Pelas nove horas da manhã, já algumas dezenas de pessoas se reúnem na ponta do Jardim Mário Soares, em Lisboa. Os carros que chegam e estacionam têm todos o mesmo dístico no canto superior esquerdo: TVDE. A eles se juntam algumas motorizadas, com condutores descaracterizados, mas que no seu quotidiano carregam à costa sacos de estafeta.
É aí, no Campo Grande, que se fazem os primeiros discursos. “Hoje em dia é insustentável viver como TVDE”, diz Vítor Soares, presidente da Associação Nacional de Movimento TVDE. “Há muitos colegas a trabalhar 14 e 16 horas”.
Os motoristas do transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados, em conjunto com os estafetas de entregas, trabalham através das plataformas e recebem o que as plataformas determinam naquele momento. “Há um valor que as plataformas atribuem por viagem, no qual não são contabilizados os custos do operador, e 25% desse valor é para eles”, explica Vítor. “Às vezes estamos a entrar em dumping, porque estamos a prestar um serviço no qual o custo é superior à rentabilidade”.
É por isso que, no caderno de reivindicações que é distribuído entre os trabalhadores, se pede o “fim à ganância humana de se andarem a comer uns aos outros por viagens, até chegarem à sua própria desgraça”. Essa “ganância humana”, que resulta no dumping, é na verdade o mecanismo que as plataformas usam para manter os preços das viagens baixo, colocando motoristas em competição com outros motoristas.
Com essa constatação em mente, a principal reivindicação é o ajuste das tarifas, para que possam receber mais por cada viagem. Essa proposta é também apoiada pelos estafetas nas suas entregas. “Há quatro ou cinco anos que estamos sem ajuste”, lamenta Marcelo Borges, dos Estafetas em Luta. Mas os estafetas têm outra dificuldade acrescida: não têm atendimento presencial das empresas das plataformas. Ou seja, não conseguem resolver os seus problemas profissionais de forma ágil.

“Os TVDE já estão mais avançados que os estafetas, porque já têm a Lei Uber, mas que foi feita à medida das plataformas”, explica Marcelo. “Os estafetas infelizmente ainda nem lei têm. Precisa-se de regulamentar isto com urgência”.
À medida que mais gente se junta, os trabalhadores das plataformas começam a preparar a sua saída. São “algumas centenas”, segundo a polícia presente no local, que vão desfilar em automóveis e motorizadas até à Assembleia da República. Um após outro, vão enchendo a Avenida do Campo Grande para começar o seu percurso, com as bandeiras de TVDE à janela. Um dos carros traz de fora uma pancarta onde se lê “Comissão das aplicações de 25% para 15%”.
Trabalho
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Rumo à Assembleia da República, contra a revisão da lei
O destino da Assembleia da República é simbólico, porque está em jogo uma revisão da lei dos TVDE pelo Partido Social Democrata e pela Iniciativa Liberal que virá “desregular ainda mais o setor”, segundo Vítor Soares.
O presidente da associação explica que “os principais problemas são a vinda do setor dos táxis para o TVDE” e que “a Iniciativa Liberal também fez uma proposta que vem contraria a regulação do setor, que é qualquer pessoa poder trabalhar sem existir responsabilidade da empresa”.
A associação propõe que exista um regulador, que defina um valor mínimo de sustentabilidade no setor e que as plataformas respeitem esse valor. “O regulador tem uma função, que é vir criar um equilíbrio”, diz.

Alexandra Reis, motorista de TVDE que tem acompanhado as alterações à legislação, diz que a lei “está completamente desatualizada”. Face à entrada dos táxis, a trabalhadora diz que “o setor já está sobrecarregado” e que na verdade os TVDE estão a lutar para “parar as licenças para já”.
“As viagens estão a metade do preço do que estavam há dois anos, com os combustíveis e os seguros todos a subir. Estamos a trabalhar tipo escravos, ou melhor, escravos liberais”, lamenta. Fernando Silva, outro motorista de TVDE também presente na manifestação, concorda.
“É tipo escravo. É tudo mau”, diz. “Quem faz a lei são as plataformas, porque se a plataforma disser que vai fechar a operação em Portugal, o governo fica com 30.000 desempregados de um dia para o outro”.
A coordenadora do Bloco de Esquerda esteve presente na manifestação, junto à Assembleia da República, e foi convidada pelos manifestantes a tomar a palavra. Mariana Mortágua aproveitou a oportunidade para reiterar as palavras dos trabalhadores, dizendo que a lei funciona "para beneficiar as plataformas".

"É uma lei que é feita sem transparência. Ninguém sabe como é que os preços são definidos, porque é que são X num dia e Y noutro. Ninguém sabe porque é que as pessoas num dia não tiram sequer dinheiro para viver", disse.
A dirigente bloquista frisou que a única empresa que ganha é a plataforma, que "não deixa um único tostão em Portugal, nem um tostão nos trabalhadores", mas que "deixa tudo a pagar imposto nas ilhas Caimão e num offshore".
"Se queremos proteger Portugal e a nossa economia, temos de ter regras nestas atividades", disse Mariana Mortágua, salientando a necessidade de uma tarifa mínima.