O porta-voz da Presidência argentina, Manuel Adorni, anunciou na terça-feira que o governo deu início às medidas para acabar com a política iniciada pelo ex-Presidente Alberto Fernández de usar linguagem inclusiva em documentos oficiais do Estado. Assim, "não se vai poder usar a letra e, a arroba, o x e vai evitar-se a desnecessária inclusão do feminino em todos os documentos da administração pública", disse o responsável do gabinete presidencial, citado pelo La Jornada, acrescentando que o Ministério da Defesa já tinha tomado essa decisão na véspera para os seus documentos, proibindo palavras como "soldada", "generala", "caba" ou termos que se referem a pessoas não-binárias como "soldadxs" ou "soldades". O ministro Luis Petri prometeu castigos para quem não cumprir a ordem. Curiosamente, a nomeação das patentes no feminino não era utilizada devido à oposição das oficiais, que afirmavam não se sentir identificadas com ela.
Após a irrupção do movimento feminista "Ni Una Menos" em 2015, a linguagem inclusiva ganhou presença primeiro entre adolescentes e jovens e depois na academia. Não sendo obrigatória, foi adotada pelo executivo argentino de forma pioneira na região e era usada também pelo próprio chefe de Estado. "Vamos pouco a pouco tornando possível o que parecia impossível. O ideal será quando todos e todas sejamos todes e ninguém se importe com o sexo das pessoas", afirmou Fernández, que em 2021 anunciou a implementação do bilhete de identidade para pessoas não-binárias.
Na semana passada, o governo de Milei anunciou o desmantelamento do Instituto Nacional contra a Discriminação, por entender que era uma despesa desnecessária.
Além da censura à linguagem inclusiva, Adorni acrescentou também que ia acabar com "a perspetiva de género" nos documentos oficiais, sem esclarecer como o faria na prática.
Sobre o abandono da "perspetiva de género", o juiz Rodrigo Morabito disse ao Pagina 12 que sem ela "poderão existir condenações injustas a mulheres que se defendem de episódios de violência de género e exige aos juizes e juízas que façam uma análise probatória profunda das provas com essa perspetiva em cada caso concreto". Para o juiz, "a perspetiva de género é muito mais que a linguagem inclusiva. Não se pode confundir perspetiva com linguagem".
"De liberais só têm a comunhão com o mercado"
Do lado do movimento feminista, as novas ordens de Milei foram recebidas com repúdio. A historiadora e socióloga Dora Barrancos diz mesmo que os que estão agora no poder são "falsos liberais, são fascistas", pois "de liberalismo só têm a comunhão com o mercado". Ela considera a proibição da linguagem inclusiva "um retrocesso em matéria de liberdades fundamentais" e lembra o esforço do movimento para avançar com a chamada "Lei Micaela" que obriga a formação em género e violência de género por parte dos funcionários da administração pública do país.
"Todos os dias há uma novidade quanto ao retrocesso de direitos", prosseguiu Barrancos, que tem esperança que os Estados provinciais não irão acabar com a prática que vêm seguindo.
A filósofa feminista Diana Maffía também contesta o argumento de Milei que o masculino genérico contempla o coletivo humano. "Isso não é gramática, aprende-se com o uso da linguagem", acrescenta, dando o exemplo da jovem que respondeu a um anúncio de emprego numa cadeia de gelatarias que pedia "empregados" e lhe responderam que era só para homens, o que deu origem a uma sentença do Tribunal Supremo por discriminação a condenar a empresa.
"Há muitas formas de tornar inclusiva a linguagem, não é só o uso do "e". Eu por exemplo prefiro manter a enunciação explícita do feminino (todas e todos) porque nos custou muito chegar a esse progresso e porque, como está à vista, qualquer direito pode ser eliminado de modo autoritário e ignorante sobre os direitos", concluiu Maffía.
Extrema-direita sul-americana em sintonia nas propostas que contrariam recomendações da ONU
O ataque à linguagem inclusiva continua a unir a extrema-direita sul-americana. Segundo o Pagina 12, durante a presidência de Bolsonaro foram apresentadas 34 propostas nesse sentido dirigidas às escolas em 14 dos 27 estados do país e também no Congresso federal. O "e", o "x" e a @ também foram proibidos pelas autoridades de educação do governo uruguaio e uma deputada do partido de extrema-direita Cabildo Abierto, que integra a coligação no poder, quer proibir a linguagem inclusiva em todo o Estado com uma formulação acusada de plágio de iniciativa semelhante apresentada em 2021 no Chile. O pioneiro da luta contra a linguagem inclusiva é o Paraguai, que em 2017 se tornou o primeiro país do mundo a proibi-la.
Estas iniciativas da extrema-direita surgem no sentido contrário às recomendações das Nações Unidas a defender que "a linguagem é um dos fatores chave que determinam as atividades culturais e sociais, [pelo que] empregar uma linguagem inclusiva quanto ao género é uma forma muito importante de promover a igualdade de género e combater os preconceitos de género".