Marx é indispensável, mas qual Marx?

02 de julho 2023 - 11:22

Nesta entrevista a propósito do lançamento da sua coletânea de ensaios "Marx Desconhecido", o sociólogo ecossocialista Michael Löwy diz que ele procura romper com a imagem convencional de Marx, demasiadas vezes reduzido a um "economista".

PARTILHAR
Michael Löwy.
Michael Löwy. Foto: Divulgação

Michael Löwy, sociólogo, militante, autor de diversas obras sobre o marxismo e de vários artigos para o Contretemps, propõe-se, no seu novo livro "Marx Desconhecido", publicado pelas Editions du Retrait, recuperar uma imagem de Karl Marx que não se limita ao grande analista da dinâmica do capitalismo nascente. O Marx que Löwy quer ajudar a descobrir não pode ser reduzido à figura do cientista materialista, mas é um autor revoltado, apaixonado e utópico, capaz de compreender fenómenos como os efeitos do capitalismo na relação entre a espécie humana e os ecossistemas. Entrevista de Léo Texier


Contretemps - Um traço comum aos vários textos que compõem a sua compilação "Marx Inconnu" está na sua vontade de se concentrar no aspeto "não científico" da obra de Marx: por outras palavras, nos impulsos emocionais, morais, utópicos e, porque não, também estéticos que motivaram a sua obra e a sua ação política. Esses impulsos deram origem àquilo a que por vezes se chama, usando uma expressão de Ernst Bloch, a "corrente quente" do marxismo, por oposição a uma "corrente fria" que, por seu lado, se pretendia estritamente científica em termos económicos e sociológicos.

Mas a especificidade do pensamento de Marx, dentro da grande variedade de correntes socialistas do século XIX, não foi precisamente a sua tentativa de se distanciar de uma crítica filosófica, moral e espiritual da sociedade capitalista moderna e propor uma análise meticulosa das suas contradições materiais, aproveitando assim o poder irresistível dos instrumentos da racionalidade burguesa para os virar contra si própria?

Michael Löwy - Concordo plenamente consigo quando diz que Marx propôs uma análise meticulosa das contradições materiais do capitalismo, algo que faltava aos socialismos do século XIX. Mas ele não era, como afirmou Louis Althusser, "um homem de ciência como os outros", uma espécie de Lavoisier da ciência económica. O meu argumento é que, em Marx, a interpretação do mundo e a sua transformação são momentos dialeticamente inseparáveis. Não escolhi a vertente "não científica" de Marx, mas escritos em que a análise científica e a crítica social, e/ou a indignação moral, e/ou os objectivos utópicos, estão intimamente associados.

A análise materialista do capitalismo e do conflito de classes não estão ausentes dos temas da obra de Marx e Engels que estudo, quer se trate da dialética do progresso, do papel da religião, da ecologia ou do romantismo anticapitalista - bem como, evidentemente, da revolução. Como observa Ernst Bloch, a "corrente quente" do marxismo enfatiza a dimensão "utópica" - o Princípio Esperança - mas não nega a necessidade da "corrente fria", a análise implacável da realidade do capitalismo.

Podemos também acrescentar que a ciência de Marx não é a ciência positivista baseada no paradigma das ciências naturais; é uma ciência dialética, interessada nas contradições e nos movimentos da realidade económica e social, uma ciência crítica que não esconde o seu ponto de vista de classe. Claro que a indignação não é suficiente para compreender a realidade; mas, como explico no meu prefácio, "se ignorarmos a dimensão 'moral' da indignação e da recusa, não podemos compreender Marx, a motivação dos seus escritos e a sua coerência".

Dito isto, no prefácio afirmo a dimensão subjetiva das minhas escolhas e dos temas dos vários ensaios, que, sobretudo na primeira parte do livro, rompem com a imagem convencional de Marx, demasiadas vezes reduzido a um "economista".

Contretemps - A oposição entre cientificidade e utopia parece determinar estratégias e até horizontes políticos divergentes. Numa época de capitalismo financeiro, cujas mutações tornaram inoperantes várias análises tradicionais, não é precisamente o primeiro termo desta alternativa que precisamos de atualizar hoje para tentar compreender a nossa situação económica, histórica e social atual e para podermos agir sobre ela?

Michael Löwy - No seu clássico sociológico Ideologia e Utopia (1930), Karl Mannheim define a utopia como o conjunto de representações, aspirações ou imagens do desejo que visam romper a ordem estabelecida e que exercem uma "função subversiva".

Se aceitarmos esta definição, não há qualquer divergência entre a análise científica e a aspiração utópica. Como Miguel Abensour demonstrou nos seus escritos sobre a utopia, Marx e Engels não rejeitaram as "utopias" de Saint-Simon, Owen e Fourier, a sua visão de uma sociedade harmoniosa para além do capitalismo. As suas críticas referiam-se principalmente à incapacidade destes pensadores de terem em conta o movimento operário, a luta do proletariado pela sua auto-emancipação.

De facto, neste livro, falo muito pouco de utopia... Por exemplo, no capítulo sobre o "comunismo romântico" de Marx e Engels, estou sobretudo interessado nas afinidades entre a crítica romântica e a crítica marxiana da civilização capitalista. Do mesmo modo, no capítulo sobre ecologia, interessa-me sobretudo a crítica de Marx e Engels à destrutividade do "progresso" capitalista. Estas análises críticas de Marx e Engels continuam a ser atuais no século XXI, mesmo que tenhamos de ter em conta as novas formas de capitalismo. O mesmo se aplica, evidentemente, aos textos da segunda parte, sobre a estratégia revolucionária.

É sobretudo no prefácio do livro que me refiro à utopia comunista de Marx, o projeto de uma sociedade livre e igualitária, sem classes e sem Estado, em rutura com o capitalismo; É certo que Marx "se recusou a inventar receitas para as 'panelas do futuro'", mas eu acrescentaria que "a sua obra é iluminada, de uma ponta à outra, pelo horizonte de um outro mundo possível, que ele designou em O Capital como o 'Reino da Liberdade'".

Concordo que é importante analisar as formas atuais do capitalismo financeiro utilizando as ferramentas da crítica da economia política marxista. É uma condição necessária, mas não suficiente, para delinear uma estratégia de luta e um horizonte político...

Para isso, precisamos também de uma análise das relações de classe, das formas de luta, das estruturas políticas, dos mecanismos de repressão, dos aparelhos ideológicos, etc. Acima de tudo, precisamos de um conjunto de propostas, de um programa social e político e de uma estratégia revolucionária dirigida aos explorados e oprimidos. O Manifesto Comunista termina com uma palavra de ordem: "Proletários de todos os países, uni-vos! Mais uma vez, o marxismo, enquanto filosofia da praxis, é inseparavelmente ciência e ação, análise e movimento, crítica e transformação social.

Contretemps - O domínio da ecologia política, que aborda no livro, parece ilustrar a aparente oposição entre a necessidade de uma abordagem racional e científica rigorosa do problema ecológico e, por outro lado, certas correntes de pensamento que sublinham a necessidade de reformar o nosso imaginário e a nossa conceção da "natureza" para a arrancar ao domínio da racionalidade instrumental e económica. Foi um dos primeiros a entrar neste domínio, ajudando a forjar a noção de "ecossocialismo".

A obra de Marx - que é frequentemente acusado de ter ignorado a questão - permite-nos refletir sobre estas questões e, em caso afirmativo, em que direção?

Crise climática e alienação

05 de fevereiro 2023

Michael Löwy - Como diz, e bem, esta oposição é apenas "aparente". O ecossocialismo combina uma análise científica rigorosa da crise ecológica - fornecida, por exemplo, pelo trabalho do IPCC (Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas) - com a necessidade de libertar a natureza do domínio da racionalidade económica capitalista. Trata-se de uma racionalidade instrumental, de vistas curtas, que se preocupa com a maximização dos lucros dos bancos e das empresas, mas que, do ponto de vista global da vida na Terra, é absolutamente irracional.

No combate em defesa da vida, é importante mudar o imaginário dominante e a conceção da natureza como "matéria-prima"; mas o aspeto decisivo é a luta concreta, prática, contra a dinâmica destrutiva, até suicida, da civilização capitalista industrial. A estratégia ecossocialista baseia-se na convergência das lutas sociais e ecológicas, na promoção de lutas sócio-ecológicas que combinem os interesses de classe das classes trabalhadoras oprimidas com a preservação do equilíbrio ecológico.

Qual é a contribuição de Marx para o ecossocialismo? Em primeiro lugar, a análise de Marx do capitalismo como um sistema baseado na acumulação ilimitada, e a sua crítica do fetichismo da mercadoria, fornecem ferramentas indispensáveis para a reflexão ecológica. Em segundo lugar, o programa marxista de apropriação coletiva dos meios de produção e de planeamento democrático continua a ser relevante hoje, de um ponto de vista ecossocialista.

Em segundo lugar, como demonstram os trabalhos recentes de investigadores como John Bellamy Foster e Kohei Saito, Marx fornece um esboço para uma análise da rutura do metabolismo entre as sociedades humanas e a natureza. A preocupação ecológica está longe de estar ausente dos escritos de Marx e Engels, mas não ocupou um lugar central nos seus escritos: não há nenhum livro, ou mesmo capítulo de livro, sobre ecologia na sua obra. Este facto é fácil de explicar: a crise ecológica estava ainda a dar os primeiros passos e não tinha a importância decisiva para a humanidade que adquiriu no século XXI.

Hoje em dia, já não podemos pensar no marxismo, no comunismo ou no socialismo, sem colocar a crise ecológica no centro do nosso pensamento e da nossa prática. Como bem diz Naomi Klein, as alterações climáticas "mudam tudo": para começar, mudam a nossa compreensão do próprio capitalismo, que não é apenas um sistema baseado na exploração do trabalho e na mais feroz injustiça social; é também uma ameaça à própria sobrevivência da humanidade neste planeta. A nossa visão do que poderia ser uma sociedade socialista também está a mudar: o respeito pelos limites ecológicos, o restabelecimento do metabolismo entre a sociedade e a natureza, está a tornar-se um dos eixos principais do projeto ecossocialista.

Contretemps - A segunda parte do seu livro aborda, sob vários ângulos, a importância da ideia revolucionária de Marx. Insiste no facto de que, aos olhos dele, as revoluções futuras devem ser conduzidas apenas pelo proletariado, recusando qualquer aliança com a burguesia, que não deveria procurar ser "conquistada", segundo a famosa fórmula, a emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores. Marx e Engels repetiram-no aos dirigentes do Partido Social-Democrata Alemão em 1879, que queriam romper com a doutrina revolucionária e com o carácter "estritamente operário" do partido.

Pensa que esta posição pode ser transposta para a situação atual dos países capitalistas mais avançados, se considerarmos as mudanças na organização do trabalho e, em particular, o enfraquecimento da classe operária? Ou será que a história acabou por dar razão aos "revisionistas"?

Michael Löwy - O "proletariado" não pode ser reduzido à classe operária industrial tradicional. Como o demonstraram as análises de Ernest Mandel nos anos 1970, assiste-se a uma "proletarização" crescente do trabalho intelectual: professores, enfermeiros, jornalistas, escriturários, etc., fazem, na sua maioria, parte da classe operária, a classe dos que vivem da venda da sua força de trabalho. Esta classe de trabalhadores, no sentido mais lato, está longe de estar enfraquecida e, nos países capitalistas avançados, constitui a maioria da população.

Quanto à ideia de revolução, parece-me mais atual do que nunca. Se quisermos escapar à catástrofe ecológica - resultado necessário da lógica produtivista e consumista do capitalismo - precisamos de uma transformação revolucionária da sociedade, de uma rutura radical com o paradigma da civilização capitalista industrial moderna. Gosto muito da nova definição de revolução proposta por Walter Benjamin: não é "a locomotiva da história" (como Marx escreveu algumas vezes), mas os passageiros que puxam o travão de emergência do comboio. Todos nós somos passageiros de um comboio suicida chamado civilização capitalista industrial, que se precipita cada vez mais rapidamente para o abismo das alterações climáticas. É urgente parar este comboio que enlouqueceu.

Os "revisionistas" de hoje, os seguidores do liberalismo social ou da ecologia de mercado, são parte do problema, não da solução; as suas ambições - ou as suas práticas, uma vez no governo - limitam-se a uma gestão mais eficiente, mais "social" ou mais "verde" do "crescimento" capitalista.

Quem seria o sujeito de uma revolução ecossocialista? As forças que estão hoje na vanguarda do combate sócio-ecológico: os jovens, as mulheres, alguns sectores do campesinato, algumas forças sindicais. Mas não podemos ganhar a batalha sem o apoio dos trabalhadores, sem que a maioria da população esteja comprometida com o projeto de transformação social radical.

Contretemps - O último texto da coletânea é sobre o tema do internacionalismo. Em certos aspetos, o movimento social no tempo de Marx não tinha uma dimensão mais internacionalista do que hoje, o que parece ir exatamente contra a evolução do capitalismo, que, por sua vez, completou a sua globalização?

Michael Löwy - No tempo de Marx, assistimos ao início de um movimento operário internacional. A Primeira Internacional continua a ser um exemplo fascinante, devido à sua capacidade de reunir, pelo menos nos seus primeiros anos, um vasto leque de sensibilidades sociais e políticas, do sindicalismo ao anarquismo, passando pelo socialismo marxiano. Deste ponto de vista, poderia ser um exemplo a seguir para as iniciativas internacionalistas do nosso tempo.

No entanto, a Internacional de Marx limitava-se aos países capitalistas avançados da Europa e da América do Norte. Só no século XX é que o internacionalismo socialista/comunista se estendeu aos países do Sul, aos países colonizados ou dependentes. A Terceira Internacional, que encarnava a esperança revolucionária após a Revolução de Outubro, foi dissolvida por Estaline em 1943, e a Quarta Internacional, fundada por Leon Trotsky em 1938, sobreviveu, mas permanece muito minoritária...

No início do século XXI, assistimos ao aparecimento de novos tipos de iniciativas internacionalistas: redes internacionais como a Via Campesina e encontros internacionais como o Fórum Social Mundial, onde militantes políticos de esquerda, sindicalistas, movimentos de camponeses, movimentos ambientalistas e/ou feministas se reúnem sob o lema: "Um outro mundo é possível".

Dito isto, a esquerda, o movimento operário e a oposição antissistema estão ainda longe de ter conseguido uma verdadeira organização internacional capaz de enfrentar a hidra de várias cabeças - imagem proposta pelos zapatistas de Chiapas - do capitalismo globalizado. Isto é tanto mais necessário quanto as forças nacionalistas reacionárias, por vezes neofascistas, estão a crescer em todo o mundo, traduzindo em várias línguas o mortífero slogan "Deutschland über Alles!

A crise ecológica e as alterações climáticas não conhecem fronteiras. A batalha ecológica, que é decisiva para o futuro dos povos que vivem neste planeta, só pode ser travada, em última análise, à escala internacional. As lutas sócio-ecológicas que se desenvolvem a nível local, regional ou nacional são muito importantes, mas não conseguiremos evitar a catástrofe sem uma batalha  antissistema global.


Entrevista de Léo Texier publicada em Contretemps. Tradução de Luís Branco para o Esquerda.net.

Termos relacionados: Políticaecossocialismo