Meritocracia? Não, os ricos não merecem a sua riqueza

14 de abril 2024 - 19:47

O capitalismo é construído sobre a ideia meritocrática de que todos recebem o que merecem do mercado. Isso não é verdade – a criação de riqueza é um processo fundamentalmente social e os ricos não têm o direito de acumular todos os recursos e poder. Por Tom Malleson.

PARTILHAR
Caricatura de Andrew Carnegie,1900. (Udo J. Keppler / Biblioteca do Congresso via Wikimedia Commons)
Caricatura de Andrew Carnegie,1900. (Udo J. Keppler / Biblioteca do Congresso via Wikimedia Commons)

Uma crença fundamental nas sociedades capitalistas é a noção de que os indivíduos merecem o rendimento que recebem do mercado: a sua conta bancária reflete o seu talento e esforços e, portanto, é sua por direito, e somente sua.

Uma investigação recente descobriu que 66% dos eleitores do partido republicano norte-americano acreditam que os ricos são ricos porque “trabalharam mais” do que outras pessoas, não por causa de outras vantagens na vida. Como disse o falecido ativista conservador Herman Cain: “Não culpes Wall Street. Não culpes os grandes bancos. Se não tens emprego e não és rico, culpa-te a ti próprio.”

Portanto, Bill Gates e Elon Musk realmente merecem as suas montanhas de riqueza (US$ 110 mil milhões e US$ 190 mil milhões, respetivamente), enquanto as pessoas com deficiência supostamente merecem os seus ganhos insignificantes de apenas 25.000 dólares em média por ano. Tais ideias de merecimento e mérito são a argamassa entre os tijolos da fundação de nossa sociedade. Os ricos realmente merecem os seus montes de lucros?

As origens ideológicas da meritocracia

A noção de que a desigualdade é justificada porque reflete o mérito individual é antiga. Começando nas décadas após a Revolução Francesa, quando os velhos bastiões do privilégio feudal estavam em decadência, uma elite em pânico temia que as massas pudessem usar os seus crescentes poderes democráticos para nivelar a riqueza. Pensadores conservadores começaram a organizar novas justificações para as suas riquezas. Em 1872, Émile Boutmy, o fundador da prestigiada universidade parisiense Sciences Po, expressou a crescente ansiedade da elite assim:

As classes que se dizem superiores só podem preservar a sua hegemonia política invocando a lei dos mais capazes. Porque os muros das suas prerrogativas e tradições estão a desmoronar, a maré democrática deve ser retida por um segundo baluarte feito de méritos brilhantes e úteis, de superioridade, cujo prestígio impõe obediência, de capacidades das quais seria loucura a sociedade se privar.

A crescente disciplina da economia forneceria grande parte da munição ideológica que a direita procurava desesperadamente. Em 1899, o economista John Bates Clark preocupava-se com o facto de os “trabalhadores” estarem a adotar cada vez mais a ideia socialista de que “são regularmente roubados do que produzem” e, portanto, “tornar-se-iam revolucionários”.

John Bates Clark. (Gunton’s Magazine, Vol. 19, 1900 via Wikimedia Commons)

Para neutralizar a terrível possibilidade de os seres humanos compartilharem os frutos do seu trabalho, Clark desenvolveu o que veio a ser conhecido como teoria da produtividade marginal. A sua principal afirmação era que um mercado competitivo distribuiria rendimento para cada “fator de produção” – cada trabalhador ou cada empresário – de acordo com a contribuição marginal de cada pessoa. O capitalismo poderia, assim, ser retratado não como um sistema explorador, mas profundamente moral: ele dá a cada pessoa precisamente o valor que ela criou.

Este xibolete meritocrático ainda tem uma procura profunda hoje. Quando, há uma década, os protestos do Occupy Wall Street eclodiram contra a desigualdade económica Greg Mankiw, presidente do Conselho de Assessores Económicos do presidente George W. Bush, publicou um artigo influente intitulado “Defender o 1%”. Ele repetiu o argumento de Clark de que os rendimentos do mercado, mesmo para os muito ricos, não são um problema porque simplesmente refletem o enorme valor que os ricos deram ao nosso bem-estar.

O problema de raiz da meritocracia

Os progressistas normalmente rejeitam o argumento meritocrático, apontando que a corrida económica é extremamente injusta. Algumas pessoas são abençoadas com herança privada, escolas de elite e redes familiares bem conectadas, enquanto outras são obstruídas a todo momento pela insegurança económica, sexismo e racismo. Como não há igualdade de oportunidades, a economia é um campo de jogo desigual e, portanto, os “vencedores” realmente não merecem o seu rendimento mais do que um boxista peso-pesado “mereceria” um prémio por derrotar um peso-pluma, ou um piloto da Lamborghini não “mereceria” a camisola amarela por ultrapassar os ciclistas na Volta à França. Estes argumentos progressistas estão corretos até onde vão. O problema é que eles não chegam nem perto de diagnosticar o que há de errado com a meritocracia.

O problema fundamental é que a economia convencional, assim como a cultura dominante, normalmente concebe a obtenção de um rendimento como se fôssemos Robinson Crusoes, produzindo a nossa própria propriedade privada com nada além do suor do nosso rosto, depois negociando propriedades recém-criadas com outras pessoas num mercado livre.

Isto é profundamente enganoso. A produção económica numa sociedade moderna nunca é um esforço individual. Ninguém produz nada sozinho. Toda a produção é, na sua raiz, um processo fundamentalmente social e colaborativo.

A contribuição muitas vezes ignorada – mas verdadeiramente vasta – do trabalho de outras pessoas é o que chamo de “subestrutura”. Considere-se um exemplo mundano: todos os dias, em todas as cidades do Norte Global, milhares de camiões vão e voltam carregando as nossas mercadorias. Cada um desses camiões pode transportar cerca de 35 mil toneladas e percorrer cerca de três mil quilómetros antes de precisar reabastecer o tanque. No entanto, esse feito estupendo não se deve apenas ao motorista do camião; é possível graças aos incontáveis quilómetros de estradas de betão, aos anos de trabalho que as construíram e às gerações de aprendizagem que desenvolveram o concreto; o mesmo acontece com os camiões, com o seu combustível e assim por diante.

Para se ter uma noção da potência deste único exemplo, podemos perguntar o que seria necessário para os seres humanos realizarem essa simples tarefa simplesmente carregando as mercadorias às costas. O que um motorista de camião pode realizar num único dia hoje levaria cerca de 2.700 anos para um indivíduo sem a nossa infraestrutura moderna.

Toda a produção depende dessa subestrutura – a combinação de infraestruturas, ativos físicos, instituições, leis, normas, conceitos intelectuais, apoio emocional e recursos naturais que fundamentam e permitem a produção.

O que impulsiona a economia

Comecemos a procurá-la e vê-la-emos em todos os lados:

A infraestrutura física (como estradas, pontes, ferrovias, sistemas de água, esgotos, redes elétricas e redes de telecomunicações) amplia a capacidade produtiva de qualquer indivíduo que participa na economia.

Trabalhadores no pilão sudoeste da Sydney Harbour Bridge, Sydney, Austrália, 1932. (Powerhouse Museum via Wikimedia Commons)

A infraestrutura político-jurídica do Estado fornece a estabilidade social e a previsibilidade necessárias para o bom funcionamento de qualquer mercado. Não existe um “mercado livre” literalmente. Todos os sistemas de mercado estão inseridos numa infraestrutura político-legal; são moldados e definidos por regras, regulamentos e instituições. Isto inclui um sistema de direitos de propriedade que define quem possui o quê, o que pode ser vendido e o que não pode, os tipos de negócios que podem operar (como corporações ou cooperativas de trabalhadores), os vários direitos dos empresários versus trabalhadores (os proprietários têm responsabilidade total ou limitada? Os trabalhadores têm direito de participar na governança do conselho de gestão da empresa?), os impostos que devem ser pagos pelas diferentes partes, uma força policial para fazer valer esses direitos e um sistema judicial para julgá-los.

Isto significa que o Estado e todos os vários trabalhadores que o administram e mantêm são “parceiros silenciosos” na produção de cada nova propriedade privada. Eles são os seus co-criadores.

Infraestrutura de conhecimento. Uma das principais fontes de prosperidade moderna (se não a mais importante) é o conhecimento coletivo acumulado que herdamos do passado. A maior parte da nossa riqueza moderna não pode ser atribuída ao esforço ou às decisões de investimento de indivíduos isolados, mas sim ao resultado de indivíduos que construiram a imensa infraestrutura de conhecimento que nos foi transmitida através de vastas redes de engenheiros, cientistas, teóricos, técnicos, professores, estudiosos, praticantes e assim por diante.

Infraestrutura de cuidado. Talvez o mais comummente negligenciado deste grupo, o cuidado é, entre outras coisas, a produção da capacidade humana. Nenhum de nós poderia andar, falar ou pensar se não fosse pelos nossos cuidadores. Isto é mais óbvio na primeira infância, mas persiste de forma mais subtil ao longo das nossas vidas, pois contamos com amigos, familiares e amantes. O cuidado é, portanto, a infraestrutura invisível do trabalho (principalmente feminino) que todos escalamos para alcançar os nossos objetivos.

Mesmo o próprio pai do liberalismo, Adam Smith, não seria capaz de andar, falar ou sentar-se ereto (muito menos produzir uma teoria económica) se não fosse por Margaret Douglas, a sua mãe (e a sua rede mais ampla de cuidados). Embora Smith desprezasse a “dependência”, ele era profundamente dependente da sua mãe, que cozinhava as suas refeições todos os dias e fornecia sustento emocional contínuo, permitindo que ele trabalhasse no livro – A Riqueza das Nações – que celebraria a independência económica.

O custo estimado da maternidade (em outras palavras, quanto alguém teria que pagar a outros para fazê-lo) é de aproximadamente 30% do PIB, um custo verdadeiramente gigantesco. No entanto, a verdadeira magnitude dos negócios privados é possivelmente ainda maior, já que, se literalmente não houvesse cuidado, nenhum negócio poderia funcionar. Se os trabalhadores (e consumidores) não fossem nutridos e socializados pelos seus cuidadores, estariam mortos ou extremamente debilitados. Vemos isso em raros casos trágicos como o de Genie – a criança de meados do século XX trancada pelo pai desde a idade de vinte meses até treze anos. O seu isolamento deixou-a gravemente incapacitada, incontinente e incapaz de falar ou fazer qualquer barulho além de um coaxar. Embora ela tenha passado por mais de quarenta anos de tentativas de reabilitação, continua a viver sob a custódia do Estado e, de acordo com relatórios recentes, ainda está sem falar e gravemente debilitada.

Ambiente natural. Os sistemas ecológicos são um componente vital da subestrutura na medida em que fornecem os pré-requisitos básicos para a própria vida. O meio ambiente é um suporte vital, um recipiente e um limite fixo para todo o sistema económico. Os recursos naturais – em particular os recursos energéticos (petróleo, gás, carvão, madeira, sol, vento, etc.) – fornecem o combustível básico para a economia.

Os nossos carros, casas, locais de trabalho – na verdade, grande parte da própria vida industrial complexa – só são possíveis porque são movidos por uma enorme herança natural de combustíveis fósseis. E se formos capazes de transformar as nossas economias para usar energia renovável, elas ainda serão alimentadas e sustentadas pelo imenso poder contido em vários recursos naturais.

A criação de riqueza é um processo social…

Os defensores da meritocracia adoram defender Bill Gates, Jeff Bezos ou Elon Musk, justificando a sua riqueza ao apontar que milhões de pessoas compram os seus produtos voluntária e ansiosamente.

Mas agora podemos ver a verdade da questão. Bill Gates, por exemplo, só conseguiu criar produtos da Microsoft com a ajuda de uma imensa subestrutura: uma ampla rede de pais e professores que o socializaram; uma comunidade segura; gerações de cientistas e engenheiros de computação que criaram o vasto conhecimento intelectual para ele construir (além dos inúmeros trabalhadores auxiliares e cuidadores que os apoiam); e uma infraestrutura político-jurídica que lhe fornece todos os tipos de direitos legais, como a “primazia do acionista” (permitindo-lhe apropriar-se da maior parte dos lucros criados por milhares de trabalhadores ao mesmo tempo que estes são privados de qualquer voz na governança da empresa) e talvez ainda mais importante neste caso, o privilégio dos direitos autorais.

Sem a proteção do copyright, os produtos da Microsoft seriam simplesmente compartilhados de graça e os lucros seriam reduzidos. O copyright é um monopólio do Estado, mas não há nada de natural nisso. Se fosse substituído pelo acesso de código aberto (um sistema indiscutivelmente mais eficiente) e associado a financiamento público e prémios para recompensar a inovação, o rendimento de Gates cairia a pique.

Bill Gates não é um gigante. É um ser humano normal, mas sentado numa cabine de operação, controlando uma grua gigante e poderosa que paira sobre todos nós.

O ponto essencial é o seguinte: a produtividade total de uma pessoa resulta, em pequena parte, de fatores pessoais (como o talento e o esforço), mas em grande parte dos fatores sociais a que se pode aceder. Estes não só são muito mais importantes em termos da produtividade total de cada um, como também são uma questão de sorte, o que beneficia dramaticamente uns em detrimento de outros, minando assim qualquer pretensão de merecimento. A subestrutura é de facto uma vasta herança social.

E assim pertence a todos nós

Imagine viver em sociedades simples de caçadores-coletores com pouco capital acumulado, tecnologia e estruturas legais. Toda o “rendimento” gerada nessas sociedades provém inteiramente dos talentos e esforços dos indivíduos que trabalham nessa sociedade. Tal rendimento, por outras palavras, pode ser considerado como completamente merecido.

Qual é o tamanho dessa “receita”? Angus Maddison estimou a subsistência em aproximadamente 810 dólares por pessoa por ano (em dólares de 2020); o Banco Mundial define “pobreza extrema” ou “pobreza absoluta” pela linha de pobreza internacional de 2,15 dólares por dia (em dólares de 2017), ou 783 dólares por ano. Portanto, vamos usar 800 dólares como uma estimativa aproximada e compará-la com o rendimento médio nos Estados Unidos hoje – 38.000 dólares – e o rendimento médio do 1% mais rico, que foi de aproximadamente 824.000 dólares (seria muito maior se incluíssemos a riqueza acumulada além do rendimento). Isto significa que 98% do rendimento do trabalhador mediano contemporâneo e impressionantes 99,9% do rendimento da percentagem superior não podem ser atribuídos ao esforço ou talento individual, mas, na verdade, devido à herança social fornecida pela subestrutura. Portanto, é totalmente desmerecido.

A visão meritocrática padrão do mérito é uma mentira e um engano. A produção moderna é um processo profundamente interdependente que envolve o trabalho de base e as instituições de base de grande parte da comunidade, bem como milhões de nossos ancestrais mortos há muito tempo.

A riqueza dos ricos não é merecida. É a nossa herança social. E temos todo o direito de recuperá-la.


Tom Malleson é professor associado no King's University College na Western University, Canadá e autor de "Against Inequality: The Practical and Ethical Case for Abolishing the Superrich".

Traduzido por Laira Vieira para a Jacobina a partir do original publicado pela Jacobin. Editado para português de Portugal.