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A “morte social” na Dinamarca

A ministra dinamarquesa da Imigração quer tornar insuportáveis as condições para os requerentes de asilo. E a avaliar pela minha recente visita ao Centro de Detenção de Sjælsmark, nos arredores de Copenhaga, ela está a consegui-lo. Artigo de Nicholas Mirzoeff.
Centro de detenção de requerentes de asilo de Sjælsmark, na Dinamarca. Imagem Google Street View.

Quando se pensa na Dinamarca imagina-se facilmente uma mistura de design de meados do século XX, hygge e pessoas a andar de bicicleta. Mas como os espetadores da série televisiva The Bridge sabem, é também um país manchado pela xenofobia institucional. A Dinamarca tem uma rede de campos e centros de detenção para requerentes de asilo. E a sua legislação estabeleceu guetos, ou seja, áreas urbanas com populações de “imigrantes não-ocidentais”.

Mas enquanto algo está mesmo podre no estado da Dinamarca, isso está longe de ser uma exceção na política ocidental. O que se está a passar neste antigo bastião do liberalismo é a normalização da hostilidade branca à imigração. A Dinamarca está a desenvolver as táticas da Austrália e de Israel para criar uma nova estratégia: fazer o refugiado desaparecer da sociedade.

A ministra dinamarquesa da Imigração, Inger Støjberg, afirmou que pretende tornar insuportáveis as condições para as pessoas no sistema de asilo. E a avaliar pela minha recente visita ao Centro de Detenção de Sjælsmark, nos arredores de Copenhaga, ela está a consegui-lo. 

Sjælsmark tem pessoas que viram rejeitados os seus requerimentos de asilo mas não podem ser devolvidas aos seus países de origem (são tecnicamente “requerentes de asilo rejeitados não-deportáveis”, de acordo com a lei da UE). Este subúrbio fino não tem lojas nem outras comodidades para os detidos. É convenientemente longe da cidade, a quase duas horas de distância através de dois autocarros e um comboio. De carro, fica apenas a 30 minutos, mas ninguém tem um carro.

Sjælsmark é gerido pelos serviços prisionais dinamarqueses. Os visitantes só podem entrar quando convidados por um residente. A minha visita foi organizada pelo Trampoline House, um centro de apoio a refugiados (onde fiz curadoria de uma exposição chamada “Decolonizing Appearance”, em exibição até março de 2019).

Lily tem trinta anos e nasceu num território que era na Etiópia e agora fica na Eritreia; ela e o seu filho de sete anos, Liam, fizeram-me uma visita guiada (os seus nomes foram alterados a seu pedido). O acesso ao centro faz-se através de um imenso portão, que é sempre fechado às dez da noite, mesmo para quem lá vive. As famílias vivem nas instalações de um antigo quartel militar. Os residentes chamam-lhe “campo”, e recentemente ficou rodeado por vedações com três metros de altura. Embora os residentes possam sair quando querem, o objetivo é de criar o efeito de encarceramento.

Os requerentes de asilo rejeitado encontram-se num limbo legal. Alguns deles são apátridas e privados daquilo a que Hannah Arendt chamava “o direito a ter direitos”. A sua cidadania é negada pelo seu país “natal” e a UE recusa-se a reconhecê-los como refugiados, e assim não têm qualquer estatuto legal. Como tantos outros, Lily viu negada autorização para ficar na Dinamarca porque as suas impressões digitais foram colhidas na Grécia. De acordo com a Convenção de Dublin, o primeiro país a recolher as impressões digitais do requerente de asilo fica responsável pelo processamento do pedido.

Se os colonos dinamarqueses quiseram em tempos obter mão de obra dos seus colonizados nas Caraíbas, África e Ásia, agora só querem que os seus descendentes se vão embora. Para que isso aconteça, os residentes de Sjælsmark não podem trabalhar ou pedir apoios sociais. Não podem cozinhar nem ter mobília (para além de uma cama, uma mesa e cadeiras duras), nem decorar as suas casas. Não são permitidas carpetes nem tapetes. Não há televisão nem internet. Os habitantes vivem em quartos frios e com tetos muito altos. Apesar de não terem cometido nenhum crime, os requerentes de asilo estão a ser castigados.

Quando entrei no seu quarto, Lily aqueceu água para fazer chá ou café instantâneo e pôs na mesa um prato de papel com bolachas de água e sal. Foi desolador: não porque ela tivesse pouco para oferecer, mas porque era evidente que a intenção do estado dinamarquês era negar-lhe o impulso humano da hospitalidade.

Como tantos prisioneiros, os residentes estão preocupados acima de tudo com a comida. Os serviços prisionais fornecem alimentação confecionada noutro sítio e reaquecida. Foi-me descrita por toda a gente como não-comestível. As condições do refeitório são tão mas que o acesso é vedado aos visitantes. Ninguém leva a comida às pessoas que estão doentes ou grávidas e que não podem andar até ao refeitório. Não há escolha quanto ao regime alimentar. No sistema prisional dinamarquês e nos campos de acolhimento por onde passam inicialmente os requerentes de asilo é permitido cozinhar. Aqui não.

O sociólogo jamaicano Orlando Patterson criou a expressão “morte social” para se referir à escravatura. Mas aplica-se da mesma forma ao que o estado dinamarquês está a tentar fazer aos requerentes de asilo. Um visitante palestiniano ficou tão chocado com o que viu ao ponto de dizer que aquelas condições eram piores do que na prisão israelita onde tinha estado preso.

Esta condição de morte social é alargada até às mais de cem crianças que vivem neste campo. Elas não podem brincar na relva ou noutro sítio ao ar livre, com exceção de um pequeno recreio. Não são autorizados a frequentar escolas dinamarquesas mas são obrigadas a ir a uma espécie de jardim de infância em instalações geridas pela Cruz Vermelha, independentemente da sua idade. A única atividade existente é colorir.

Por isso Lily chama à situação destes refugiados “tortura”. Não é tortura física com vista a sacar informação; é tortura psicológica feita para humilhar e levar à ação. Lily e outros habitantes pensaram que o estado queria que eles passassem à clandestinidade ou “fugissem” — o que significaria uma inevitável rejeição do asilo noutro lado. Embora ambas as ações fossem ilegais, cumpririam a missão estatal de fazer os refugiados desaparecerem.

A partir desta morte social, mesmo assim os refugiados organizaram-se. Fazem manifestações semanais de protesto contra as condições a que estão sujeitos, incluindo greves de fome. Num destes comícios em Copenhaga a 5 de dezembro, Lily foi falar: “Temos o direito a procurar asilo na Dinamarca e também temos o direito a viver uma vida normal até que sejam encontradas soluções para os nossos casos”. A Dinamarca tenta negar-lhes esses direitos. Mais precisamente, nega que eles existam.

Está em preparação uma lei para atenuar o pior destas condições. Vai precisar de 50 mil assinaturas num país de 5 milhões. E obrigaria à mesma os requerentes de asilo a passarem  mais dois anos em Sjælsmark, o que é inaceitável: a únbica forma de acabar com a morte social é a abolição destes campos.

Em resposta a estes protestos, o governo da Dinamarca deu passos ainda mais agressivos. Adotando a estratégia australiana de deter e colocar refugiados num offshore em Nauru, pretende agora alojar requerentes a quem foi negado asilo na ilha remota de Lindhol. A Dinamarca está a refinar a sua tortura psicológica, sujeitando os requerentes de asilo ao isolamento e à exclusão.

De uma perspetiva norte-americana, a brutalidade apalhaçada de Trump é má que chegue, mas os europeus estão a conceber algo sem dúvida pior; abolir por completo os centros de detenção é a única saída.


Artigo publicado em The Nation. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

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