Este artigo é a introdução de Michael Löwy ao seu livro “Franz Kafka, revel rebellious”, Orange, Editions le Retrait, 2024.
Haverá algo de novo a dizer sobre Kafka? Este livro aposta que sim. Parece-me, de facto, que chegou a altura de lançar um olhar diferente sobre esta obra, que tente captar o seu fascinante poder de insubordinação.
No seu famoso ensaio sobre Kafka, Walter Benjamin lançou um aviso (infelizmente pouco ouvido): "É com cautela, com circunspeção, com desconfiança, que se deve tatear no interior dos seus escritos". As observações que se seguem devem ser vistas como um tatear prudente, uma hipótese de trabalho a ser testada, um possível ponto de partida para futuras investigações.
Ao longo do tempo, os comentários sobre Kafka – uma massa de documentos que continua a crescer – assumiram a forma e a aura de uma Torre de Babel, tanto em termos da confusão de línguas como do carácter infinito do empreendimento. Será coincidência o facto de as mulheres terem frequentemente proposto as leituras mais interessantes de Kafka?
De qualquer modo, não posso deixar de prestar homenagem a autoras como Hannah Arendt, Marthe Robert, Rosemarie Ferenczi e Marina Cavarocci Arbib, cujos trabalhos sobressaem fortemente da massa algo cinzenta e indistinta de uma boa parte da "literatura secundária". Nem sempre concordo com as suas análises, mas baseei-me fortemente em algumas das suas contribuições para desenvolver as minhas próprias numa outra direção.
A maioria dos trabalhos sobre o escritor de Praga pode ser classificada em seis categorias principais:
I. Leituras estritamente literárias, que se limitam deliberadamente ao texto, ignorando o "contexto".
II. Leituras biográficas, psicológicas e psicanalíticas.
III. Leituras teológicas, metafísicas e religiosas.
IV. Leituras na perspetiva da identidade judaica.
V. Leituras sócio-políticas.
VI. Leituras pós-modernas, que geralmente chegam à conclusão de que o significado dos escritos de Kafka é "indecidível".
Estas interpretações são de interesse desigual: algumas contêm intuições importantes, mas muitas tentam reduzir a obra literária a um modelo pré-estabelecido, interpretando situações e personagens como símbolos ou alegorias de uma mensagem. Para além desta produção pletórica de literatura secundária, os últimos anos viram surgir um novo ramo em rápida expansão: a literatura terciária, ou seja, o estudo das várias interpretações da obra do escritor de Praga. Para quando uma literatura quaternária?
Noutra passagem bem conhecida do seu ensaio, Benjamin observa que há duas formas de não compreender inevitavelmente Kafka: a abordagem natural e a abordagem sobrenatural. Por outras palavras, as leituras psicanalíticas e as interpretações teológicas. Esta observação parece-me profundamente justa.
Estas duas dimensões não estão certamente ausentes da obra, mas são aufgehoben, no sentido dialético do termo: negadas/conservadas/sobrepostas. A dimensão edipiana, por exemplo – o conflito violento com o pai – está de facto presente nos escritos literários de Kafka, mas a sua arte consiste precisamente em ultrapassar este aspeto psicológico num universo imaginário onde se coloca a questão da autoridade em geral.
Isto também se aplica ao judaísmo: a condição judaica é um ponto de partida essencial, que não é menos "negado/conservado" numa problemática universal. Como bem observa Marthe Robert, a condição dos judeus de Praga, encerrados num "gueto com muros invisíveis", torna-se na obra literária de Kafka – nomeadamente nos seus três romances póstumos – "o esquema de uma condição infinitamente mais geral". Quanto ao momento teológico, ele está sem dúvida presente, mas de forma indireta e "negativa", como tentarei mostrar.
Resta a leitura exclusivamente "literária". É evidente que Kafka vivia apenas para a literatura: era a sua obsessão, a sua razão de ser, a sua única tábua de salvação. Era a sua resposta a um mundo decaído. Com base nesta constatação – evidente na leitura do Diário e da Correspondência – muitos intérpretes caíram na armadilha, fazendo da literatura o objeto, o conteúdo, a trama dos seus escritos. Sendo estes então uma espécie de alegoria elaborada da própria obra literária, num jogo de espelhos que se refletem mutuamente até ao infinito. Mas esta dedução é ilusória. Também Musil estava obcecado com a sua obra, mas a literatura não é o objeto da sua obra, e a Cacanie não é uma alegoria dos seus próprios escritos.
Os romances de Kafka não são sobre a escrita em si, mas sobre a relação entre o indivíduo e o mundo. É certo que um determinado conto pode, de facto, ter como tema a própria obra literária; é muito provavelmente o caso da figura de "Odradek" na famosa parábola As preocupações de um pai de família", como Marthe Robert brilhantemente demonstra em "Seul comme Kafka". Mas seria inútil tentar aplicar esta grelha de leitura aos seus romances e ao conjunto dos seus escritos.
Dada a extensão desmedida da literatura secundária sobre o nosso autor, porquê acrescentar mais um tijolo a esta pirâmide hermenêutica?
A minha contribuição situa-se mais na corrente "sócio-política", mas tenta articular os outros níveis, graças a um fio condutor que liga a revolta contra o pai, a religião da liberdade (de inspiração judaica heterodoxa) e o protesto (de inspiração libertária) contra o poder assassino do aparelho burocrático: o anti-autoritarismo.
No seu artigo de 1929 sobre o Surrealismo, Benjamin escreveu: "Desde Bakunine, a Europa carece de uma ideia radical de liberdade. Os surrealistas têm-na”. Esta frase aplica-se rigorosamente a Franz Kafka.
Tentarei seguir este fio condutor por ordem cronológica, partindo de certos dados biográficos muitas vezes negligenciados, nomeadamente a relação de Kafka com os círculos anarquistas de Praga, e analisando depois os três grandes romances inacabados e alguns dos contos mais importantes. Utilizarei também fragmentos, parábolas, correspondência e entradas do diário para esclarecer os grandes textos literários, sem, no entanto, ter em conta a todo o momento o conjunto da obra: assim, não tentei interpretar os primeiros escritos de Kafka – antes de 1912 – nem os seus últimos – “Josefina, a cantora ou o povo dos ratos”, “Investigações de um cão”, etc. Não posso dizer se estes textos, bem como um certo número de parábolas, aforismos e fragmentos diversos, se enquadram na minha hipótese ou não.
Penso que não estarei a ir longe demais se disser que esta leitura de Kafka – deixarmo-nos guiar pelo "fio de Ariadne" do labirinto kafkiano que é o desejo de liberdade – é nova. Em todo o caso, não encontrei nada de semelhante na literatura secundária. O que encontrei em certas interpretações que me são próximas são antes pistas, fragmentos, intuições, algumas passagens, que cito – por vezes, admito, arrancadas do contexto – para apoiar o meu argumento. Mas em parte alguma existe uma análise sistemática da obra do ponto de vista da paixão anti-autoritária que a atravessa como uma corrente elétrica. Graças a esta grelha de leitura, as peças do puzzle parecem encontrar o seu lugar e os principais escritos de Kafka surgem sob o signo de uma grande coerência. É claro que essa coerência não é uma questão de doutrina, mas de sensibilidade.
Esta interpretação não tem assim nenhuma pretensão de ser exaustiva. É antes um ensaio, uma tentativa de realçar a dimensão formidavelmente crítica e subversiva da obra de Kafka, tantas vezes ocultada.
Esta não é, de modo algum, uma leitura consensual, e é provável que provoque controvérsias, tão dissociada está do cânone habitual da crítica literária sobre Kafka. A minha tentativa está fortemente marcada pela marca de Walter Benjamin – não apenas o seu ensaio de 1934 sobre Kafka, mas também, e sobretudo, pelas suas Teses de 1940 "Sobre o Conceito de História". Nestas últimas, dirigiu ao historiador crítico a seguinte injunção: "Em cada época devemos tentar arrancar de novo a tradição ao conformismo que dela se quer apoderar" (Tese VI). Este livro pretende ser um pequeno contributo para essa tarefa.
A leitura "política" aqui proposta é obviamente parcial: o universo de Kafka é demasiado rico, complexo e multifacetado para ser reduzido a uma fórmula unilateral. Qualquer que seja a pertinência de uma interpretação, a sua obra conserva todo o seu mistério inquietante e a sua singular consistência onírica, como uma espécie de "sonho acordado" inspirado na lógica do maravilhoso. Parafraseando André Breton, a poesia contém sempre "um núcleo inquebrantável de noite"…
A palavra "política" é, de resto, bastante inadequada: o que interessa a Kafka está a milhas de distância do que é habitualmente designado por este termo: partidos políticos, eleições, instituições, regimes constitucionais, etc. O termo "crítica" seria talvez mais apropriado.
Esta dimensão crítica está muitas vezes eclipsada por um certo tipo de interpretação académica. No entanto, é provavelmente a mais sentida pelos milhões de leitores modernos, para quem a palavra Kafka se tornou sinónimo de inquietude em relação ao sistema burocrático.
Para designar a potência opressiva deste sistema, Kafka inventou uma imagem impressionante para descrever o poder opressivo deste sistema: “As correntes da humanidade torturada são feitas de papel de escritório (Kanzleipapier)”. O termo alemão é difícil de traduzir: “papelada”, utilizado por alguns tradutores, é fraco. Papel de escritório, papel oficial, papel de ministério, seria mais apropriado. Kanzlei é habitualmente traduzido por “escritório”, mas esta palavra não transmite a riqueza do significado original do termo. O termo tem a sua origem no latim medieval cancelleria, que descreve um local rodeado de portões ou barreiras – cancelli em latim – onde são preparados documentos oficiais.
É uma palavra que regressa frequentemente na pena do escritor de Praga em “O Processo” e “O Castelo” para descrever os locais onde estão sediadas as instâncias – locais que estão sempre rodeados por cancelli muito altas, visíveis ou invisíveis, que mantêm à distância o comum dos mortais. Estes Kanzleipapiere são obviamente documentos escritos ou impressos: formulários oficiais, registos policiais, documentos de identidade, acusações ou decisões dos Tribunais.
A escrita é, assim, o meio através do qual as instâncias dirigentes exercem o seu poder. A resposta de Kafka utiliza o mesmo meio, mas invertendo radicalmente a abordagem: uma escrita literária ou poética da liberdade que subverte as pretensões dos poderosos.
A imagem das “correntes de papel” parece aliás ter um duplo significado: sugere tanto a natureza opressiva do sistema burocrático, que escraviza os indivíduos com os seus documentos oficiais, como a natureza precária dessas correntes, que poderiam ser facilmente arrancadas se os seres humanos se quisessem libertar delas...
Kafka tem sido frequentemente acusado – por Georges Lukacs, Günther Anders e outros – de pregar, através do seu pessimismo radical, o fatalismo e a resignação. Contudo, em carta ao amigo Oscar Pollak datada de 27 de janeiro de 1904, ele explicava da seguinte forma a sua conceção do papel da literatura: um livro só tem interesse, escrevia, se for “um soco no crânio que nos acorda (...), um machado que quebra o mar gelado dentro de nós.” Isso não soa muito a um apelo à resignação…
Texto publicado no blogue do autor. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.