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Mariátegui e a eleição de Pedro Castillo no Peru

A divisão regional, sociológica e étnica do Peru, expressa nos resultados das eleições de 6 de junho de 2021, mostra a validade do pensamento de José Carlos Mariátegui. O desprezo da elite de Lima pelo povo indígena não podia impedir a vitória de um pobre candidato camponês nomeado por um partido “mariáteguista”. Por Gilberto Calil.
Pedro Castillo. Foto de Prachatai/Flickr.
Pedro Castillo. Foto de Prachatai/Flickr.

A divisão regional, sociológica e étnica do Peru expressa nos resultados das eleições realizadas a 6 de junho sublinha a relevância das reflexões de José Carlos Mariátegui1 (1894-1930). Considerado o fundador do marxismo latino-americano no sentido em que foi o primeiro marxista a fazer uma interpretação original da realidade latino-americana baseada no marxismo, o revolucionário peruano salientou há quase um século que o Peru era um país fraturado pelas divisões produzidas pela sua classe dirigente.

Para além da divisão entre a cidade e o campo, a fraca integração nacional criou um fosso entre o litoral, as terras altas andinas e a região amazónica. Na sua análise, a elite de Lima tinha um profundo desprezo pela identidade indígena e este desprezo era partilhado pelos sectores da classe média urbana. Isso exprimia a sua perspetiva subordinada e a ausência de um projeto nacional: "as burguesias nacionais, que veem a cooperação com o imperialismo como a melhor fonte de lucro, sentem que controlam suficientemente o poder político para não se preocuparem seriamente com a soberania nacional”.

Para Mariátegui era claro que não haveria revolução burguesa no Peru, uma vez que não havia nenhum sujeito social interessado nela, e por isso a única alternativa concreta para a transformação seria uma revolução socialista. Mariátegui acrescenta à sua análise a centralidade da questão da terra (a necessidade de reforma agrária e a eliminação do latifúndio) e da questão indígena, profundamente entrelaçada com a questão da terra. Para Mariátegui, só pode haver uma revolução socialista no Peru se os povos indígenas forem incorporados como parte fundamental do sujeito revolucionário.

A atualidade de Mariátegui

Pedro Castillo, presidente do Peru, foi eleito através do Partido Político Nacional do Peru Livre (PPNPL), que se define como "Marxista-Leninista-mariateguista" e como uma "esquerda do campo" que representa "o Peru profundo". Sabemos que mesmo o Sendero Luminoso2 se apresentou como mariateguista, o que é totalmente injustificado.

Mas a organização Peru Livre é de facto consistente com a proposta mariateguista ao dar prioridade às exigências concretas dos camponeses peruanos: reforma agrária, direitos sociais, educação e saúde. É também profundamente mariateguista no radicalismo com que tem apoiado, até agora, os elementos centrais deste programa de reivindicações, sem desistir de o defender mesmo no contexto da segunda volta das eleições em que praticamente todos os meios de comunicação social e os principais partidos políticos estavam contra esse programa.

As eleições peruanas são de uma importância crucial. O Peru é o quarto país mais populoso do continente, o mais devastado pela pandemia no mundo (com a recente correção dos dados, ultrapassou o incrível número de cinco mil mortes por milhão) e é provavelmente o único país do mundo, para além do Brasil, que seguiu a estratégia da imunidade coletiva (ou “de grupo”) por exposição à livre circulação do vírus, tendo ainda como fator agravante a grande precariedade do seu sistema de saúde.

Não se tratou de uma eleição normal, mas de uma eleição que teve lugar num contexto de crise orgânica e de uma profunda crise de representação dos principais partidos. Na primeira volta, os quatro candidatos que receberam mais votos, Pedro Castillo, Keiko Fujumori, López Aliaga (o 'Bolsonaro peruano') e Hernando de Soto (um tecnocrata ultra-liberal), apresentaram-se todos como candidatos anti-sistema, embora com diferentes perspetivas ideológicas.

O candidato Yonhi Lescano, da Acción Popular, ficou em quinto lugar com 9% e a candidata de centro-esquerda Veronika Mendoza (do partido Nuevo Peru), que liderava a corrida no início da campanha eleitoral, terminou em sexto lugar com 7,6%. Na segunda volta, os principais candidatos (com exceção de Veronika Mendoza, que apoiou Pedro Castillo, e Yonhi Lescano, que não apoiou nenhum candidato) apoiaram Keiko Fujimori. Com a bênção de Mário Vargas Llosa, os liberais abraçaram a filha do ditador contra o fantasma do comunismo.

Uma vitória indígena

Os resultados confirmam que o país está profundamente fraturado. Keiko Fujimori ganhou por uma larga margem na região de Lima (65%) e na cidade de Callao (67%), com uma diferença de mais de dois milhões de votos. Das 23 regiões do interior do país, Keiko Fujimori ganhou em apenas sete: as províncias amazónicas de Loreto e Ucayali e as províncias costeiras de Tumbes, Piura, Lambayeque, La Libertad e Ica, e mesmo nestas regiões a vitória ficou a dever-se aos resultados obtidos nas maiores cidades.

Pedro Castillo, por seu turno, não só ganhou nas outras 16 regiões, como também obteve resultados impressionantes nas principais províncias andinas: 89% em Puno, 83% em Cusco, 81% em Apurimac, 82% em Ayacucho, 85% em Huancavelica, 73% em Moquegua, 68% em Huanuco, 66% em Pasco e 71% em Cajamarca. São diferenças impressionantes obtidas em regiões fortemente indígenas, marcadas por culturas e formas tradicionais de organização social que resistem sistematicamente aos efeitos da devastação neoliberal.

Num país onde 40% da população está concentrada na região de Lima (incluindo Callao), parecia impossível um candidato ganhar as eleições sem ter bases importantes na capital, sem fazer amplas alianças políticas, mantendo um programa económico muito radical e sendo ostensivamente atacado pelos meios de comunicação social. No entanto, num contexto de crise orgânica, aconteceu o contrário e foi provavelmente o radicalismo com que defendeu o seu programa e permaneceu fiel à sua base social organizada que determinou a vitória de Pedro Castillo.


Gilberto Calil é doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor de História na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). A sua investigação centra-se sobre o fascismo, a hegemonia, o Estado e o poder, Gramsci e Mariátegui.

Artigo originalmente publicado pela revista Jacobin Latin America e depois traduzido por Christian Dubucq para a revista Contretemps e publicado a 15 de junho de 2021. Traduzido para o Esquerda.net por Paulo Antunes Ferreira.


Notas do tradutor:

1NT: "José Carlos Mariategui (1894-1930) foi o primeiro pensador marxista latino-americano autêntico. Foi também o primeiro a propor uma reflexão marxista sobre a questão indígena no continente: uma reflexão que não só atribui às massas camponesas indígenas um papel decisivo como sujeitos de uma transformação social revolucionária, mas também percebe nas culturas e tradições indígenas uma das principais raízes de um socialismo indo-americano.

Jornalista, escritor, filósofo e pensador político peruano, José Carlos Mariategui deixou uma importante obra, apesar da sua curta vida. Durante uma estadia de quatro anos na Europa (1919-1923), descobriu o marxismo e a Revolução Russa. Mas o seu marxismo permaneceu bastante heterodoxo, e citava de bom grado tanto Georges Sorel e Pierre Gobetti como Lenine ou Trotsky.

Em 1928, fundou o Partido Socialista Peruano, filiado na Internacional Comunista. Perseguido pelo regime autoritário do Presidente Leguia, que o acusou de "comunismo", foi preso várias vezes. A sua obra mais conhecida, "Sete ensaios de interpretação da realidade peruana" (1928), a primeira tentativa marxista de analisar uma formação social latino-americana, data deste período." in Michael Löwy, "L'indigénisme marxiste de Jose Carlos Mariategui", Actuel Marx 2014/2 (n° 56). https://www.cairn.info/revue-actuel-marx-2014-2-page-12.htm

2 NT: Sendero Luminoso é a expressão como é habitualmente conhecido o Partido Comunista do Peru - Sendero Luminoso, abreviado para PCP-SL, fundado na década de 1970 por Abimael Guzmán, por cisão do Partido Comunista Peruano - Bandeira Vermelha, que era ele próprio já uma cisão maoista do Partido Comunista Peruano após a dissolução da Sino-Soviética. Em 1980 o Sendero Luminoso iniciou a luta armada a partir do campo, como resposta à repressão exercida pelo governo, através do exército, e como forma de realizar a revolução popular e criar um regime revolucionário e comunista de base camponesa. Foi um dos participantes no conflito armado que decorreu no Peru ao longo dos anos 80 e 90. https://fr.wikipedia.org/wiki/Sentier_lumineux 

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