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Melhor Representatividade, Melhor Democracia

Cabe à democracia, cabe-nos a nós, melhorar sempre que possível o sistema eleitoral para garantir que todas as pessoas se sintam representadas da forma mais equilibrada e simples possível. E já existem diversas formas de melhorar o sistema. Artigo de Pedro Celestino
Urna de voto Portugal - foto de António Cotrim/Lusa
Urna de voto Portugal - foto de António Cotrim/Lusa

Se o objectivo de uma democracia representativa é garantir a melhor hipótese a cada pessoa de ser representada na gestão da vida publica e social, seja legislativa ou governativa, então o sistema eleitoral deve reflectir essa mesma possibilidade devidamente equilibrada1.

Os sistemas eleitorais são definidos pelas suas regras, meios de eleição e atribuição de mandatos. Até aquelas que aparentam ser pequenas alterações transformam (e por vezes distorcem) todo o carácter democrático de um sistema eleitoral. Numa democracia representativa não basta votar, é preciso que o sistema de contagem e de atribuição de mandatos criem a devida correspondência ao que foi expresso na vontade popular.

No entanto, existe o interesse em reduzir a democracia representativa em Portugal, nomeadamente dificultando a capacidade a partidos como o Bloco ou os pequenos partidos de eleger e representar a população. São diversas as propostas para a redução do número de deputados e/ou para a criação de círculos uninominais, estas propostas vêm desde a direita anti-democrática do Chega, ao PSD2 e até ao PS3, o que representaria uma possível confortável maioria para impor uma drástica redução na representação democrática.

Alguns destes sistemas propostos e chamados de democráticos, são os mesmos que permitem a quem tem menos votos governar um país. Basta olhar para os EUA que em 2016 Trump ganhou apesar de ter tido cerca de 3 milhões de votos a menos que a sua adversária, e nem é incomum os republicanos ganharem a eleição com menos votos que os democratas. Observe-se que raramente ouvimos falar de outros partidos dos EUA, apesar destes existirem e concorrerem, como em 2016, nomeadamente partidos como o Green Party ou o Libertarian Party, entre outros. Mas as regras do sistema estão viciadas para o bipartidarismo, pois neste caso os círculos eleitorais são uninominais, ou seja, só existe um mandato a atribuir. Ao contrário do que acontece em círculos plurinominais, em que se distribui os mandatos pelos diversos partidos conforma a votação popular, nos uninominais é praticamente impossível aos partidos menores elegerem no respectivo círculo eleitoral pois as pessoas tendem a votar no menos mau, mas que tem hipótese de ganhar, em vez de votarem onde se sentem mais representados.

Isto é também bastante visível no parlamento do Reino Unido, onde os conservadores, em 2019, com apenas 43% dos votos tiveram 56% dos mandatos. Ou em 2015 o partido de direita Ukip com 12,6% dos votos teve 0,2% dos mandatos, só para dar alguns exemplos. São sistemas que dificilmente mudam, pois permitem aos partidos de sempre perpetuarem-se no poder.

Até em Portugal acontece uma distorção parecida, bem visível nas legislativas de 2005 nas quais o Partido Socialista com apenas 45% dos votos recebeu 52,5% dos mandatos, isto é a maioria absoluta e o direito de governar sem prestar contas a mais ninguém, apesar de cerca de 55% do voto popular ser noutro partidos. No entanto aqui os problemas da representatividade prendem-se com outras causas, nomeadamente no Método d'Hondt, que favorece os grandes partidos e a existência de vários pequenos círculos eleitorais que potenciam o bipartidarismo (no respectivo círculo). Em 2019 o Método d'Hondt deu ao PS e PSD mais 32 mandatos do que o voto popular, ao mesmo tempo que 14% (723 mil) votos válidos foram inutilizados (isto é, não conseguiram eleger ficando sem representação durante todo o mandato). Além disto ainda existe uma grande discrepância no número de votos necessários para atribuir mandatos entre círculos eleitorais. Tudo isto é conhecido e ocasionalmente até motivo de noticia4 5. Também nas eleições autárquicas a votação para o executivo camarário, distorce imenso a representatividade e favorece o bipartidarismo pois é eleito presidente quem tiver mais votos, mesmo quando esses votos representem apenas uma minoria do voto popular. Nas eleições autárquicas de Lisboa de 2021, Carlos Moedas foi eleito presidente da câmara de Lisboa com 34,26% dos votos, apesar da oposição à sua esquerda (PS+PCP+BE) representar 50,02% do voto popular. Nas câmaras municipais minorias governam, pois 34,26% dos votos valeram mais do que 50,02%.

Cabe à democracia, cabe-nos a nós, melhorar sempre que possível o sistema para garantir que todas as pessoas se sintam representadas da forma mais equilibrada e simples possível. E já existem diversas formas de melhorar o sistema, já implementadas e praticadas noutros sítios.

A forma mais óbvia seria melhorar a representatividade do voto usando métodos de proporcionalidade directa simples, idealmente num círculo eleitoral único ou em poucos círculos eleitorais mas relativamente grandes6. Com círculos eleitorais pequenos a vantagem da proporção directa é menor mas ainda existe e veremos como podia ser compensada, de qualquer forma seria por princípio uma forma de proporção mais justa. É uma proposta que, a curto prazo, mais luta levaria a implementar pois o Método d'Hondt e os círculos eleitorais estão especificados pela Constituição da República Portuguesa7, para os alterar será necessário uma maioria de dois terços do parlamento. Mas o debate sobre este assunto é imprescindível.

Outra possibilidade para melhorar o sistema a curto prazo seria, a criação de um círculo de compensação, completamente previsto na Constituição portuguesa. Neste caso, os votos que não elegeram ninguém seriam contados num círculo eleitoral geral, ou seja, os 14% dos votos que em 2019 não elegeram ninguém teriam a possibilidade de eleger neste círculo. Não evita completamente as distorções causadas quer pelo Método d'Hondt, quer pelos círculos eleitorais e certamente perde o carácter de representação local onde seria mais precisa (nos círculos pequenos onde mais votos são “inutilizados”), mas continuaria a melhorar a representatividade8.

Ainda outra possibilidade popular é o uso de um sistema de voto preferencial, perfeitamente aplicável a círculos plurinominais (apesar de ser mais comum nos uninominais). Neste sistema vota-se em diversos partidos ou candidatas/os, mas por ordem da nossa preferência. Por exemplo uma pessoa vota primeiro no partido A o seu favorito, em segundo lugar escolhia o partido E de que também gosta, em terceiro o C que não gosta muito mas prefere às alternativas… Supondo que o partido A não elege, este voto seria entregue ao partido E, se este não elege, então seria entregue ao C… Garantindo deste modo que a pessoa consegue sempre contribuir para a eleição de alguém que potencialmente a representará. A vantagem deste método é o de a pessoa poder votar livremente sem receio algum de “inutilizar” o seu voto num partido que não elege, assim pode votar segundo as suas convicções, mas sem abdicar de também garantir a utilidade do seu voto. Este método faria especial sentido em círculos eleitorais relativamente pequenos, como a maioria dos actuais em Portugal9.

Poderíamos, talvez devêssemos, ser mais arrojados nas propostas, mas o fundamental é que já temos as ferramentas para melhorar a representatividade e fazer com que cada voto conte, de uma forma simples e a curto prazo, com medidas que já são implementadas e comprovadas por esse mundo fora. E que são aplicáveis para lá das legislativas.

A nossa representação democrática está em risco, lutemos para a preservar, melhorar e iniciemos o debate e façamos as proposta do lado mais democrático da luta.

Artigo de Pedro Celestino


Notas:

1Equilibrado com pragmatismo, capacidade de debate público, de transparência e solidariedade.

2O PSD anunciou que iria apresentar no parlamento uma reforma ao sistema eleitoral após as legislativas, mas até agora ainda não a apresentou. Do pouco que se conhece aparentemente será proposto a redução do número de deputados/as e círculos eleitorais mais pequenos e menos actos eleitorais através de mandatos maiores, visível aqui, aqui ou aqui. Segundo o PSD manter-se-ia aproximada da representatividade actual (relação de forças entre os partidos actuais) que como veremos está longe do ideal.

3Esteve presente no último programa eleitoral tendo deixado cair a proposta, mas nada indica que haja uma mudança de vontades, muito pelo contrário.

4Aqui ou aqui.

6 Note-se que a não existência de diversos círculos eleitorais, do ponto de vista da argumentação, poderia deixar certas regiões indevidamente representadas (como o interior do país) por eventualmente não terem nenhum representante directamente responsável por representar essas regiões. Isto é, segundo se argumenta, perde-se a representação local e corre-se o risco de, por exemplo, o interior do país ser governado só por pessoas das grandes metrópoles. Mas por outro lado a existência de vários círculos eleitorais cria sempre algumas desproporções entre o numero de mandatos por votantes e os votos necessários para atribuir mandatos entre diferentes círculos. Um debate diferente e interessante, seria o do favorecimento solidário a zonas com pouca população (como no parlamento europeu), no entanto, o actual sistema é pior pois é o que “inutiliza” mais votos ou mais obriga ao voto útil.

7No artigo 149.

8Seria essencial garantir que o número de mandatos a atribuir no círculo de compensação corresponderia o melhor possível ao número de votos inutilizados. Provavelmente com um número de mandatos variável.

9Penso que seria também compatível com a actual Constituição portuguesa, isto é, com o Método d'Hondt, mas teria de ser aplicado recursivamente, no entanto este ponto é debatível. Este método não seria nada agradável de se fazer manualmente, mas fácil para os sistemas informáticos actuais e sem abdicar de verificabilidade ou do anonimato. Teria, aliás, a vantagem de modernizar todo o processo eleitoral.

Sobre o/a autor(a)

Licenciado e mestrando em Filosofia pela Universidade de Lisboa
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