Lev Landau: A vida atribulada de um cientista soviético

10 de junho 2023 - 16:16

Vale a pena conhecer as peripécias políticas do cientista que recebeu o Nobel da Física de 1962 e como o seu génio o terá salvado de uma morte certa nas prisões da polícia política soviética. Por Rui Borges.

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Lev Landau na prisão. Foto do Comissariado do Povo de Assuntos Internos, o Ministério do Interior da URSS/Wikimedia
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Lev Davidovitch Landau recebeu o prémio Nobel da Física de 1962 pelas suas “teorias pioneiras da matéria condensada, em especial do hélio líquido”. Como muitos outros cientistas soviéticos, sujeitos à repressão e não poucas vezes sucumbindo ao terror estalinista, conseguiram produzir grandes trabalhos científicos em situações de extrema dificuldade. Neste artigo exploramos as peripécias políticas de Landau e como o seu génio o terá salvado de uma morte certa nas prisões da polícia política soviética.

Lev Landau foi desde muito cedo um aluno brilhante. Nascido em Baku, no Azerbaijão, no seio de uma família judia, desde cedo aprendeu matemática com o seu pai, que trabalhava como engenheiro na indústria petrolífera. Em 1922, com apenas 14 anos, matriculou-se na Universidade estatal de Baku e dois anos depois mudou-se para a Universidade de Leninegrado. Terminou a licenciatura em física em 1927, com apenas 19 anos de idade, e nesse mesmo ano publicou na revista Zeitschrift für Physik o artigo sobre “O problema do amortecimento na mecânica ondulatória” em que desenvolve o método da matriz densidade, de forma independente e simultânea com o trabalho de John von Neumann.

O início dos seus estudos de pós-graduação deu-se numa época de grande desenvolvimento da ciência soviética, da qual Landau colheu grandes benefícios e para a qual contribui de forma prolífica. A segunda metade da década de 20 foi um período de ouro para a ciência soviética e em particular para a física. Havia uma intensa colaboração internacional e os cientistas mais destacados passavam longos períodos na Europa ocidental e nos Estados Unidos. A União Soviética torna-se um chamariz para cientistas entusiasmados com o projeto socialista.

Ainda em 1927, inicia os seus estudos de pós-graduação no então Instituto Físico-Técnico de Leninegrado, a grande escola de física da União Soviética. No Instituto Físico-Técnico, Landau conviveu com Gueorgui Gamov (que adoptou o conhecido nome de George Gamow quando se radicou nos Estados Unidos), Nikolay Semyonov, Matvei Bronshtein, Yakov Frenkel ou Boris Hessen. 

Já com algumas publicações relevantes, Landau foi um dos participantes no VI Congresso da Associação de Físicos Russos que decorreu no verão de 1928. O Congresso reuniu durante quatro dias em Moscovo, após o que os participantes embarcaram no vapor Aleksei Rykov rumo a Estalinegrado, com paragens em várias cidades ao longo do rio Volga para fazer palestras e discussões públicas sobre física. Entre os vários participantes estrangeiros contavam-se Max Born, Peter Debye, Paul Dirac, Leon Brillouin ou Gilbert Lewis.

Em 1929, Landau partiu numa viagem científica pela Europa que ao longo de um ano e meio o levou à Dinamarca, onde trabalhou cerca de um ano com Niels Bohr, físico que passou a considerar o seu mentor científico, a Inglaterra, onde conheceu o seu compatriota Piotr Kapitsa, à Alemanha e à Suiça. Landau era um orgulhoso cidadão soviético e fazia gala de o mostrar por onde quer que passasse. É assim que o descreve George Gamow na sua autobiografia: 

“[Landau] era um marxista fervoroso, mas de linha trotskista. Quando eu estava em Copenhaga ou Cambridge e ele estava de visita, usava sempre um blazer vermelho como símbolo das suas ideias marxistas, o que o fazia parecer, respectivamente, um carteiro dinamarquês ou uma caixa de correio britânica.”

Este tipo de posição política era uma potencial fonte de problemas para o jovem cientista. Estaline tinha expulsado Trotsky da União Soviética em 1929 e encerrado definitivamente qualquer possibilidade de democracia dentro do Partido Comunista e na sociedade soviética. Porém, Landau não era membro do Partido Comunista e por essa razão estaria resguardado de muitas das represálias que atingiam os opositores comunistas de Estaline. Pouco depois do seu regresso à União Soviética, Landau foi convidado a dirigir o grupo de física teórica do Instituto Físico-Técnico da Ucrânia (IFTU), um instituto recém-criado num esforço de descentralização da actividade científica para fora de Moscovo e Leninegrado. 

O trabalho científico de Landau na Ucrânia, agora com a responsabilidade de administrar um grupo de investigação, foi profícuo mas feito em condições cada vez mais adversas. No período do primeiro plano quinquenal (1928-1933) Estaline começara gradualmente uma campanha de promoção da autarcia soviética em todos os campos de actividade. O governo exercia uma pressão crescente sobre os físicos (e os cientistas em geral) para que se dedicassem ao estudo de problemas de ciência aplicada que contribuíssem para o desenvolvimento económico do país, e aqueles que persistissem na via da ciência fundamental eram frequentemente acusados de seguidismo face à “ciência burguesa” do ocidente. Os físicos viram a sua autonomia científica limitada com a dissolução da Associação de Físicos Russos e a sua substituição pela Associação de Física, constituída como um departamento do Comissariado do Povo para a Indústria Pesada.

Aos poucos as viagens de cientistas ao estrangeiro foram sendo suprimidas. George Gamow, que citámos atrás, consegue ainda, em 1933, autorização para ir a uma conferência Solvay, que servirá de ponto de partida para o seu exílio nos Estados Unidos da América. Piotr Kapitsa, que tinha estabelecido em Cambridge um laboratório de renome mundial dedicado à física das baixas temperaturas, é impedido de deixar a União Soviética após as suas férias de verão em 1934. Landau, segundo relata Gamow no seu livro, nunca se mostrou interessado em sair da União Soviética. 

O ano de 1934 marca também uma profunda agudização da luta política na União Soviética. A 1 de Dezembro, Serguei Kirov é assassinado em Leningrado, acontecimento que serve de prelúdio para Estaline lançar uma campanha de terror que vai consolidar definitivamente o seu poder. Esta campanha culmina com os célebres Processos de Moscovo, em que alguns dos mais destacados dirigentes do Partido Comunista são falsamente acusados de colaboracionismo com a Alemanha nazi para derrubar o poder soviético e são condenados à morte. Os três julgamentos decorrem em Agosto de 1936, Janeiro de 1937 e Março de 1938.

Antes do início do terror, em 1935, Landau ainda teve oportunidade de escrever um artigo no Izvestia com o sugestivo título “A burguesia e a física moderna” em que explicava como a ciência corria perigo no ocidente devido à influência da superstição religiosa e do poder do dinheiro.

Neste período abriu-se uma discussão sobre o futuro do IFTU, uma vez que a nova direção pretendia que os trabalhos se concentrassem em aplicações para o desenvolvimento económico e militar, ao passo que Landau defendia que se devia manter a investigação em física fundamental, nem que para isso tivesse de se dividir o IFTU. O IFTU afundou-se numa vaga de denúncias, prisões e execuções que não poupou nem os cientistas estrangeiros. O físico Fritz Houtermans, membro do partido comunista alemão, que tinha vindo trabalhar para a União Soviética na sequência da chegada de Hitler ao poder, foi preso, torturado e entregue à Gestapo. Landau foi denunciado como membro de uma conspiração anti-soviética e procurou refúgio junto de Kapitsa, que o acolheu no seu Instituto de Problemas Físicos em Moscovo, em Fevereiro de 1937. Para Moscovo já tinham seguido Yuri Rummer e Moissey Korets, dois colegas de Kharkov, também eles alvo da atenção do NKVD (o Comissariado do Povo para os Assuntos Internos, antecessor do KGB). Mas para um espírito iconoclasta como o de Landau, a ida para Moscovo não foi uma garantia de segurança. Em 28 de Abril de 1938, Landau, Korets e Rummer são presos pelo NKVD, acusados de participar numa conspiração anti-soviética, tendo sido encontrado um panfleto que pretendiam distribuir ao público durante as celebrações do 1º de Maio desse ano. Apresentamos aqui a tradução completa desse panfleto por ser de evidente interesse.

 

O panfleto de Korets e Landau

Trabalhadores de todos os países, uni-vos!

Camaradas!

A grande causa da revolução de Outubro foi vilmente traída. O país foi inundado por torrentes de sangue e imundice. Milhões de inocentes foram atirados para a prisão e ninguém sabe quando chegará a sua vez. A economia está em colapso. A fome é iminente.

Vede camaradas, que a clique estalinista levou a cabo um golpe fascista. O socialismo existe apenas nas páginas de jornais mentirosos. No seu ódio furioso ao verdadeiro socialismo Estaline é igual a Hitler ou Mussolini. Destruído o socialismo em nome da preservação do seu domínio do país, Estaline transforma-o em presa fácil do brutal fascismo alemão. A única solução para a classe operária e para todos os trabalhadores do nosso país é a luta firme contra o fascismo de Estaline e de Hitler, a luta pelo socialismo.

Camaradas, organizai-vos! Não temais os verdugos do NKVD! Eles só conseguem torturar prisioneiros indefesos, prender pessoas insuspeitas e inocentes, pilhar os bens do povo e fabricar processos judiciais absurdos sobre conspirações inexistentes.

Camaradas, aderi ao Partido Operário Antifascista. Fazei a ligação com o seu Comité de Moscovo. Organizai grupos do POA nas empresas. Adoptai técnicas clandestinas. Pela agitação e propaganda, preparai um movimento de massas pelo socialismo.

O fascismo de Estaline só se mantém graças à nossa desorganização.

O proletariado do nosso país já derrubou o poder dos czares e dos capitalistas, será capaz de derrubar o ditador fascista e a sua clique.

Viva o Primeiro de Maio, dia de luta pelo socialismo!

Comité de Moscovo do Partido Operário Antifascista

A ousadia do panfleto é surpreendente no âmbito da campanha de terror que tinha culminado apenas dois meses antes no terceiro processo de Moscovo, em que Nikolai Bukharine, que Lenine considerara o “filho dileto do Partido”, foi condenado à morte. Tendo em conta as inúmeras execuções de comunistas com base em acusações falsas de conspiração contra a União Soviética, não deixa de ser espantoso que Landau tenha escrito um panfleto a chamar fascista a Estaline e tenha conseguido escapar com vida. Note-se que o activismo anti-estalinista de Landau nunca foi além da redacção do panfleto que, de resto, foi apreendido pelo NKVD antes de ser distribuido. E o Partido Operário Antifascista nunca existiu! 

As consequências desta ousadia não pesaram da mesma forma sobre os autores. Mosey Korets passou 20 anos no gulag ao passo que Yuri Rummer, que Landau e Korets inocentaram de qualquer participação na redacção do panfleto, foi condenado a 10 anos de trabalho numa colónia penal de investigação científica.

No próprio dia que Landau foi preso, Kapitsa escreveu a Estaline, explicando que o desaparecimento do cientista seria “profundamente sentido no Instituto, na União Soviética e por todo o mundo”. Tentou também que Estaline tivesse em conta algumas atenuantes:

“…para apresentar a questão de forma crua, [Landau] é uma pessoa horrível. É um desordeiro que gosta de procurar os pontos fracos dos outros e que quando os encontra, especialmente entre as figuras mais proeminentes, como os Académicos, faz pouco deles da forma extremamente desrespeitosa. Esta atitude tem-lhe granjeado muitos inimigos”.

Provavelmente, Kapitsa não sabia ainda as verdadeiras razões da prisão e assumia, como era comum durante o período do terror, que Landau teria sido alvo de uma denúncia. Kapitsa, um homem de origem aristocrática e que não era membro do Partido Comunista, gozava de um enorme prestígio junto de Estaline, o que talvez tenha contribuído para que o caso não tenha sido resolvido com um julgamento rápido seguido de execução.

O próprio Niels Bohr, com quem Landau mantinha uma correspondência regular (e que tratava sempre respeitosamente por Sr. Bohr), terá escrito também a Estaline apelando à clemência do Secretário-Geral. Kapitsa, incansável, continuou a escrever a Estaline, a Béria e a Molotov para que a vida de Landau fosse poupada e a sua mente pudesse continuar ao serviço da física soviética. Numa dessas cartas, explica a Molotov que tinha feito uma descoberta intrigante - a superfluidez do hélio - a que só um físico teórico do calibre de Landau poderia dar uma explicação. Passados poucos dias, em 28 de Abril de 1939, exatamente um ano após a sua prisão, Landau é libertado. Kapitsa assumiu perante as autoridades a responsabilidade pelo comportamento futuro do réu, comprometendo-se a reportar ao NKVD qualquer afirmação feita por Landau em detrimento do Governo Soviético.

Durante o encarceramento Landau sofreu com os interrogatórios do NKVD e as condições gerais da prisão. Quando foi libertado estava tão magro e fraco que não conseguia andar, mas a sua sanidade mental manteve-se intacta porque se conseguia abstrair do ambiente terrível da prisão pensando em problemas de física. Ao regressar ao trabalho trazia na memória quatro artigos prontos para serem escritos! A confiança de Kapitsa não seria defraudada pois em poucos meses Landau apresentar-lhe-ia uma teoria fenomenológica que explica a superfluidez do hélio com base em fonões. Este trabalho conjunto valeria a Landau o Prémio Nobel da Física de 1962 e a Kapista o de 1978.

O panfleto e a sua mensagem pró-socialista e anti-Estaline eram prova do apego de Landau ao espírito revolucionário de 1917. Porém, o choque do ano que passou na prisão e o desaparecimento e morte de inúmeros colegas marcaram o início de um processo de rejeição total do regime soviético e das ideias socialistas da sua juventude. Ainda sim Landau manteve-se corajoso e solidário e sem nunca deixar esmorecer o seu desprezo por Estaline. Era prática na vida quotidiana desses anos nunca mencionar o nome daqueles que estavam na prisão (os “inimigos do povo”). No entanto Landau fazia questão de todos os meses, sem qualquer dissimulação, enviar um vale postal a Korets que, como vimos, passou vinte anos na prisão. Integrado relutantemente no programa nuclear soviético, considerava-se um “escravo letrado” e abandonaria o trabalho em 1953 logo após a morte de Estaline: “Basta, já não tenho medo dele [de Estaline] e não trabalho mais neste projecto”.

A morte de Estaline não significou o fim da pressão sobre Landau, que continuava a ser vigiado pelas autoridades. O KGB (a nova imagem do NKVD) recolheria durante os anos seguintes alguns comentários de Landau sobre a situação na União Soviética: “Creio que o nosso regime, como aprendi desde 1937, é definitivamente um regime fascista e que não há uma forma simples de o mudar… Enquanto este regime existir é ridículo esperar que se transforma em algo decente… É muito claro que Lenine foi o primeiro fascista… A questão do derrube pacífico do nosso regime é a questão do futuro da humanidade… Sem fascismo não há guerra”. Acerca da revolução na Hungria em 1956 e a posterior ocupação soviética, Landau afirmava que os húngaros “são os verdadeiros descendentes dos grandes revolucionários de todos os tempos”. No mesmo relatório, Landau é citado sobre a sua visão da ciência:

Sou um internacionalista, mas chamam-me cosmopolita. Não distingo entre ciência soviética e ciência estrangeira. É-me completamente indiferente quem fez esta ou aquela descoberta. Por isso não posso alinhar nestes exageros acerca da supremacia da ciência soviética e russa.

Landau era já demasiado importante e na União Soviética pós-Estaline este tipo de opiniões de um cientista importante podiam ser toleradas desde que se mantivessem na esfera privada e não tivessem qualquer consequência prática. Ainda assim, o medo da repressão rondava sempre, como se o espectro do seu criador se recusasse a dar descanso às vítimas. Landau viveu o resto da sua vida em liberdade condicional, e o caso judicial só foi oficialmente encerrado em 1990, 22 anos após a sua morte e um ano depois do desaparecimento da própria União Soviética.


Este texto é baseado no artigo: Rui Borges, “Lev Landau, a ousadia é a coisa mais importante da vida”, Gazeta de Física 45, nº3, p. 16 (2022).

Rui Borges é doutorado em Física e tem um percurso académico que passou por universidades no Reino Unido, Irlanda e Brasil. Publicou em 2015 o ensaio “Boris Hessen, o cientista subversivo” (edição Ela por Ela). Compilou, traduziu e prefaciou um conjunto de textos do físico soviético Boris Hessen no livro "Einstein e Lenine em Moscovo, polémicas filosóficas da ciência soviética", Parsifal, 2021.

 

Para saber mais

Gamow G., “My World Line”, Viking Press, Nova Iorque (1970).

Gorelik G., “Lev Landau, Prosocialist Prisoner of the Soviet State”, Physics Today 48, p. 11 (1995).

Gorelik G., “The Top-Secret Life of Lev Landau”, Scientific American 277, p. 72 (1997).

Hargittai I., “Buried Glory – Portraits of Soviet Scientists”, Oxford University Press, Oxford (2013).

Josephson P. R., “Physics and Politics in Revolutionary Russia”, University of California Press, Berkeley e Los Angeles (1991).

Khalatnikov M. I. (ed), “Landau: the physicist and the man, recollections of L. D. Landau”, Pergamon Press, Oxford (1989).

Khriplovich I. B., “The Eventful Life of Fritz Houtermans”, Physics Today 45, p.29 (1992).

Pondrom L. G., “The Soviet Atomic Project – How the Soviet Union Obtained the Atomic Bomb”, World Scientific, Singapura (2018).

Ryndina E. e Gill A., “Family Lines Sketched in the Portrait of Lev Landau”, Physics Today 57, p. 53 (2004).