Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.
Nasci em Lisboa e vivi a minha infância no Bairro da Madre de Deus. Era um bairro social, daqueles mandados construir pelo Estado Novo no final dos anos trinta e que, em princípio, se destinava a realojar os pobrezinhos que se atascavam na lama dos bairros de lata circundantes. Só que depois, na realidade, estes bairros sociais acabavam por ser ocupados por residentes oriundos da pequena burguesia, na sua maioria funcionários públicos. Na escola primária que eu frequentava, o Ateneu da Madre de Deus, andavam também as garotas dos bairros de lata, eram nossas companheiras de carteira. Sujas, esfarrapadas e descalças, de uma extrema pobreza, fartavam-se de apanhar das professoras, pois eram más alunas e a maior parte desistia da escola. Assistir a esta realidade era muito chocante e creio que isso contribuiu, ainda que de forma difusa, para a minha tomada de consciência das desigualdades e injustiças sociais.
Dado que só tinha irmãs e a escola era só para meninas, já que os sexos estavam separados, acabei por passar a minha infância e adolescência num universo muito feminino.
Uma imagem idealizada de Moçambique
O meu pai era engenheiro da Missão Geográfica de Moçambique e passava sempre seis meses em Lisboa, connosco, e os outros seis meses em Moçambique. Até que, tinha eu oitos anos, os meus pais decidiram que iríamos todos para Moçambique durante uns anos, até que a minha irmã mais velha tivesse idade para ir para a Faculdade. E assim embarcámos no navio “Pátria”, numa viagem longa de 20 dias, até Lourenço Marques (actual Maputo). Essa é uma memória muito forte que eu guardo.
Na altura eu tinha uma imagem muito idealizada de Moçambique, que nos era transmitida pelo meu pai, através das cartas, das fotografias e dos filmes que nos trazia – sobre animais selvagens, rios imensos, misteriosos rituais indígenas, pacíficas aldeias de palhotas, uma fauna e uma flora exóticas. A geografia de Moçambique era-me mais familiar, ou tão familiar, quanto a geografia de Portugal, mesmo sem lá ter ainda vivido, dado que o meu pai, quando estava em Lisboa, nos mostrava os mapas que construía e nós íamos seguindo atentamente os seus percursos no interior da colónia (“província ultramarina”, como então se dizia).
O confronto com a realidade, em Lourenço Marques, foi chocante: era violenta a segregação racial que existia naquela sociedade colonial dos anos cinquenta. Em Moçambique, a influência do apartheid da África do Sul era então muito forte. Lembro-me de letreiros a avisar “Entrada proibida a pretos e a cães”. E as senhoras brancas, quando se zangavam com os criados negros, levavam-nos à Administração para serem açoitados. Eu era ainda criança, mas quando ouvia estes conversas, no meio dos chás e dos bolinhos, ficava aflita. Também os meus pais ficavam consternados. O meu pai era um democrata e tinha com os trabalhadores africanos uma relação muito próxima, muito afectuosa. Como geógrafo, trabalhava nas zonas mais recônditas de Moçambique, nas zonas de fronteira, onde por vezes era o primeiro homem branco a aparecer. Os seus acompanhantes, cerca de uma centena de africanos por cada engenheiro, vinham todos os anos das aldeias onde viviam com as suas famílias, para trabalhar na Missão, permanecendo com eles durante longos meses, no mato. Guiavam os camiões e os jipes, ajudavam no transporte dos materiais necessários, dos instrumentos científicos, das armas para a caça e dos víveres indispensáveis à manutenção da expedição, ao longo dos meses que durava a campanha. Também ajudavam a montar e a desmontar as torres metálicas para as observações astronómicas e geodésicas, tal como a construir as pontes e as jangadas rudimentares, quando necessário. Assim, estabelecia-se entre eles uma profunda relação de interajuda e amizade.
O meu pai transmitia-nos essas realidades através dos filmes e das fotografias, pelos quais era apaixonado. Às vezes, nas férias, quando não estava muito longe de Lourenço Marques, nós íamos ter com ele ao acampamento e ficávamos lá no mato. Esse era o lado esplendoroso de África, que correspondia àquilo que eu tinha imaginado: os jacarés e os hipopótamos preguiçosos a refrescarem-se nos grandes rios, as zebras e as gazelas saltando à frente do nosso jipe, as girafas olhando-nos interrogativas, os búfalos pachorrentos, os lagartos e os pássaros de cores esplêndidas…uma natureza enigmática, sumptuosa!
Mas a vida na cidade, com a sua estrutura colonial rígida, era desagradável. Penso que as situações de racismo e de injustiça social flagrantes, que presenciei em Lourenço Marques, terão contribuído fortemente para a minha consciência política, apesar de eu ser ainda uma criança na altura.
O D. Filipa de Lencastre: um Liceu fascista?
Entretanto, morreu a minha irmã Guida com uma leucemia e acabámos por ficar menos tempo em Moçambique do que o planeado. A minha mãe ficou traumatizada com África e quis regressar a Portugal. Nessa altura, já eu estava no 1º ano do Liceu Salazar, em Lourenço Marques. Era um Liceu com um ensino relativamente aberto, onde as professoras eram simpáticas, próximas das alunas. Não era frequentado por negros, nem por mestiços, que eu me lembre. Mas era um ambiente alegre, arejado.
Quando vim para o Liceu D. Filipa de Lencastre, em Lisboa, foi um choque. Era um Liceu onde se fazia sentir o fascismo, no quotidiano. Não quer dizer que todas as professoras fossem fascistas, o que não é verdade. Mas as regras, a disciplina, a relação professora/ aluna (porque tudo aquilo se passava só entre mulheres), eram de uma rigidez feroz. Não podíamos ter a saia acima do joelho, tínhamos de usar sempre as batas e se o cinto estava fora do lugar, éramos castigadas. Era proibido correr nos corredores e se fossemos apanhadas a correr tínhamos falta de castigo. Lembro-me de ir a correr no intervalo, para apanhar uma mesa de ping pong (eram poucas mesas), e de ser apanhada pela temível professora de Física, a chefe da Mocidade Portuguesa Feminina (organização para fascista). Fechou-me no seu gabinete e obrigou-me a rezar, não me deixando ir às aulas, obrigando-me a ter faltas, estando eu lá no Liceu. Eram coisas absurdas, fascistóides! Lembro-me também que, quando a União Indiana ocupou Goa, Damão e Diu (as colónias portuguesas na Índia), foi decretado luto no Liceu e as professoras exigiam que rezássemos, o que eu recusei fazer e me valeu mais uma falta de castigo. Não me lembro de uma única festa ou passeio dados no quadro do Liceu Filipa. Só da passagem de um filme, a “Sissi”, com a Romy Schneider, onde o beijo final foi devidamente cortado…
Tornei-me assim uma miúda rebelde, mesmo antes de aderir a qualquer movimento político antifascista. Aquelas regras absurdas revoltavam-me. Era boa aluna, mas tinha sempre mau comportamento, faltas de castigo, suspensões. É claro que estes ambientes muito repressivos geram também solidariedades muito fortes. Na altura, nós, as alunas, fartávamo-nos de rir e de pregar partidas. A verdade é que tenho ainda muito boas amigas dessa época.
Não tenho dúvidas de que o regime autoritário do Liceu Filipa contribuiu para a minha tomada de consciência da natureza ditatorial do regime fascista.
O ambiente em casa era diferente
Em casa o ambiente era diferente. O meu pai era democrata, um católico progressista, digamos assim. A minha mãe também era crítica do regime, embora tivesse muito receio que nós nos envolvêssemos em política, pois vinha de uma família republicana que tinha tido problemas complicados. Um seu primo, de quem era muito amiga, o António Cabrita, combatente da Guerra Civil de Espanha, tinha sido assassinado pelos franquistas, ainda muito jovem.
Do lado paterno, havia a figura tutelar do meu tio avô, o Almirante Mendes Cabeçadas, herói da I República: foi ele quem, ao comando do navio “Adamastor”, deu ordem para serem lançados os tiros sobre a bandeira da Monarquia, fazendo-a cair, no Palácio das Necessidades, dando início à revolução republicana. Mais tarde, em 1926, também liderou o Movimento do 28 de Maio, é verdade, com Gomes da Costa e Carmona. No entanto, rapidamente se passou a opor ao regime do Estado Novo, a partir de 1933. Foi mesmo, até à sua morte, em 1965, sempre um activo opositor de Salazar. Era um republicano entusiasta, maçon e democrata, liderando vários movimentos antifascistas ao longo da sua vida, tendo aliás sido preso e compulsivamente afastado da Armada. Tinha uma tertúlia com um grupo de amigos, que se reuniam todas as tardes na pastelaria “Mexicana”, ali na Praça de Londres, todos maçons e anti salazaristas convictos: Dias Amado, Fernando Vale, Adão e Silva, Cunha Leal, etc…Todos eles tinham participado em revoluções e conspirações várias contra o regime e tinham estado presos. Como a “Mexicana” ficava mesmo ao lado do Liceu Filipa eu e as minhas amigas, ainda muito miúdas, com 11 ou 12 anos, adorávamos lá ir e ficar a ouvi-los relatar as suas vidas aventurosas. Para nós, era exaltante! Daí que, de uma maneira ou de outra, todas nós nos tornámos, mais tarde, militantes antifascistas.
Este convívio com o meu tio avô e com os velhos republicanos, seus amigos, foi também, não tenho dúvidas, uma influência importante na minha tomada de consciência política.
Aos quinze anos queria era fazer a revolução
A campanha do General Humberto Delgado, em 1958, também foi um período de forte consciencialização política. Eu, na altura, era ainda miúda, mas entusiasmei-me imenso. Bem como com a tomada do navio Santa Maria, em janeiro de 1961, pelo Henrique Galvão que era, aliás, amigo do meu tio Almirante. Ver um pirata que apanha um barco e vai por aí fora, desafiando Salazar e o regime, é claro que, para miúdas adolescentes, é o máximo!
Penso que estes são, de facto, momentos marcantes na minha evolução e tomada de consciência política.
Depois veio a crise académica de 1962. Tinha catorze anos na altura, ainda estava no Liceu Filipa, e ainda não estava integrada em nenhum movimento político. Mas fugia do Liceu e ia, com as minhas amigas, assistir aos grandes plenários que tinham lugar na Cidade Universitária. Tirávamos as batas e metíamo-las dentro das pastas, para os universitários não perceberem que nós ainda estávamos ainda no Liceu, com medo que nos mandassem embora. Ouvíamos os discursos contestatários dos estudantes e ficávamos em êxtase…
No ano lectivo seguinte saí do Liceu Filipa e fui para o D. Leonor. Aí, com 15 anos, integrei a Pró Associação dos Liceus. Pouco depois, fui contactada por uma colega para aderir ao PCP (Partido Comunista) que, na altura, era o único Partido antifascista existente organizado - clandestino, claro. A FAP (Frente de Acção Popular) ainda não tinha sido criada, começou pouco depois. Tenho consciência (agora) que eu teria aderido a qualquer movimento antifascista que me tivesse aparecido, fosse anarquista, socialista, ou simplesmente republicano. Naquela altura, queria era fazer a revolução, queria que o regime caísse. Tínhamos uma célula do PCP no Liceu D. Leonor, em que uma das miúdas tinha 16 anos (a “controleira”), outra tinha 14 e ainda uma tinha 13 anos…além de mim, que tinha 15! Trabalhávamos na Pró Associação dos Liceus, que não tinha sede nem existência legal, pelo que reuníamos no Técnico. Organizávamos actividades culturais e de convívio, de solidariedade para com os estudantes vítimas de repressão, etc. Fazíamos um Jornal, “Liceus Unidos”. No que diz respeito à actividade partidária, clandestina, distribuíamos “Àvantes” às escondidas e discutíamos diversas matérias de caracter político – procurávamos ler Marx e Lenine, mas sem grande sucesso, era um bocado aborrecido. Claro que ter actividades clandestinas, um pseudónimo e a sensação de que participávamos activamente na construção de um mundo melhor, era exaltante para as adolescentes que nós éramos.
Pior do que ser preso, era falar
Na sequência da prisão do “controleiro” clandestino do sector estudantil do PCP, Nuno Álvares Pereira, no final de 1964, deu-se uma vaga de prisões. Ele passou-se para a PIDE e entregou os nomes todos da estrutura partidária de Lisboa. Isto não era suposto acontecer, para isso tínhamos os pseudónimos, mas existiram certamente falhas conspirativas. Quase todos os estudantes presos, sob tortura, falaram e/ou confirmaram aquilo que já era sabido da PIDE. Foi muito deprimente. Eu tive sorte, talvez porque não tinha grandes responsabilidades e a minha “controleira”, a Antonieta Coelho, foi das poucas que não falou, não abriu a boca. Era horrível ser preso, mas pior do que ser preso, era falar na PIDE. E confirmar o que já se sabia era visto também como traição, segundo a óptica do PCP, que era muito exigente e assim tinha de ser, nas condições de luta muito duras da época.
Eu e a minha irmã Graça, que também estava no Partido Comunista na altura, acordávamos todos os dias de madrugada, à espera que a PIDE chegasse para nos prender. Líamos, obsessivamente, o panfleto “Se fores preso, camarada”, no qual estavam definidas, pelo PC, quais as atitudes correctas a tomar face à polícia política, em caso de prisão e de tortura. Tentávamos estar preparadas.
Reorganizar e continuar a luta
Isto não nos impediu, apesar da gravidade da situação, de continuarmos a militar no Partido Comunista. Os poucos que tínhamos restado em liberdade procurávamos reorganizar-nos e continuar a luta. Eu e a minha irmã tínhamos dois PIDEs à porta que nos seguiam sempre que saíamos de casa. Tinham, aliás, mesmo caras de PIDEs, gordurosos, com caspa (risos). Esta presença dos PIDEs era uma constante na sociedade portuguesa da época, já quando assistíamos às conversas dos velhos republicanos na “Mexicana”, lá estavam eles sentados, a ouvir. Agora já tínhamos estatuto para ter o nosso próprio PIDE (Risos). Era muito complicado ir às reuniões partidárias, às escondidas dos nossos pais e dos PIDEs, ao mesmo tempo. Ajudávamo-nos uma à outra nessa tarefa quase impossível. Não sei como conseguíamos. Tínhamos constatado que os nossos PIDEs (que deviam ser um bocado ranhosos) só conseguiam seguir-nos a pé ou de autocarro, não tinham dinheiro para andar de táxi. Assim, nós saíamos de autocarro, com o PIDE à perna, mas depois saltávamos de repente do autocarro e apanhávamos um táxi, depois mudávamos de táxi. Tudo isto era dispendioso e nós não tínhamos dinheiro. Era muito difícil gerir estas situações, quer do lado doméstico (tínhamos de sair pela janela, à noite para os meus pais não verem), quer do lado pidesco, bem mais perigoso. Mas lá conseguíamos, nem sei bem como, ajudando-nos uma à outra.
A minha mãe encontrou uma vez um molho de Àvantes e, assustada, foi queimá-los na sanita, o que causou um cheiro horrível. A vizinha do lado, a D: Raquel, veio logo perguntar o que é que se passava: “Que cheirete é esse que vem da sua casa?” Os jornais eram feitos de um papel especial que se podia dissolver e engolir, em caso de necessidade, e fazia um cheiro estranho ao ser queimado…
Entretanto, os nossos amigos estavam quase todos presos e os nossos namorados (meu e da minha irmã Graça) tinham desaparecido, na clandestinidade. Foi um período muito duro. Durante uma grande manifestação de solidariedade para com os estudantes presos, na Cantina Universitária, eu fui presa, tal como muitos outros, umas centenas. Fomos interrogados um a um pelo Reitor da Universidade, até às tantas da madrugada e alguns fomos levados para o Governo Civil e para Caxias nas carrinhas da polícia. Fui, na altura, considerada “Instigadora dos acontecimentos” (estava escrito no meu processo da PIDE), o que era absurdo, pois não passava de uma miúda dos Liceus. Acharam que, não sendo universitária, não tinha justificação nenhuma para estar ali na Cantina. Em Caxias, fiquei presa na mesma cela das minhas camaradas do PCP: a Antonieta, que não tinha falado sob tortura e as outras, que tinham falado, com quem a Antonieta não falava. Era uma situação bastante complicada. Passado algum tempo, dois ou três dias, fui conduzida à sede da PIDE, na António Maria Cardoso. Pensei que ia para os interrogatórios, enquanto seguia por aqueles sinistros corredores. E, de repente, abriu-se a porta da rua e eu estava no Chiado, ao ar livre, ao sol, no meio das pessoas normais. Não queria acreditar!! Desci até ao Rossio e apanhei o autocarro para casa. O meu pai tinha estado muito tempo no hospital devido a um grave ataque cardíaco e estávamos todos com muito medo da reacção dele à minha prisão. Mas vá lá, aguentou-se.
A Universidade Livre de Bruxelas: um mundo outro
Na sequência destes acontecimentos tive um processo disciplinar e fui expulsa de todas as escolas do país por um tempo, na altura, indeterminado. Não me deixavam fazer as duas disciplinas que me faltavam do 7º ano (o correspondente ao nosso actual 12º). Quando me apresentava a exame, punham-me na rua. Os Liceus tinham ordem para não me deixarem fazer os exames. Vemos assim a subordinação das escolas à PIDE.
Tinha então, pensei, duas hipóteses: ou prosseguia a luta antifascista na clandestinidade, com o meu namorado, ou ia para o estrangeiro, continuar os meus estudos. Mesmo no caso de optar pela clandestinidade dava jeito ir lá para fora primeiro, era uma maneira de desaparecer sem dar nas vistas. Acabei por concluir, mais tarde, que não tinha vocação para viver na clandestinidade, que não era uma escolha minha, era uma escolha do meu namorado e que não teria, nessas circunstâncias, a oportunidade de desenvolver uma actividade politicamente interessante.
Saí de Portugal ainda legalmente, no Sud Express, mas sempre com receio de ser presa na fronteira. Só respirei de alívio em Hendaye/França, dado que a travessia da Espanha franquista (tão longa!) era também problemática. Os meus pais deram-me autorização para sair, pois perceberam que o meu futuro em Portugal era a prisão. Fiz a viagem num comboio atafulhado de emigrantes Portugueses que, na altura, saíam em massa do país, muitos dos quais ilegalmente (“a salto”), dada a imensa pobreza que se vivia nos campos. Foi, de certo modo, uma viagem iniciática, que me pôs em contacto com um mundo que eu desconhecia, o da miséria dos camponeses do Norte do país.
Tinha 17 anos e ia fazer exames de aptidão à Universidade Livre de Bruxelas. Era um número sem fim de exames, tive pouco tempo para me preparar, mas acabei por ter notas muito boas, o que me permitia inscrever-me no curso que eu quisesse. Pensei “Afinal a preparação dos Liceus em Portugal não era assim tão má, era exigente”. Optei pelas Ciências Sociais, curso que em Portugal não existia e que na ULB tinha excelentes professores. Arranjei emprego no restaurante da Universidade, à hora do almoço e à hora do jantar, o que me permitia ir às aulas. A questão do alojamento não foi fácil: fiquei inicialmente no único Albergue de Juventude existente em Bruxelas, perto da Gare do Norte, o bas-fond da cidade, antro de prostituição, com as mulheres expostas nas montras, e imigrantes árabes. Para uma miúda que vinha de uma família católica e burguesa, foi tudo um pouco estranho. Mas, curiosamente, não me lembro de ter ficado assustada, pelo contrário, aquilo divertia-me. E o simples facto de não ter os PIDES à perna, dava-me um imenso alívio, uma intensa sensação de liberdade. Ainda vivi depois dois meses num quartinho minúsculo, sem janelas, situado numa garagem, até que consegui arranjar um quarto, com uma colega, na Cité Universitaire. E foi muito interessante, porque entrei em contacto e tornei-me amiga de muitas raparigas corajosas e inteligentes, vindas dos diferentes continentes, sobretudo da América Latina e de África.
Entrar na Universidade Livre de Bruxelas foi também uma experiência exaltante. Por todos o lado havia bancadas com livros, panfletos e bandeiras das mais diversas e opostas opções ideológicas: socialistas, anarquistas, comunistas, liberais, maoistas, dos movimentos pacifistas contra a guerra do Vietname, pela libertação dos povos colonizados, de apoio à revolução cubana, aos movimentos de defesa dos direitos cívicos, do Black Power…ao som da Internacional e das canções de protesto francesas e anglo saxónicas. Para alguém que, como eu, vinha de um país submetido a uma longa ditadura, no qual toda a diversidade de pensamento era excluída e ferozmente perseguida, foi uma revelação, uma maravilha!
Fui muito bem recebida na ULB. Tratava-se de uma Universidade maçónica, liberal, aberta e cosmopolita, que adoptava os princípios básicos do Libre Examen: “La Pensée ne doit jamais se soumettre, ni à un dogme, ni à une réligion, ni à une idéologie”. Era uma Universidade prestigiada na Europa e no Mundo, que tinha sido criada em 1834, por oposição à Universidade Católica de Lovaina. O ambiente que aí se respirava era extremamente estimulante, sobretudo para uma miúda curiosa como eu era, na época.
Em Bruxelas voltei a ter actividades políticas
Quando cheguei a Bruxelas, em 1965, ainda só havia um refugiado político português, que se debatia com problemas psiquiátricos graves. Mas, pouco depois, começaram a chegar mais refugiados políticos, desertores e refractatários (da guerra colonial) e começámos a organizar-nos. Voltei assim a ter actividades dentro do Partido Comunista Português e não só. Fundámos a Associação dos Portugueses Emigrados na Bélgica (APEB), que ainda hoje existe e é uma importante associação, muito activa. Estavam justamente a começar a chegar muitos emigrantes à Bélgica, sobretudo vindos do Alentejo. Dávamos aulas de alfabetização e de francês, fazíamos sessões de teatro, de cinema, organizávamos colóquios. Trabalhava, de forma discreta, no jornal do Secretariado dos Encontros dos Estudantes Portugueses no Estrangeiro (SEEPE), que procurava incentivar a comunicação entre os estudantes portugueses politicamente activos na Europa Ocidental e também na Europa de Leste (Moscovo, Praga, Bucareste…). E estava também em ligação com a Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN), sediada em Argel. Não pedi o estatuto de refugiada política da ONU, na altura, que me teria dado jeito, inclusive por causa da bolsa de estudos, porque quis preservar a possibilidade de vir a Portugal legalmente o que, com o estatuto de refugiada, seria completamente impossível. Assim, tendo os cuidados conspirativos necessários, podia contribuir para estabelecer contactos entre a oposição do interior e a do exterior. Claro que nunca sabia o que poderia acontecer na fronteira, pois poderia sempre ser presa. Isso aconteceu uma vez, de facto, mas como não trazia nada de comprometedor comigo, puseram-me em liberdade.
O facto de ter estado, em nome do SEEPE, num Encontro da Imprensa Estudantil na Alemanha de Leste e na Checoslováquia trouxe-me problemas complicados na Bélgica. Comecei a ser levada pela polícia dos estrangeiros belga, para interrogatórios. Ameaçavam-me de expulsão, ora que eu já estava então no 3º ano da Faculdade. E expulsão para onde? Em Portugal a PIDE receber-me.ia certamente de braços abertos. Acusavam-me de espionagem para os países de Leste!! Os belgas sempre tiveram essa mania, de ver espiões por todo o lado, como pequeno país que são, um Estado tampão entre grandes Impérios. Já Baudelaire se refere a essa paranóia belga…E não podemos esquecer que Bruxelas era a sede da NATO, na altura. Eu bem tinha tido o cuidado de ir com papéis falsos aos Países de Leste, mas a verdade é que a polícia belga estava ao corrente. Fiquei com a sensação que as polícias dos diferentes países comunicavam entre si: polícia belga dos estrangeiros, PIDE e até a Interpol, pois nos meus processos na Torre to Tombo constam pedidos de informação à PIDE sobre mim da Interpol, precisamente nessa época, em que eu estava a ser interrogada em Bruxelas. Para evitar ser expulsa da Bélgica, acabei por ter de ficar escondida uns tempos, na floresta de Soignes, em casa de Pierre Verstaeten, Professor de Filosofia na ULB (e redactor dos “Temps Modernes” com Jean Paul Sartre). O meu namorado da altura, Jean Claude Garot, que era director de um jornal de esquerda bastante conhecido, o “Le Point”, contactou deputados socialistas influentes (Guy Cudell, entre outros) e estes conseguiram que a polícia dos estrangeiros me deixasse em paz. Mas foi um período conturbado.
Viver o Maio de 68 foi apaixonante
Entretanto deu-se o Maio de 68 em Paris e eu, entusiasmada, saltei logo para Paris. Fui com Jean Claude Garot e Pierre Verstraeten, o filósofo marxista, amigo de Sartre. Aí vivemos a noite das barricadas da Rue Gay Lussac, as longas noites de debates na Sorbonne ocupada, as discussões com os operários da Renault, em Boulogne Billancourt, a ocupação do Odéon, a greve geral.
Quanto a mim, se a revolta estudantil de 1962, em Lisboa, foi o meu despertar para a política, Maio de 68, em Paris, foi, de facto, a “minha” revolução – ou, segundo a expressão de Daniel Cohn Bendit, “a revolução que eu tanto amei”. Tinha então 20 anos e estava convicta de que íamos mudar o mundo, numa subversão total, económica, social, política, cultural, sexual. Tudo parecia possível nessas noites e dias loucos de barricadas, ocupações das Universidades, das Fábricas, de Greve Geral. O capitalismo era o grande inimigo a abater, mas também a sociedade de consumo, as hierarquias, toda e qualquer forma de autoridade, tudo o que cheirava a mofo, até mesmo os partidos políticos clássicos.
Recordo hoje esse período como um sonho, feito de esperança, entusiasmo, alegria e a convicção de que a revolução estava em marcha e com ela um mundo novo, de justiça, solidariedade e fraternidade.
Regressei a Bruxelas, onde os acontecimentos de Paris se repercutiam, de forma bem mais atenuada. Fez-se, no entanto, a ocupação da Universidade, durante um período agitado, com plenários animados de estudantes e alguns professores simpatizantes do movimento contestatário. Em Bruxelas, o Maio de 68 ficou limitado à Universidade, onde a ocupação durou até aos exames. Algumas alterações importantes tiveram lugar, a nível do ensino, sobretudo nas faculdades mais conservadoras, como a de Direito, onde as relações professor/aluno se caracterizavam por algum autoritarismo. Na minha Faculdade, de Ciências Políticas, Económicas e Sociais, onde as relações professor/aluno já eram de proximidade e de confiança, não se verificaram mudanças significativas.
Também como consequência do Maio de 68, as relações entre os sexos tornaram-se mais igualitárias e passou a ser permitida a entrada dos rapazes na Cité Universitaire das raparigas, o que alterou bastante o nosso quotidiano.
A ruptura com o PCP e os movimentos feministas e ecologistas
O Partido Comunista Francês não se mostrou muito entusiasta em relação ao Maio de 68, tendo participado um bocado a reboque, levado pela força dos acontecimentos. Mostrou-se, aliás, muito reticente, no início, e crítico face à revolta estudantil. O mesmo se verificou com o PCP, o que provocou um certo afastamento da minha parte. Quando se deu a invasão da Checoslováquia pelas tropas russas e o PCP apoiou a invasão, decidi que não podia continuar como militante de um Partido que tomava posições das quais eu discordava convictamente.
Foi uma ruptura difícil para mim, pois implicava o afastamento das pessoas com quem tinha tido fortes relações de amizade, ao longo dos anos de exílio. Implicava também abandonar as minhas actividades com os emigrantes e toda uma militância que dava sentido à minha vida. Mas foi necessário.
Os movimentos feministas tinham, entretanto, começado a afirmar-se e eu passei a colaborar com o jornal “Le Menstruel” e com o Front de Libération de la Femme”. Organizávamos colóquios e fazíamos cartazes extremamente provocatórios. Estava, nessa altura, muito próxima dos anarquistas da Internacional Situacionista. Vivia em comunidades urbanas com preocupações ecologistas. Integrei um grupo de teatro, “O Prego na Língua”, que actuava no Théatre Poème e do qual faziam parte, entre outros, o João Brites, que veio a criar, mais tarde, em Lisboa, o teatro “O Bando” e o João Luís, que fundou o “Pé de Vento”, no Porto, já depois do 25 de Abril.
Entrar em Portugal no 1º de Maio foi um delírio
Quando ouvi, pela primeira vez, falar do que estava a acontecer em Lisboa no 25 de Abril, eu estava num bistrot de exilados, em Bruxelas e a primeira reacção destes foi de incredulidade e de desconfiança. De início, ninguém sabia o que é que aquilo ia dar. Quem seriam aqueles militares, alguns deles com um ar sinistro, que constituíam a Junta de Salvação Nacional? É certo que o primeiro comunicado transmitido pelo MFA prometia eleições livres e democracia, mas seria mesmo assim? Que confiança poderia merecer um homem como o General Spínola, herói da guerra colonial e que tinha estado em Estalinegrado, do lado dos nazis, na 2 ª Guerra Mundial?
Mas as imagens transmitidas pela televisão belga, de todo um povo nas ruas, em delírio, exigindo paz, liberdade e democracia, encantaram-me. Fiquei comovida e parti no primeiro avião que partiu de Bruxelas, carregado de exilados, com destino a Lisboa. O avião fez escala em Madrid onde nos foi comunicado que não podíamos prosseguir viagem, dado que o aeroporto de Lisboa estava fechado. Depois de algumas horas de conversações agitadas, as autoridades espanholas acordaram connosco deixar-nos prosseguir a viagem de camioneta, com a condição de não mostrar a bandeira portuguesa, não cantar qualquer canção, revolucionária ou outra, e não estabelecer qualquer contacto com a população espanhola.
Era véspera do 1º de Maio e a Espanha franquista estava em pânico. Um golpe de estado em Portugal, antifascista e democrático, punha em risco o difícil equilíbrio da ditadura de Franco. E assim saímos de Madrid de camioneta, durante a noite, proibidos de abrir a boca, rodeados de tropas e guardas civis, fortemente armados e nervosos, através de uma Espanha expectante, em direcção a Lisboa.
A chegada à fronteira portuguesa, exactamente no dia 1º de Maio, foi um delírio. Aí, as canções revolucionárias, tanto tempo reprimidas, irromperam, vulcânicas. As lágrimas corriam nos rostos marcados pelos longos exílios, pela prisão, pela tortura, pela saudade. Mas eram lágrimas de alegria e de uma esperança imensa. Atravessar Portugal nesse dia foi uma festa e, em Lisboa, esperava-nos uma cidade inundada de luz e de cravos vermelhos.
Não foi fácil readaptar-me ao país, reencontrar um lugar no Portugal de Abril, após tantos anos de ausência e durante um período tão importante da minha formação. Depois de sair do PCP não me senti motivada para aderir a mais nenhum partido, nem mesmo no Portugal democrático. Mas tive a maior simpatia pelo PREC, porque era comovente o vento de esperança que sacudia as populações de Norte a Sul do país, a tomada de consciência da sua dignidade e dos seus direitos.
Hoje, considero que foi um privilégio ter vivido o Maio de 68 em Paris, tal como foi um privilégio ter vivido o 25 de Abril (o período que se lhe seguiu) em Portugal. Foram períodos fascinantes da História.
Helena Cabeçadas nasceu em Lisboa, em 1947. Frequentou os Liceus Salazar, em Moçambique, na então Lourenço Marques, e D. Filipa de Lencastre e Rainha D. Leonor, em Lisboa. Na sequência das revoltas estudantis contra o regime salazarista foi expulsa e impedida de terminar o último ano do Liceu. Exilou-se, com 17 anos, na Bélgica, onde se licenciou em Ciências Sociais e fez uma pós-graduação em Psicossociologia do Trabalho, na Universidade Livre de Bruxelas. Posteriormente, fez o Mestrado em Antropologia Urbana, na Universidade de Lisboa. A sua tese tem como título “Rituais Terapêuticos e Toxicodependências – uma abordagem antropológica”. Em Portugal, leccionou em diversos estabelecimentos de Ensino Superior: Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Instituto Superior do Serviço Social, Universidade Lusófona e Universidade Lusíada. Em 1977, integrou o quadro do Centro de Estudos e Profilaxia da droga. Já em 1982, obteve uma bolsa Fulbright para Filadélfia, nos EUA, onde trabalhou no Philadelphia Psychiatric Center (Drug Treatment Program) e frequentou Seminários de Cross Cultural Communication na Universidade de Pennsylvania. Em 1984 foi requisitada pelo Governo de Macau para desempenhar tarefas de estudo e investigação na área da toxicodependência e saúde mental. Aí foi também professora na Escola Superior de Enfermagem e investigadora na Universidade Chinesa de Hong Kong. Coordenou projectos europeus sobre a temática das Drogas e Imigração. Foi redactora da Revista Europeia “Ítaca”. É autora de vídeos e de dezenas de artigos científicos sobre a temática das drogas e cultura, prevenção das toxicodependências, comunidades terapêuticas e comunicação inter-cultural. Apresentou Conferências, nestas áreas, em Filadélfia, Washington, Hong Kong, Macau, Tokyo, Lisboa, Porto, Amesterdão, Copenhaga, Berlim, Oslo, Stirling, Paris e Montréal. É membro do European Working Group on Drugs Oriented Research (EWODOR) e da European Federation of Therapeutic Communities (EFTC). Publicou, em 2014, o livro “Bruxelas, cidade de exílios”, em 2015, o livro “Moçambique. Sonhos, Vivências e Memórias”, e, em 2018, o livro “Filadélfia a Preto e Branco”. Todos eles foram editados pela Chiado Editora.