldados viviam em camaratas e podiam conviver e criar redes de solidariedade. Às vezes, eu andava às voltas do Forte e combinávamos sinais de luzes com o carro para marcar presença e, de algum modo, manter comunicação.
Quando a Catarina nasceu ele estava preso. Só consegui mostrar-lhe a criança quase um mês depois. E a viagem foi muito complicada, no meio de todo aquele calor.
Entretanto, ele saiu da prisão e eu voltei a engravidar. Foi giro porque só descobri que estava grávida durante uma conversa com uma amiga num café em frente a uma sede semilegal do MDP/CDE. Estávamos na campanha de 69. Ela disse-me que não sabia se estava grávida. E eu, de repente, parei e dei-me conta de que também poderia estar. E estava, ao contrário dela.
Luísa Amorim com os dois filhos.
A passagem pela Ilha do Sal
Quando finalmente pensámos que estava tudo resolvido, e que íamos ter uma vida mais tranquila, ele foi mobilizado para a Ilha do Sal. Em 1970, Catarina, eu e meu filho Manuel, então com três meses, fomos lá ter. Mas continuei a manter ligação com o Partido em Lisboa e com o MDM. Vinha cá fazer reuniões.
Na Ilha do Sal, recusei-me a viver nas casas da tropa, no interior do quartel. Vivíamos no bairro da população negra. Foi uma experiência também muitíssimo interessante. Convivíamos com tropas e com a população. Fizemos trabalho de sapa e reuníamos lá em casa. Ainda houve um levantamento de rancho que foi muito violento, dado que os soldados acabaram por ser mobilizados para a frente de batalha, para a Guiné, para morrer. Esse período foi muito complicado.
Eu ainda andei com o médico a ver doentes. Lembro-me que haviam ilhas que eram visitadas pelo médico com intervalos de vários meses. No intervalo era o salvem-se como pudesssem…Tive contacto com realidades que desconhecia por completo.
Há um episódio, vivido por mim enquanto estava na ilha do Sal, que é significativo do que é o racismo e do que é o fascismo interiorizado nas próprias pessoas. A minha empregada era uma pessoa extremamente interessante. Tinha um vocabulário reduzido de português, mas com aquele vocabulário reduzido fazia construções de frases que eram autênticos poemas. Usava meia dúzia para exprimir muitas coisas. Era deslumbrante. Mas nunca mais me esqueci da descrição que ela fez de como era bonita quando era nova: “Senhora, eu ser muito bonita. Branco passar por mim, apertar a minha bochecha, e dizer ‘Tu ser branca’”. O valor da beleza para ela era ser branca, coisa que nunca foi. E a atitude do branco, de atrevimento a apertar a bochecha, aquele sentimento de posse. É muito forte. Foi o simbolismo de uma imagem que me congelou, mas que me disse mais do que quarenta discursos. E Cabo Verde era uma das nossas colónias mais letradas, graças à passagem, em algumas ilhas, de padres missionários. De manhã, ouvia o hino cantado pelas crianças nas escolas, que era uma coisa que eu não conhecia em Portugal.
Tínhamos um depósito de água que a tropa ia encher. A falta de água doce fazia com que as pessoas viessem pedir-me um copo de água para beber, ou para regar alguma coisa. A Maria Grande, que era a prostituta negra da zona, tinha um arbusto e pedia-me um bocadinho de água para regá-lo. Claro que aquilo nunca mais cresceu, porque o calor era insuportável. Fui madrinha de uma criança lá, o Manel. Quando regressei da Ilha do Sal, voltei para o meu curso de Medicina, até parar novamente em 1974, porque achava que a Revolução era mais importante. A minha empregada, depois do 25 de Abril, a apanhou o avião das Forças Armadas e veio ter comigo. A independência era algo desconhecido para ela. Mandou vir os filhos, pelo que, a certa altura, tinha cerca de 14 pessoas a viver em minha casa.
O movimento das mulheres
Um dia, quando já estava novamente no Partido, na luta estudantil, um funcionário clandestino convidou-me para uma reunião de mulheres que se ia realizar pela primeira vez, na expectativa de se criar um movimento. Eu tive a postura típica de sentir que não tinha nada a ver com aquilo, que não fazia sentido ser só de mulheres. Desliguei, e ele percebeu que eu não estava interessada. Quando já tinha passado para a luta juvenil, houve uma reunião de Mulheres na casa da Sophia de Mello Breyner, à qual acabei por ir, por curiosidade. Comecei a fazer perguntas, a obter respostas, a questionar novamente, e senti que comecei a ter uma intervenção. Como me viram com uma postura pró-ativa, começaram a querer responsabilizar-me. Fiquei naquele dilema chato de já ter dado os meus “bitaites” e de ser mais difícil virar as costas. Dei comigo a fazer algumas cedências e acabei por ficar envolvidíssima na luta das mulheres. Ainda assim, o meu envolvimento era na perspetiva de que as mulheres eram parte integrante da luta revolucionária e um elemento a mobilizar. O meu envolvimento não passou, à partida, por achar que as mulheres tinham quaisquer reivindicações ou problemas próprios, ou porque o movimento revolucionário não fosse de algum modo capaz de resolver. Não tinha ainda a ideia da resistência do movimento revolucionário a algumas reivindicações, a algumas posturas. Para mim, acabar com as injustiças, as desigualdades e discriminações era inerente ao movimento revolucionário.
Comecei a participar nas reuniões do Movimento Democrático de Mulheres (MDM) e deixo o movimento juvenil. O meu grande crescimento, do ponto de vista político, e do ponto de vista humano, foi, de facto, no movimento das mulheres. As mulheres com quem começo a comunicar contam-me, mesmo off the record, que eram espancadas. Eu própria, que tinha vivido a minha experiência, mas que não tinha tirado conclusões dela, começo a apreender este lado da realidade das mulheres, que só tinha uma possibilidade de ser alterada: se as mulheres agarrassem, nas suas próprias mãos, o seu próprio destino e a sua própria vida. Não há dúvida que tinham de ser as mulheres a fazer essa luta.
Fui candidata do MDP/CDE em 1973 pelas mulheres. Em 1969 o MDM também já lá estava, fazíamos parte da comissão das mulheres.
Há uma polémica sobre a data exata em que surgiu o MDM. O facto de ser um movimento semiclandestino faz com que se torne mais difícil definir o momento da sua fundação. Criaram-se no MDP/CDE comissões de mulheres e, a certa altura, essas comissões decidiram autonomizar-se e criar o MDM. No que respeita a este tempo de concretização, não há um momento muito claro. As comissões de mulheres começaram, naturalmente, a sentir necessidade de se integrar, mas o momento em que elas se assumiram como MDM não está bem definido.
De qualquer forma, esta questão não é historicamente muito importante, porque, de facto, estamos a viver num período de fascismo e há uma altura em que a comissão de mulheres cria uma dinâmica em que ela própria impõe a existência de um movimento e assume-se como movimento, mas não vem dizer cá para fora “hoje iniciámos um movimento”.
Na fundação do MDM estivemos várias mulheres de todo o país, estudantes, operárias, professoras, donas de casa e reuníamos muitas vezes clandestinamente num ginásio de uma amiga nossa a Graça Mexia. Era um grupo com mulheres muito diversas e de diferentes estratos sociais. Tínhamos núcleos em Coimbra, em Aveiro, no Porto, em Setúbal… Com a dinâmica do MDP/CDE e a dinâmica das comissões de mulheres, o MDM começou a criar o seu próprio espaço, e começámos a fazer encontros nacionais. O Movimento ganhou, portanto, uma dinâmica nacional. Até ao 25 de Abril, fazíamos reuniões, tínhamos panfletos e cartazes, material que distribuíamos. Houve uma cena caricata. Havia uma farmácia que era de uma amiga nossa, a Lídia. Um dia ela ligou-me a dizer que recebeu mil e tal aspirinas e que não podia ter tantas aspirinas ali. A conversa dela era um absurdo de regras de segurança. Não se calava com as aspirinas e era mais do que evidente que eram bombas explosivas da forma como ela as descreviam.
Luísa Amorim num encontro de amigas com Lena Neves e Lena Pato.
Algumas das mulheres que integravam o MDM tinham sido empurradas pelos maridos para o Movimento como se achassem que elas ainda não tinham o estatuto para serem membros do Partido. Aquilo era quase como uma creche política onde elas faziam formação. E tem, de facto, muita piada ver algumas destas mulheres a crescer e a conseguir deitar cá para fora a sua realidade. Às vezes, era uma descoberta espantosa para mim tomar consciência de como o mundo era contraditório, mesmo entre homens que se diziam revolucionários. Foi uma escola de saber, de profundidade como pessoa, como ser humano. E foi uma escola onde aprendi a solidariedade. Uma solidariedade ainda mais vincada do que uma solidariedade de partido. Conheci muitas mulheres que foram torturadas, muitas mulheres que tinham histórias de vida que não eram conhecidas, que me falavam das suas histórias do quotidiano, de uma crueldade terrível, de como tinham tido de se separar dos filhos, porque eles só podiam ficar nas casas clandestinas até determinada idade… Havia ali todo um mundo que era de uma desumanidade imensa.
Eu tinha, concomitantemente, tarefas nas estruturas do Partido ligadas às mulheres, mas, no fundo, era porta-voz da luta unitária. Na comissão de mulheres comunistas a minha principal dinâmica era levantar questões ou desbloquear problemas que eu tinha na luta das mulheres unitárias: tentar dissolver resistências em relação à luta pelo aborto, à discussão sobre se éramos ou não feministas. Este era um espaço que, além do espaço exterior da conquista dos direitos das mulheres, era preciso conquistar dentro do próprio PCP, ou seja, levá-lo a aderir e conquistá-lo para a luta pelos direitos das mulheres. Não foi uma luta fácil. À distância, apercebo-me que tínhamos uma grande vantagem: o facto de sermos jovens, muito convictas, muito cheias de alegria de viver. Tínhamos um movimento que era o Movimento Democrático de Mulheres e depois tínhamos o MDG, esse clandestino, só conhecido de um grupo restrito do secretariado, que era aquilo que não éramos mas achávamos que devíamos subverter: o Movimento Democrático das Galdérias.
Muitas vezes, tínhamos de dormir no chão na sede do MDM, recebíamos uma Valentina Tereshkova, por exemplo, logo a seguir ao 25 de Abril, e não percebíamos nada de protocolo. Apanhámos toda a revolução e toda a transformação do país perfeitamente atrasado. Lembro-me de irmos no meu carro reunir para o Algarve e para o Alentejo, cheias de panfletos, e chegarmos lá e as mulheres com quem nos íamos reunir eram todas analfabetas. Era um outro olhar para o mundo, era descobrir outras realidades. Costumo dizer que grande parte das minhas qualidades como médica de família ganhei-as na luta das mulheres. Foi aí que percebi o que é uma perspetiva sistémica. Mais tarde, aprendi o que era uma leitura sistémica da doença, mas eu já sabia como é que era natural que aquelas mulheres pudessem adoecer, como é que tinha de as abordar, do ponto de vista do seu sofrimento, enquadrando-as na sua realidade e história de vida. Existiam histórias de mulheres que eram completamente inimagináveis.
Um dia, no MDM, uma mulher, cuja filha estava para casar, veio perguntar-me sobre uma situação que tinha acontecido com ela. Tinha estado num colégio interno e a tia arranjou-lhe um senhor, mais velho, para ela casar. Ficou grávida, e, a certa altura, a tia chamou-a para uma consulta na médica. Foram para casa, o marido pôs uma série de almofadas na cama e disse-lhe para pôr o rabo em cima das almofadas. Depois aleijou-a muito. E ela perguntava-me o que é que aconteceu. “Tu estavas virgem, apesar de teres engravidado, ele não teve uma relação de penetração completa”. Tive de lhe explicar tudo. E estas histórias não estão contadas, este levantamento do que foram os quotidianos das mulheres, dos dramas que elas viveram, dos silêncios e dos mistérios que elas não resolveram não está feito. Eu sentia que cada vez mais aquilo era um terreno absolutamente essencial.
O 25 de Abril e o decréscimo da Revolução
No dia 25 de Abril, recebi um telefonema de madrugada e fui imediatamente para a rua, onde encontrei uma série de camaradas meus. Resolvemos logo ir fazer uma reunião para emitir um comunicado do MDP/CDE a saudar o 25 de Abril. Eu e outro camarada fomos à Emissora Nacional levar o primeiro comunicado do MDP-CDE a saudar o Movimento das Forças Armadas e o 25 de Abril De nervoso, estatelámos logo o carro pelo caminho, em Campo de Ourique. Mas lá conseguimos entregar o documento.
Aquando da chegada do Álvaro Cunhal a Portugal, Luísa Amorim fez a intervenção de saudação à sua chegada, em cima de um chaimite, em nome do MDP-CDE.
Depois do 25 de Abril, fui durante vários anos dirigente do MDM e, de 1974 a 1979, fui funcionária do PCP. Fui também vice-presidente da Federação Democrática Internacional das Mulheres (FDIM). Esse processo também foi muito interessante. Descobri a fase em que estavam as mulheres no mundo, mesmo as dos partidos socialistas. Começar uma reunião a pensar que elas vão dar muitas achegas e depois perceber que afinal percebiam menos da questão do que nós. Depois tentar que, através do respeito que elas tinham pela luta revolucionária em Portugal, aceitassem coisas que, à partida, recusariam. Era outra dinâmica de transformação.
Entretanto, há uma altura, em 1979, em que comecei a aperceber-me de que há um decréscimo da Revolução, que a luta revolucionária já não tem a mesma força. E sinto que, do ponto de vista do MDM, temos potencialidades enormes. Já tínhamos conseguido ter a revista Mulheres mas as dificuldades para conseguir coisas básicas, como papel, eram enormes. E ressentíamo-nos com a falta de quadros e com a falta de disponibilidade das mulheres que não eram funcionárias.
Eu, que tinha interrompido o meu curso em 74, quando estava no quarto ano de Medicina, porque achava que a Revolução era muito mais importante, voltei a estudar, contra a opinião de vários dirigentes do Partido. Para a minha decisão contribuiu muito também o facto de ter uma filha com um problema grave de saúde, uma doença crónica autoimune. Eu precisava de saber o que se estava a passar. Acabei o curso, fiz o estágio, e lá consegui um lugar.

Posteriormente, fui convidada para ir para a Assembleia da República (AR) como deputada, pelas mulheres. Impus algumas condições, como assumir-me como feminista, e consegui que o Álvaro cedesse, talvez porque ele pensasse que aquilo ia ficar entre nós. Em 1987, fui eleita e o mandato para mim acabou por ser uma experiência que não tem nada a ver com o resto da minha vida. Tudo até ali tinha sido uma escola de aprendizagem, um processo de complementaridade minha e dos outros, de encontro com os outros e de reforço em mim de uma luta que era perfeitamente clara e transparente. Já na AR estávamos em minoria, e a direita em maioria. Depois, a AR não tinha nada a ver com a luta das mulheres. A luta das mulheres era um processo em que todas nós estávamos envolvidas, a competição não era o que marcava, todas nós sobrevivíamos encostando-nos umas às outras, para conseguir levar a luta avante. Ali era tudo mais complicado, as pessoas contavam o tempo que tinham para a primeira intervenção e qual era a ordem das intervenções. Comecei a achar que aquilo não era o que mais me interessava. Nesse período, começaram a haver grandes problemas já ao nível do PCP. Enquanto no MDM tinha sido muito claro para mim que a luta das mulheres tinha um espaço perfeitamente claro, mesmo a luta das mulheres no PCP, comecei a sentir-me cada vez mais afastada de algumas posturas do Partido. Comecei a atingir um limiar de desagrado. Pedi para sair da AR antes do final do mandato. Tive sempre a preocupação de, nas minhas decisões, ter a certeza que a decisão era minha, que controlava a minha decisão. Estava habituada a tomar decisões individuais, pelo que não me era difícil dizer “não” sozinha. As posições começaram a extremar-se, pediram-me para me aguentar até ao fim do mandato, porque já tinha havido cisões.
Realizou-se uma Conferência de Mulheres do Partido que teve grandes problemas. Existiram votações na conferência das mulheres, em que eu aviso que é a última vez que vou votar contra a minha consciência. Disse-o diretamente ao Álvaro, mas penso que ele não acreditou.
Depois disso, fui nomeada como delegada para o X Congresso do Partido, de 01 a 4 de dezembro de 1988, no Palácio de Cristal, no Porto. Fiquei na mesa da presidência. Avisei-os que ia votar pela minha consciência, e foi o que fiz. Foi uma experiência muito violenta para mim, sendo eu uma lutadora pela liberdade na minha vida individual. Ao levantar-me naquela grande bancada, a votar contra o estatuto e o programa, e com o auditório todo a olhar para mim - um auditório que normalmente me reconhecia e estimava - tremiam-me as pernas. Fiz mais de 40 propostas de alteração, foram todas rejeitadas. Queria ter a certeza de que não havia espaço para mudança. Só falei à porta fechada, porque ainda estava numa altura em que achava que tudo era para ser dito dentro do Partido. Quando saí, percebi que nunca mais na minha vida iria ser violentada na minha liberdade individual ao ponto de, para falar o que sentia, me tremerem as pernas. Comuniquei ao Partido que isto não voltava a acontecer e que me estava a sentir muito afastada. Tive a consciência de que falhava muito a democracia interna no PCP, e que toda aquela estrutura piramidal tinha muito que se lhe dissesse. E com tudo o que passava, inclusive a nível dos países socialistas, era a altura em que todos nós tínhamos a obrigação de nos questionarmos.
Nessa fase, fui convidada para participar no colóquio, no âmbito do MDP/CDE, com o tema “Que perspetivas para a esquerda nesta viragem de século?”. O meu nome foi anunciado nos jornais e o PCP chamou-me. Eu disse que a decisão estava tomada, e que eu não deixaria de ir. De qualquer forma, fiquei fula porque o meu nome foi anunciado no jornal sem ninguém me avisar. Só tínhamos tido uma primeira conversa em que me mostrei recetiva, mas nada tinha ficado fechado. Fiquei tão irritada que não fui à reunião, mas mantive a minha posição face ao Partido, dizendo que iria. Fui convocada para outra reunião para me afastarem de todas as funções que então desempenhava. Disse-lhes que, se enfrentava retaliações por tentar discutir as coisas dentro no Partido, então teria de fazê-lo na praça pública. Aceitei dar uma entrevista num jornal em que denunciei o que estava a acontecer. Após 28 anos de militância no partido, saí do PCP.
Luísa Amorim com as amigas Lena Pato e Lena Neves numa manifestação do 25 de Abril.
Em 2008, demiti-me de todos os cargos de direção do MDM, porque achei que aquele espaço também estava muito enfeudado. Do ponto de vista das mulheres, tive a solidariedade silenciosa. Percebi que cada pessoa tem o seu timing. São processos muito violentos, muito dolorosos, cada pessoa encontra o tempo e o espaço para o seu luto. E as mulheres têm uma postura intrinsecamente emocional, não só racional, mas também emocional. Nestas decisões, são muito vulneráveis aos cortes. Eu tive de fazer a minha travessia, sendo que, no meio deste processo, também me tinha divorciado. Voltei para a Medicina, à qual me agarrei, e que me permitiu continuar a mergulhar no mundo das mulheres, e voltei para o meu papel de cidadã do mundo.
Hoje em dia, não faço parte de nenhum partido. Fui convidada por vários partidos mas recusei, ainda que continue a achar que os partidos são essenciais.
No fundo, acho que estou zangada com o facto de ser tão difícil conseguir dar a volta. Ou seja, é tão difícil mudar mentalidades, mas é tão fácil voltar ao ponto de origem das discussões. E estas foram tão difíceis, levaram tanto tempo a desbravar. Eu era muito uma mulher de exterior e agora virei muito uma mulher de interior, em que não me apetece nada ter palco, fiquei farta de palco. Também nos apercebemos de que a realidade adquire uma coloração em cima do palco que não é a mesma quando saímos de lá. O colorido torna-se um bocadinho mais esbatido, mais cinzento, tem mais sombras. A humanidade é mesmo isso, a mudança de mentalidades é terrível. O maravilhoso que teve a Revolução, e que nos faz aprender, e nos faz também desconfiar e põe-nos alerta, é que, nos períodos de esperança e de confiança, o melhor das pessoas vem ao de cima. E nos períodos de luta pela sobrevivência, o pior das pessoas vem ao de cima. É um alerta que nos faz pensar como é que surgem os genocídios, os campos de concentração, o silêncio dos que estão à volta e não viram nada nem sabem o que é que se está a passar. Vejamos o que se está a passar no mundo, em que forças de extrema-direita estão a crescer. Quanto mais os tempos são de dificuldades, mais eles conseguem crescer e encontrar interlocutores entre os oprimidos.
Luísa Amorim - Médica (especialista em Medicina Geral e Familiar). Trabalhou como médica no Centro de Saúde Penha França ( Lisboa) e como Directora no Centro de Saúde Luz Soriano (Lisboa).
Estudou Medicina na Faculdade de Medicina de Lisboa.
Estudou História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Estudou Psicossomática no ISPA.
Andou no Secundário no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho.
Foi Vice presidente da Federação Internacional de Mulheres (FDIM).
Em 1988, dirigiu a delegação da FDIM que participou na Conferência Internacional dedicada à importância da opinião pública mundial na solução dos conflitos regionais, em Cabul, Afganistão, tendo participada em encontros de negociação com guerrilheiros da montanha.
Em 1985, integrou a delegação internacional pela Paz, contra todas as bases militares no mundo, que incluía dirigentes políticos e religiosos de diferentes sectores e países que foram recebidos pelo Papa e outros figuras eminentes de outra religiões e diferentes chefes de Estado (Islândia, Suécia, Dinamarca, Grécia, Itália e Vaticano, Chipre, Malta).
Convidada do PCUS ao XXVII Congresso de 1986, em Moscovo, presidido por Mikhail Gorbachev.
Fundadora e Dirigente do MDM até 2008, quando se demitiu de todos os cargos de Direção.