A 14 de agosto de 1936, há 85 anos, as tropas franquistas comandadas pelo general Juan Yagüe conquistavam Badajoz e, nos dias seguintes, causaram um massacre. Alguns jornalistas estrangeiros contaram o que se passou. Mário Neves do Diário de Lisboa, Marcel Dany da agência Havas e Jacques Berthet correspondente do Temps foram os primeiros a chegar. Pouco depois, o norte-americano Jay Allen, correspondente do Chicago Tribune, contou o que viu na cidade num artigo que se tornou um documento histórico.
Esta é a história mais dolorosa que me coube escrever. Escrevo-a às quatro da madrugada, doente de corpo e alma, no malcheiroso pátio da Pensão Central, numa das tortuosas ruas brancas desta empinada cidade fortificada. Nunca conseguiria voltar a encontrar a Pensão Central e nunca mais o quererei fazer. Venho de Badajoz, a algumas milhas daqui, em Espanha. Estive no telhado a olhar para trás. Vi fogo. Estão a queimar corpos. Quatro mil homens e mulheres morreram em Badajoz desde que a Legião Estrangeira e os mouros do general rebelde Francisco Franco treparam sobre os corpos dos seus próprios mortos para escalar as muralhas tantas vezes empapadas de sangue.
A história de uma mulher a soluçar
Tentei dormir. Mas não se pode dormir numa cama suja e irregular, num quarto que está a uma temperatura semelhante a um banho turco, onde os mosquitos e os percevejos te atormentam e as recordações do que viste também te atormentam, com o cheiro a sangue no teu próprio cabelo e uma mulher a soluçar no quarto ao lado.
“O que se passa?” perguntei ao camponês sonolento que ronda o lugar durante a noite como um guarda.
“É espanhola. Veio a pensar que o marido tinha escapado de Badajoz.”
“Bem, e não conseguiu?”
“Sim”, disse, e olhou para mim sem estar seguro de que podia continuar. “Sim e mandaram-no de volta. Foi fuzilado esta manhã”.
“Mas quem o mandou de volta?” Já sabia mas perguntei na mesma.
“A nossa polícia internacional”.
Já tinha visto vergonha e indignação no olhar de pessoas, mas não como neste. Subitamente, este ser sonolento e suado, cuja presença tinha somado miséria ao quadro, assumiu uma dignidade e nobreza que muitas vezes um bom cão ou um ser humano não mostram. Desisti. Voltei para o pátio sujo, com as suas galinhas, coelhos e porcos para escrever e terminar o assunto.
A história começa em Lisboa
Começando no início, tinha ouvido rumores obscuros em Lisboa. Aí toda a gente espia toda a gente. Deixei o meu hotel às quatro da tarde de 23 de agosto, disse que ia ao Estoril tentar a minha sorte na roleta. Várias pessoas tomaram nota e espero que tenham desfrutado da sua tarde no Estoril.
Em vez disso, foi para a Praça do Rossio. Apanhei o primeiro táxi. Andei às voltas e finalmente juntei-me a um amigo português que sabe da poda. Fomos para o barco que faz a travessia do Tejo. Uma vez do outro lado, ele disse ao motorista: “Elvas”. Olhou ligeiramente surpreendido. Elvas fica a 250 quilómetros de distância. Atravessámos um país envolvente de colinas arenosas, sobreiros, camponeses com patilhas e mulheres com pequenos chapéus de coco. Eram 8.30 quando subimos a colina para entrar em Elvas, “a fechadura que nunca ninguém tinha aberto”. Mas Elvas conhece a humilhação agora.
Lembrar a Badajoz do dia anterior
Entrámos por uma porta larga branca. Parece que foi há anos. Desde então fui a Badajoz. Acredito que fui o primeiro jornalista a entrar lá sem autorização e o inevitável pastoreio dos rebeldes, certamente o primeiro jornalista que sabia o que procurava.
Conhecia Badajoz. Tinha lá ido quatro vezes no último ano para fazer investigação para um livro em que estou a trabalhar e tentar estudar as operações da reforma agrária que poderiam ter salvo a República Espanhola – uma República que, seja como for, deu a Espanha escolas e esperança, coisas que não tinha há séculos.
Tinham passado nove dias desde que Badajoz tinha caído a 14 de agosto. Os exércitos rebeldes tinham seguido – para uma desagradável derrota em Medellin, se é que a minha informação estava correta, como por vezes está – e os jornalistas, alimentados à mão e vigiados de perto, tinham seguido no seu encalço. (...)
Começámos a ouvir a verdade ainda antes de sairmos do carro. Dois caixeiros-ambulantes portugueses que estavam à porta do hotel conheciam o meu amigo. Portugal, como de costume, está às portas de uma revolução. As pessoas parecem saber que “os outros” são. Foi por isso que trouxe o meu amigo comigo.
Cochicharam. Disseram isto: milhares de milicianos e milicianas republicanos, socialistas e comunistas foram chacinados depois da queda de Badajoz pelo crime de defender a sua República contra o massacre que generais e proprietários de terras estão a perpetrar.
Centenas mandados de volta para morrer
Entre 50 e 100 têm morrido todos os dias desde então. Os mouros e a Legião Estrangeira estão a pilhar. Mas mais obscuro: a “polícia internacional” portuguesa, desafiando os usos internacionais, está a recambiar centenas de refugiados republicanos para a morte certa através dos pelotões de fuzilamento dos rebeldes. (...)
Na terça-feira. Quarenta refugiados republicanos foram escoltados até à fronteira espanhola. 32 foram mortos na manhã seguinte. 400 homens, mulheres e crianças foram levados por escolta de cavalaria para o posto fronteiriço do Caia até às linhas espanholas. Destes, perto de 300 foram executados.
De volta ao carro, fomos até Campo Maior que fica do lado português da fronteira a apenas sete quilómetros de Badajoz. Um guarda fronteiriço falador disse:
“Claro que os estamos a devolver. São perigosos para nós. Não podemos ter vermelhos em Portugal num momento destes”.
“E o direito de asilo?”
“Oh, disse, Badajoz pede extradição.”
“Não extradição para delitos políticos,”
“Está a ser feito ao longo de toda a fronteira de acordo com ordens de Lisboa”, disse beligerantemente.
Passagem para Espanha
Deixámos o local. Guiámos de volta a Elvas. Fui ter com amigos que são tão portugueses como espanhóis e vice-versa.
“Queres ir a Badajoz?” Perguntaram.
“Não, disse, porque os portugueses dizem que a fronteira está fechada e ficaria lá pendurado.”
Tinha outra razão. Os rebeldes não gostam dos jornalistas que olham para os dois lados. Mas eles ofereceram-me para me levar e trazer de volta sem complicações. Por isso fomos. Subitamente saímos da estrada para uma ponte que passa sobre o rio Guadiana até à cidade onde as tropas de Wellington irromperam durante as guerras peninsulares e onde agora acontecer outra tragédia. Estavamos agora em Espanha. Os meus amigos eram conhecidos. A pessoa extra no carro [eu] passava despercebida. Não fomos parados.
Algumas notas sobre Badajoz
Conduzimos diretamente para a praça de Badajoz. Aqui estão as minhas notas: a Catedral está intacta. Não, não está. Ao conduzir para à sua volta vejo que metade de uma grande torre quadrada foi arrancada a tiro.
“Os vermelhos tinham metralhadoras aí e a nossa artilharia foi obrigada a disparar”, disseram os meus amigos. Aqui, ontem, houve um fuzilamento cerimonial, simbólico. Sete dirigentes republicanos da Frente Popular. Foram mortos com banda e tudo à frente de 3.000 pessoas. Para provar que os generais rebeldes não matavam apenas trabalhadores e camponeses. Não havia favoritismos para os apoiantes de Frente Popular.
Parámos numa esquina de transito estreito. Através dela fugiram milicianos legalistas para se refugiarem numa fortaleza mourisca num monte quando os descendentes daqueles que a construíram romperam pela porta da Trindade. Foram apanhados por legionários vindos da porta pelo rio e fuzilados aos grupos nas esquinas da rua.
Lojas pilhadas pelos Conquistadores
Todas as lojas pareciam ter sido destruídas. Os conquistadores saquearam-nos no seu caminho. Durante toda esta semana em Badajoz, os portugueses têm comprado relógios e joias quase de graça. A maior parte das lojas pertence a pessoas de direita. É o imposto de guerra que pagam por serem salvos, disse-me sombriamente um oficial rebelde.
As linhas maciças da fortaleza de Alcazar mostravam o fim da rua de San Juan. Ali, os defensores da cidade que se tinham refugiado em Espantoperro foram obrigados pelo fumo a sair e mortos a tiro.
Passamos por uma loja de artigos secos que parecia ter sofrido um terramoto. “La campana, disseram-me os meus amigos, pertencia a Don Mariano, um dirigente Azanista [seguidor de Manuel Azaña, o presidente]. Foi saqueada ontem depois de Mariano ter sido fuzilado.
Marcas que denunciam uma espingarda
Guiámos até ao escritório da reforma agrária, onde em junho tinha visto o engenheiro chefe, Jorge Montojo, distribuir terra, incorrendo naturalmente no ódio dos proprietários rurais e, porque era um técnico que seguia estritamente os cânones burgueses da lei, também na inimizada dos socialistas. Tinha pegado em armas para defender a república e por isso...
Subitamente vimos dois falangistas parar um sujeito robusto com uma camisola de trabalhador e agarrarem-no enquanto um terceiro lhe puxava a camisa, revelando o seu ombro direito. Podiam ver-se as marcar negras e azuis de uma espingarda. Mesmo depois de uma semana. O relatório foi desfavorável. Foi mandado para a praça de touros.
Conduzimos à volta da praça de touros em questão. As suas paredes de arenito contemplavam o vale fértil do Guadiana. É um círculo de estuque branca e de tijolo vermelho. Uma vez tinha visto aqui Juan Belmonte [um ídolo da tourada] na véspera de uma das touradas, numa noite como esta, vir ver trazerem os touros. Nesta noite, a forragem para o espetáculo de amanhã também estava a ser trazida. Filas de homens, braços no ar.
Recebidos por metralhadoras
Eram jovens, a maior parte deles camponeses de camisolas azuis, mecânicos de macacões, “os Vermelhos.” Ainda os estão a recolher. Às quatro da manhã fizeram-nos sair para a arena pela porta por onde costuma entrar a parada inicial dos toureiros. As metralhadoras esperavam-nos.
Depois da primeira noite, calculava-se que o sangue chegasse a um palmo de profundidade no lado mais afastado da arena. Não duvido. As vidas de 800 homens – também houve mulheres – foram aí ceifadas durante 12 horas. Há mais sangue do que se poderia pensar em 1.800 corpos.
Numa tourada, quando a fera ou algum desafortunado cavalo sangra copiosamente, os monosabios vêm e espalham areia fresca. Porém, nas tardes quentes. Cheira-se o sangue. O que é considerado muito revigorante.
Trepar sobre corpos mortos
Fomos parados na porta principal da praça, os meus amigos falaram com os falangistas. Era uma noite quente. Havia um cheiro. Não consigo nem vou descrevê-lo. Os monosabios vão ter muito trabalho para tornar esta arena apresentável para a matança cerimonial da tourada. Para mim, não haverá mais touradas – nunca.
Chegamos à Porta da Trindade através destas outrora invulneráveis fortificações. A lua brilhava. Uma semana antes um batalhão de 280 legionários tinha irrompido. 22 tinham sobrevivido para contar como tinham passado por cima, trepado sobre os corpos dos seus mortes, com as suas granadas de mão e facas e silenciado aquelas duas metralhadoras assassinas. Onde estavam os aviões do governo? Este é um dos mistérios. Causa um tremor de terra em Madrid. Voltámos para a cidade passando pela bela nova escola e instituto sanitário. Os homens que as construíram estão mortos, fuzilados como “Vermelhos” porque tentaram-nas defender.
Corpos deixados nas ruas durante dias
Passámos uma esquina.
“Até ontem havia aqui uma poça escurecida com sangue”, disseram-me os meus amigos. “Todos os militares legalistas foram mortos aqui e os seus corpos deixados durante dias para dar o exemplo.”
Disseram-lhes para para sair, então correram para fora das casas para saudar os conquistadores e foram mortos e as suas casas pilhadas. (...)
Vermelhos sofrem “justiça rigorosa”
Ouvi o general Queipo de Llano anunciar na rádio que Barcarota tinha sido tomada e que “justiça rigorosa” tinha sido aplicada aos vermelhos aí. Conhecia Barcarota. Perguntei aí em junho aos camponeses se, agora que lhes tinha sido dada terra, não seriam capitalistas.
“Não”, responderam com indignação.
“Porquê?”
“Porque apenas temos o suficiente para o nosso uso, não temos o suficiente para sermos capazes de explorar outros”.
“Mas é vossa.”
“Claro.”
“O que querem da República agora?”
“Dinheiro para sementes. E escolas.”
Pensei então, “Deus ajude quem tentar impedir isto.” Estava errado. Ou não? (...)
Ao luar
Nas ruas encharcadas de luar, cheirava a jasmim, mas eu sentia outro cheiro nas minhas narinas. Doce, horrivelmente doce.
No alto do monte, na praça branca, perto de uma fonte, um jovem encostado na parede com os pés cruzados tocava a sua guitarra e um tenor suave cantava uma comovente canção de amor portuguesa.
Em Badajoz, em junho, os rapazes ainda cantavam debaixo das varandas. Levará muito tempo até que o façam novamente.
De repente, através da praça, passou um carro com uma bandeira vermelha e amarela. Parámos. Os nossos caixeiros-ambulantes vieram ter connosco.
"Estão a revistar o hotel."
"À procura de quem?"
"Não sei."
Vamos embora assim que houver luz. As pessoas que colocam questões não são populares perto dessa fronteira, se é que isto pode ser chamado um fronteira.
Jay Allen. Chicago Tribune, 30 de agosto de 1936.
Tradução de Carlos Carujo para o Esquerda.net.