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Maidan, Donbass e a esquerda (2): A esquerda ucraniana depois da queda da URSS

Volodymyr Ishchenko faz o retrato da esquerda ucraniana até ao início de Maidan. Entre a velha esquerda com liderança assimilada à elite burguesa e o PCU alinhado com posições pró-russas e a nova esquerda dividida e concentrada na capital.
Militante com uma bandeira vermelha em Donetks em 2007. Foto de S8/Flickr.
Militante com uma bandeira vermelha em Donetks em 2007. Foto de S8/Flickr.

No seu estudo “A esquerda ucraniana durante e depois dos protestos de Maidan”, o sociólogo Volodymyr Ishchenko distingue entre a “velha esquerda”, que englobaria os sucessores do Partido Comunista da União Soviética, e a “nova esquerda” que conta com as organizações políticas, sindicatos e iniciativas culturais que eram críticas dessa tradição e que geralmente não mantinham relações com ela.

A “velha esquerda” foi perdendo espaço

A “velha esquerda” materializava-se sobretudo no Partido Comunista da Ucrânia. Do golpe de Estado na URSS em 1991 tinha resultado a interdição do PCUS. Na Ucrânia, este foi restabelecido dois anos depois. O PCU foi, durante os anos 1990, o partido mais popular do país (em 1998, no seu auge, obteve 24,7% dos votos e o seu candidato presidencial e líder histórico, Petro Symonenko, no ano seguinte, obteve 37,8%). Isto, segundo o sociólogo, “levou o partido a dar uma prioridade cada vez maior à política parlamentar em detrimento das mobilizações extra-parlamentares”, a “concentrar uma influência esmagadora no grupo parlamentar” que se foi tornando cada vez mais “uma parte normal da elite burguesa quer através da corrupção de líderes partidários quer através da venda de lugares nas listas do partido a empresários em troca do seu apoio financeiro em campanhas eleitorais”.

O partido sofrerá um revés forte em 2002 quando obteve apenas 14% dos lugares no parlamento e esta tendência continuará no resto dos anos 2000, com resultados de 3,6% e 5,4% nas eleições legislativas de 2006 e 2007 e de 5% e 3,5% para Symonenko nas presidenciais de 2005 e 2010.

De acordo com a análise deste investigador, o conservadorismo do PCU jogou um papel importante nestas derrotas. Se, por um lado, um conservadorismo social significava uma reação no sentido de defender o que ainda existia da Segurança Social soviética contra o neoliberalismo, que tinha aliás como contrapeso uma “incapacidade de propor e liderar um luta pró-ativa pela transformação socialista”, por outro o conservadorismo cultural levava-o a defender políticas reacionárias em termos de relações de género e de sexualidade e o “patriotismo soviético” tornava-se “nostalgia do Estado forte e do nacionalismo russo”. Ainda assim, o PCU não foi tão longe quanto o seu contraparte russo neste caminho, ressalva-se.

Este posicionamento levou-o a “alinhar-se claramente” com o eleitorado do leste da Ucrânia e a envolver-se nas “guerras culturais” sobre a questão nacional, a língua, a história e até as disputas entre Igrejas “em detrimento de uma posição consistente sobre os temas sociais-económicos”. Daí ao alinhamento com o Partido das Regiões de Viktor Yushchenko foi mais um passo e, em 2006 e 2010, o PCU entrou mesmo no executivo com este, apesar das suas medidas neoliberais de governo.

Das eleições de 2012, as últimas antes de Maidan, em que obteve 13,18%, já não resultou a sua entrada no governo mas continuou a ser entendido como parceiro privilegiado do Partido das Regiões. Antes disso, partidos como o Partido Socialista da Ucrânia e o Partido Socialista Progressista de Ucrânia tinham marcado presença esporádica no Parlamento com muito menos peso. O primeiro tinha sido o herdeiro direto do PCU quando este fora ilegalizado em 1991, tendo perdido muitos dos seus militantes quando este foi restaurado. Orientou-se depois para a Segunda Internacional, fez parte dos movimentos de oposição e esteve do lado da “Revolução Laranja”, em 2004, que depôs pela primeira vez Yanukovych, que tinha então sido acusado de fraude eleitoral. Dois anos depois, vira a linha política e alia-se ao Partido das Regiões. O resultado é que nas eleições de 2007 deixa de ter representação parlamentar. Em 2012 ainda tenta fazer uma aliança de centro-esquerda com vários grupos, mas volta a falhar a eleição.

Uma sua cisão “ortodoxa” feita em meados do anos 1990, o PSPU, conseguiu também entrar no Parlamento em 1998 (com 4%) e, nas presidenciais do ano seguinte, Natalia Vitrenko, a sua líder, obteve 11%. De um anunciado leninismo, passou a uma social-democracia programática e acabou por chegar “a posições muito mais nacionalistas russas e conservadoras do que os comunistas”. A escolha da retórica do “conflito de civilizações” com “prioridade à defesa da “civilização ortodoxa eslava de leste” contra o imperialismo ocidental e uma escolha geo-política pró-russa acima do conflito de classes” não teve resultados eleitorais positivos e, em 2002, desapareceu do parlamento.

Volodymyr Ishchenko conclui que estes partidos chegaram à crise de Maidan num estado de estagnação que durava há muito, tinham adotado uma linha social-democrata e/ou o nacionalismo russo, desacreditando-se com alianças com os partidos oligárquicos e com uma “integração na elite política e económica”.

Na “velha esquerda” o autor inclui ainda vários “partidos ortodoxos estalinistas microscópicos” que vieram do PCU e que partilhavam o seu conservadorismo, o domínio da geração mais velha, realidades organizativas marcadas pelo “medo da auto-organização” e ausência de trabalho de massas.

Uma “nova esquerda” fraca e dividida

O panorama da esquerda pós-fim da URSS não se esgotava aqui. A outra componente era a “nova esquerda” que não estava ligada ao anterior regime e que partilhava entre si uma identidade “bastante superficial e negativa” com base na crítica à burocratização e aos “desvios das ideias e práticas socialistas”. Não se resumia a partidos políticos (ou agrupamentos semelhantes), incluindo sindicatos independentes, associações de estudantes, ONGs, iniciativas culturais e redes informais, num total estimado de cerca de mil pessoas.

No geral, este fraco número e dispersão de atividades resultaram na fragilidade de organismos que “não conseguiam sobreviver sequer por um punhado de anos, não deixando história significativa”. Porém, em alguns aspetos, campanhas, sindicatos e iniciativas a marca ficou.

A Associação Borotba será o grupo mais conhecido. É uma cisão de uma iniciativa de parte da “nova esquerda” no final dos anos 2000, a Organização dos Marxistas que pretendia unir revolucionários de várias tendências mas que nunca conseguiu a almejada unidade. Da divisão final desta, em 2011, resultaram o Borotba, organizando grupos que tinham saído do PCU, a Oposição de Esquerda, formada por pós-trotskistas e alguns intelectuais, e o Contra a Corrente, de um pequeno grupo comunista.

O Borotba reivindicou-se “marxista-leninista” mas distanciava-se do regime anterior. Organizou uma campanha de confronto político com o partido de extrema-direita Svoboda e várias outras iniciativas com algum impacto. Para além de membros seus terem criado a revista online Liva, uma das mais populares na esquerda ucraniana e que ainda hoje existe.

A organização sempre foi polémica no campo da “nova esquerda”. Os movimentos anarquistas criticavam-lhe o aproveitamento propagandístico que fazia das lutas sociais. Outros acusavam-no estalinismo e de sectarismo (Ishchenko prefere dizer que eram “muito tolerantes ao estalinismo”). A essas críticas se juntavam a de um conservadorismo herdado do PCU e de sexismo.

A estas ainda se somou o caso de, ainda na altura da Organização dos Marxistas, vários dirigentes do grupo terem pedido uma bolsa de 30.000 dólares ao Fórum Internacional da Esquerda, uma fundação do Partido da Esquerda sueco, sem consultarem o resto da organização. E as suspeitas de ligação ao partido de Putin, o Rússia Unida, muito antes da crise de Maidan.

No campo anarquista, sobressaiu a Ação Direta, um sindicato estudantil fundado em 2008 com uma coordenação horizontal. Crítica da comercialização do ensino, focava-se na luta contra o autoritarismo na educação, por uma pedagogia libertária e pelos direitos dos estudantes. Em alguns momentos “foi praticamente a única força no movimento estudantil ucraniano” mas também se mobilizava em defesa dos trabalhadores, da igualdade de género e dos direitos civis. Apesar de momentos de dinamismo, “no final de 2013, estava em crise óbvia, exausta devido à cooperação com os liberais nacionais nas campanhas do ensino superior, cansada de conflitos entre grupos sectários que exploravam a mobilização sindical e não conseguindo resolver o problema da transição de gerações” na sua liderança. O Sindicato Autónomo dos Trabalhadores pretendia ser a organização dos ex-ativistas estudantis mas vivia do sucesso daquela sem conseguir sequer criar qualquer célula sindical de empresa (para a qual seriam precisas três pessoas).

A Oposição de Esquerda também permaneceu pouco expressiva apesar de ter conseguido ligações com a principal confederação sindical independente, a Confederação dos Sindicatos Livres da Ucrânia.

No sindicalismo, sobressaía ainda o sindicato independente Defesa do Trabalho. Conseguia organizar,  entre outros, trabalhadores da construção civil e portuários, empregados de supermercado e distinguia-se por não estar praticamente limitado a Kiev, ao contrário de vários outros grupos.

Esta organização também se viu envolvida numa amarga polémica por, em 2013, ter colaborado com o movimento Resistência Autónoma. Este era um fenómeno de massas que tinha tido origens no movimento neo-nazi e “tinham-se deslocado muito para a esquerda, apesar de talvez manterem alguns resíduos das suas origens de extrema-direita, particularmente algumas atitudes nas questões de género”.

As esquerdas nos protestos

Uma boa medida da dimensão, influência e temáticas preferidas das esquerdas é-nos dada pela análise da sua participação em protestos na Ucrânia. O autor mediu-a no período imediatamente anterior a Maidan (de janeiro de 2011 a novembro de 2013) através de dados do Centro para a Investigação Social e do Trabalho.

A sua conclusão foi que a participação da esquerda não constituía uma grande fatia no conjunto dos protestos realizados no país. As esquerdas marcaram presença em apenas cerca de 9% dos protestos nacionais. Comparativamente, o número de protestos em que a extrema-direita participou foi muito maior: 20%. Na “velha esquerda”, o PCU era de longe o partido com presença mais ativa em protestos. Na “nova esquerda” não havia propriamente uma organização preponderante neste aspeto.

Para além dos desfiles tradicionais comemorativos do dia do trabalhador e da Revolução de Outubro, destacam-se as campanhas do PCU contra a reforma das pensões e a da Ação Direta contra a nova lei do ensino superior, ambas em 2011. Em 2013, o PCU opôs-se à política pró-europeia de Yanukovych e a possibilidade de um empréstimo do FMI e fez campanha por uma união aduaneira com a Rússia como alternativa. Ao mesmo tempo, a “nova esquerda” “estava mais ativa em lutas laborais locais contra salários não pagos e fraudes dos patrões”. Este lado protestava ainda contra violações de direitos de cidadania enquanto a “velha esquerda” “muito raramente” o fazia, “enfatizando conflitos ideológicos e “guerras culturais” à volta de questões históricas, linguísticas, geopolíticas e religiosas”.

Comparativamente, a “nova esquerda” protestava menos sobre conflitos ideológicos (e na sua esmagadora maioria estes eram protestos antifascistas), mais sobre temas sócio-económicos e muito menos em temas políticos gerais, dada a sua falta de representação política nacional.

A distância entre os dois campos pode ser aferida pelo facto de, neste período de tempo, apenas terem sido registados cinco casos em que a “nova esquerda” e a “velha esquerda” participaram no mesmo evento. Pelo contrário, a “velha esquerda” cooperou “de forma bastante substancial” com nacionalistas russos e até com a extrema-direita “num número muito pequeno de protestos sócio-económicos a maior parte deles locais”.

Sublinhe-se ainda que a “velha esquerda” “não estava na verdade muito ativa em protestos de trabalhadores, estudantes, pequenos negócios ou de bairro” mas muito nos dos pensionistas, dos trabalhadores da antiga central nuclear de Chernobyl e veteranos de guerra. Por seu lado, a “nova esquerda” não marcava praticamente presença nas mobilizações destas últimas camadas nem nas dos pequenos negócios, mas tentava participar nas dos trabalhadores e estudantes.

Regionalmente, a “velha esquerda” era mais forte no sul e leste e menos em Kiev e no ocidente. A “nova esquerda” centrava-se sobretudo em Kiev.

A esquerda chega assim ao fim de 2013, quando começa a onda que vai mudar o panorama político da Ucrânia, “muito mais fraca” do que a extrema-direita. Com a liderança da “velha esquerda” parlamentar “junto com elite burguesa” e o PCU a ser visto como “parte da coligação governante com o oligárquico Partido das Regiões” e alinhado com posições pró-russas. E com a “nova esquerda” sem representação política, concentrada na capital e dividida, apesar de ser jovem.

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