Discurso em Peniche

Fernando Rosas: “Constitui um insulto agraciar Spínola com a Ordem da Liberdade”

28 de abril 2024 - 16:49

Durante a inauguração do Museu Nacional Resistência e Liberdade na Fortaleza de Peniche, o historiador lembrou o papel de António Spínola como chefe da organização terrorista MDLP e a oposição deste ao fim da polícia política e à libertação dos presos políticos.

porFernando Rosas

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Fernando Rosas
Foto de Miguel A. Lopes, Lusa.

Com a inauguração definitiva do Museu Nacional Resistência e Liberdade do Forte de Peniche, precisamente 50 anos após a libertação dos presos políticos que nele se encontravam pelas tropas do Movimento das Forças Armadas (MFA) sublevadas e pelo povo, convocamos uma dupla memória do 25 de Abril.

Convocamos a memória dos 2.626 presos políticos anti-fascistas que por aqui passaram desde o golpe militar de 28 de Maio de 1926 até à libertação a 27 de Abril de 1974, dois dias depois de triunfar o 25 de Abril e contra a vontade de António Spínola, presidente da Junta de Salvação Nacional (JSN), que se opôs à libertação dos antifascistas ligados à luta armada, até que triunfa a vontade dos presos e do povo que assediava a fortaleza, apoiada sem hesitações pelas forças sitiantes do MFA. Foi a primeira homenagem prestada à luta de milhares de antifascistas de todas as correntes políticas que por aqui passaram: republicanos reviralhistas, anarcossindicalistas, comunistas, católicos progressistas, maoistas, militantes da luta armada, membros do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Homens que arriscaram a liberdade, a vida, a profissão, a relação com a família para lutarem contra a ditadura fascista, contra o colonialismo e a guerra colonial, contra a exploração, a miséria e a desigualdade por uma vida digna. Essa é a memória histórica, decisiva, central que celebramos.

Mas há outra que gostaria de invocar. É a memória desse povo revolucionário e insurreto que logo a 25, 26 e 27 de Abril marchou por iniciativa própria contra a sede nacional da polícia política em Lisboa para acabar com ela, quando Spínola se preparava para continuar; sobre as instalações da Censura Prévia e as cadeias políticas onde, novamente contra a vontade do presidente da JSN, impôs a libertação incondicional de todos os presos políticos. Essa é a memória da Revolução a que o movimento militar do 25 de Abril deu lugar e que fez o país entrar numa nova época histórica. As revoluções nunca são neutras, vencem-se ou perdem-se a favor de certos valores e contra outros. Muito menos são uma espécie de sopa eclética onde por vezes surge a tentação de meter tudo e o seu contrário, esvaziando-as do seu significado histórico e neutralizando a sua atualidade transformadora.

É por isso que entendo como legítimo a indignação, a que me associo, contra a condecoração de António Spínola com a Ordem da Liberdade. Spínola foi o chefe do Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP) em 1975/76, organização fascista e subversiva, terrorista, responsável por inúmeros atentados bombistas, alguns deles com vítimas mortais, como o padre Max em 1976. Nunca respondeu por estas atividades criminosas. E constitui hoje um insulto agraciá-lo post mortem com a Ordem da Liberdade.

É por isso ainda que vejo como tentativa inquietante para subverter a memória e a História da Revolução de Abril a nomeação pelo atual Governo, e contra a opinião da grande maioria dos militares abrilistas, de uma comissão para, efetivamente, recentrar as Comemorações de Abril no 25 de Novembro, desvirtuando grosseiramente a sua natureza e significado histórico.

Assim sendo, termino lembrando que a Memória porque nos batemos não é um suspiro de nostalgia, uma saudade impotente, muito menos uma desistência. É um instrumento de defesa da democracia, da emancipação, da liberdade e da dignidade conquistadas. A democracia portuguesa corre neste momento talvez os maiores riscos da sua história. É com isso em vista que convocamos neste Museu Nacional a memória da luta antifascista e do anticolonialismo. Com os olhos no presente e no futuro. Sempre.

 


Peniche, 27 de Abril de 2024

Intervenção de Fernando Rosas durante a inauguração do Museu Nacional Resistência e Liberdade na Fortaleza de Peniche.

Fernando Rosas
Sobre o/a autor(a)

Fernando Rosas

Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda