Saúde

Médicos em greve reclamam melhores condições de trabalho, mas sobretudo melhor SNS

23 de julho 2024 - 14:40

Médicos fazem greve de dois dias para reivindicar melhores condições profissionais, criticando a postura autoritária da Ministra da Saúde. Utentes juntam-se à classe médica para lutar contra a privatização do Serviço Nacional de Saúde.

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Manifestantes em frente ao Hospital de Santa Maria
Concentração de médicos em frente ao Hospital de Santa Maria. Fotografia de Bruno Moreira

A greve de dois dias que começa esta terça-feira, marcada pela Federação Nacional dos Médicos (FNAM), é uma chamada de atenção para os problemas do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Espalhada por concentrações em todo o país, a classe médica tem-se demonstrado descontente com os problemas cumulativos da sua carreira, mas também com a degradação do SNS e com o autoritarismo da Ministra da Saúde.

Em frente ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, dezenas de médicos juntam-se e vão gritando “o povo merece mais SNS”. Há várias gerações de profissionais de medicina espalhados pela multidão, desde os internos até aos cabelos grisalhos. O objetivo é o mesmo: reivindicar melhores carreiras e abrir os olhos a Ana Paula Martins, ministra da Saúde.

Quem começa a carreira de medicina agora, já se sente desapontado com o futuro. “Aquilo que prevejo futuramente ao nível de progressão de carreira é, de facto, muito parco”, lamenta Mónica Jorge, médica interna. A frustração de querer prestar um serviço público e universal de qualidade choca de frente com as limitações atuais do SNS. “Vejo muita desmotivação com o futuro. Vejo inclusivamente colegas que acabam por sair do Serviço Nacional de Saúde ou inclusive por sair do país”, comenta. “O que vemos é uma degradação contínua”.

Mas para ficarem, a luta é difícil e o caminho é longo. “Isto não é nada de novo”, explica Tânia Russo, médica pediatra e dirigente da FNAM. “São reivindicações que nós temos há muitos anos. Os médicos foram o grupo profissional da saúde que mais perdeu poder de compra com a crise da Troika, mais de 20% que ainda não recuperámos”.

Desde a crise já lá vão dez anos, mas ainda há muita coisa que não mudou. Uma delas são as 40 horas semanais que os médicos ainda fazem. “Os médicos são o único grupo de profissionais de saúde que ainda está nas quarenta horas”, explica Tânia.

O protocolo negocial que a ministra da saúde apresentou é, para a FNAM, insuficiente. O Ministério da Saúde recusou integrar todas as propostas que a Federação Nacional de Médicos tinha procurado incluir e a negociação que está ligada à grelha salarial foi calendarizada apenas para o início do ano que vem. Ora, para que alterações sejam incluídas no Orçamento de Estado para 2025, é preciso que a revisão da grelha salarial seja negociada até setembro. Para Tânia Russo, isto significa que a ministra “não tem sido respeitadora daquilo que são as ansiedades dos médicos e daquilo que eles reivindicam”.

Mas, no fundo, o processo sindical que a FNAM está a encabeçar não é só pela melhoria de condições de trabalho. “Queremos voltar às 12 horas de urgência incluídas no nosso horário, para que possamos dedicar mais tempo aos nossos doentes”, porque para melhorar a prestação do Serviço Nacional de Saúde é preciso também que haja capacidade de lidar com a procura. “Nós para prestarmos uma medicina com condições o que precisamos é de atender as pessoas antes de elas estarem doentes”, conclui a dirigente da FNAM.

Os utentes são quem mais sente a degradação contínua do SNS. As dificuldades no acesso vão aumentando à medida que as urgências, as pediatrias, as maternidades e os serviços de obstetrícia se vão encontrando fechadas um pouco por todo o país. Os médicos de família também faltam e as consultas de especialidade são cada vez mais difíceis de arranjar.

Utentes e profissionais unidos contra “o caminho aberto para a privatização”

Júlia Freire, da Comissão de Utentes do Seixal, veio com mais três elementos até ao Hospital de Santa Maria para demonstrar o seu desagrado com os problemas da saúde, mas também para mostrar a sua solidariedade com a classe médica. “Sentimos que a saúde, de facto, está mal no nosso país”, afirma. “Claro que a greve também é um problema para os utentes” mas “os profissionais de saúde só conseguem qualquer coisa também vendo os constrangimentos que são colocados, quando há uma greve”.

E por isso, a luta dos médicos é uma luta contra “o caminho aberto para a privatização do Serviço Nacional de Saúde”. Quem o defende não é só Júlia, mas também João Proença, vice-presidente da FNAM e Presidente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul, para quem a política do atual Governo “quer impor a perda de direitos”, que é feita “de propósito para as pessoas irem para para empresas de trabalho externo, para os grupos de privados e para a imigração”.

Manifestantes na concentração em frente ao Hospital Santa Maria
Fotografia de Bruno Moreira

 

As principais críticas são apontadas à ministra Ana Paula Martins, que impôs aos médicos do Sul “dois decretos por videoconferência”, sem antes dialogar com eles. Para além de não atender às reivindicações dos médicos, a postura da ministra da Saúde é de autoridade e poder sobre os profissionais da saúde. “Não nos ouve”, afirma o vice-presidente da FNAM. “Funciona como um Governo de maioria absoluta”.

A coordenadora do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, também esteve presente na concentração em frente ao Hospital de Santa Maria, onde a adesão à greve era, segundo a própria federação, na ordem dos 90%. Em solidariedade com a classe médica, Mariana Mortágua apontou o mesmo caminho de privatização da saúde, às mãos de uma ministra que “para além da sua postura de enorme incompetência e autoritarismo sempre que alguma coisa corre mal no SNS tem um plano concreto, que a própria ministra admite que é um plano de ir privatizando, entregando ao privado as parcelas do SNS que vão deixando de funcionar por falta de condições”.

Mas a coordenadora bloquista salienta que há uma solução para o SNS e que há propostas que resolvem os seus problemas. E essa resposta é aquela que está a ser defendida pelos profissionais do SNS, na sua luta sindical, mas também pelos utentes, contra o seu desmantelamento.

A greve dos médicos mantém-se durante dois dias, e a greve às horas extraordinárias nos centros de saúde, que vinham sendo impostas aos médicos sem reforço das contratações de profissionais de medicina, mantém-se por mais um mês e meio, até ao final de Agosto. O fim das horas extraordinárias tem sido uma das principais reivindicações dos médicos contra os horários desregulados e o excesso de trabalho. A concentração mantém-se sob o esmagador calor do sol em Lisboa, mas os médicos em greve vão cantando em defesa do SNS. E para as outras cidades do país estão marcadas concentrações que desafiarão a política centralista e autoritária da ministra.