Catalunha

Juízes boicotam amnistia ao “procés” catalão

03 de julho 2024 - 13:11

A lei da amnistia já entrou em vigor, mas até agora beneficiou mais polícias que manifestantes. Recusa dos juízes em aplicá-la às acusações de peculato contra Puigdemont volta a arrastar o caso na justiça e complica as negociações para o novo governo catalão.

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Manifestação da Diada 2023 em Barcelona.
Manifestação da Diada 2023 em Barcelona. Foto Manel Escobet/ANC

A lei da amnistia ao “procés” catalão, que culminou no referendo de 2017 e posterior declaração de independência suspensa de imediato, abrangia vários tipos de acusações aos que antes e depois do referendo contribuíram, seja no governo catalão ou nas ruas, para que a Catalunha pudesse exercer o direito à autodeterminação. Foi aprovada com o objetivo declarado de fechar um capítulo conturbado das relações com o Estado espanhol e criar condições para o diálogo político, afastando a judicialização daquelas ações. Para a direita, que agitou desde então o fantasma do independentismo para obter ganhos eleitorais, esta amnistia não passou de uma moeda de troca para a viabilização do Governo PSOE/Sumar, que no Parlamento depende do apoio dos partidos independentistas catalães, a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e o Junts do exilado Carles Puigdemont, o grande protagonista político do auge do “procés”.

Aprovada a lei e publicada no diário oficial do Estado, a Procuradoria Geral espanhola calculava que se pudesse aplicar a 486 pessoas. Começou por ser aplicada a cerca de vinte pessoas que participaram em manifestações pró-independência nos anos posteriores ao referendo, acusadas de desobediência e agressões a agentes da polícia nos distúrbios que tiveram lugar. Esta semana, um tribunal de Barcelona decidiu aplicar a amnistia aos 46 agentes da Policia Nacional acusados de agredir e causar ferimentos a dezenas de eleitores durante o referendo de 1 de Outubro de 2017. A decisão levantou polémica nos meios independentistas, com a Assembleia Nacional Catalã, o Òmnium Cultural e o Centre Irídia a anunciar que irão recorrer dessa aplicação da amnistia.

Mas a decisão mais polémica veio esta segunda-feira do Tribunal Supremo, ao concluir que a amnistia não será aplicada aos crimes de peculato de que são acusados Carles Puigdemont, Toni Comin e Lluís Puig e de que foram condenados Oriol Junqueras, Jordi Turull, Raül Romeva e Dolors Bassa. Assim, os três primeiros continuam a arriscar-se a ser presos se voltarem à Catalunha e os restantes, que foram presos, condenados e depois indultados, mantêm em vigor a pena acessória de inabilitação para ocuparem cargos públicos.

Depois de o PSOE ter considerado “surpreendentes” e “desnecessárias” as “avaliações políticas” feitas na resolução dos juízes do Supremo, o governo espanhol, através da porta-voz Pilar Alegria, respondeu à decisão afirmando que “a lei é clara e a vontade do legislador é tão clara como o texto da própria lei”, pelo que “o que tem de acontecer é que os juízes apliquem a lei”. Também a ministra do Trabalho e ex-coordenadora do Sumar, Yolanda Díaz, reagiu à decisão afirmando que “se o Tribunal Supremo pensasse que a lei era inconstitucional, certamente a teria levado ao Tribunal Constitucional”. E esse deverá ser o destino final da lei, após esgotado o recurso ao próprio Supremo, para que os juízes do TC tenham a última palavra. O recurso ao TC tinha sido aliás prometido pelo líder do PP logo após a aprovação da lei, mas ainda não o fez e pretende esgotar o prazo de 90 dias para recorrer.

A lei da amnistia exclui o crime de peculato no caso em que exista um lucro pessoal com consequente aumento do património. E é justamente aqui que o Supremo se agarra para não aplicar a lei, argumentando que não é necessário que aumente o património do titular de cargo público responsável pela aplicação de fundos para se considerar que existiu lucro pessoal, e que a “poupança económica” também se pode considerar benefício pessoal de carácter patrimonial. Ou seja, os juizes consideram que ao usarem fundos públicos para atividades ligadas ao referendo de 2017 em vez de os pagarem do próprio bolso, os responsáveis governamentais conseguiram um benefício pessoal com essa poupança, o que os excluiria da amnistia.

Travão à amnistia complica formação do governo

Com a decisão dos juizes do Supremo, que mantêm o mandado de captura para Puigdemont, Comin e Puig, o regresso do ex-líder do governo catalão fica mais uma vez adiado. E o impacto na política catalã, agora em contrarrelógio para investir um novo governo até 26 de agosto e assim evitar novas eleições, é também evidente. Os dois nomes com alguma possibilidade de conseguirem apoio parlamentar suficiente são o líder dos socialistas Salvador Illa, que tem promovido negociações com a ERC - o partido que governa e foi o grande derrotado das eleições de maio -, e o líder do Junts Carles Puigdemont, que poderia formar uma nova frente dos partidos pró-independência mas precisaria da abstenção socialista para ser investido. A confirmar-se o impasse e a convocação de novas eleições, estas deverão ter lugar a 13 de outubro.

A tentativa judicial de manter Puigdemont fora do país, ao recusar-lhe a amnistia dada pela lei que ele próprio negociou a partir do exílio, veio complicar as negociações entre socialistas e republicanos e dar mais alento ao campo independentista. Esta quarta-feira, a Assembleia Nacional Catalã aprovou uma declaração política a apelar ao Junts, ERC e CUP a não darem apoio ativo ao passivo à investidura do líder dos socialistas, “um candidato que no conflito com o estado espanhol apoiou a aplicação do artigo 155 e que defende as posições das instituições espanholas e dos seus tribunais”. A ANC critica ainda os partidos independentistas por negociarem com o Governo em troca da lei da amnistia, considerando a estratégia como “um dos erros mais graves cometidos” e dizem que o movimento se encontra numa “via morta do diálogo e negociação” que “desmobilizou e cansou” o eleitorado.

Juiz da “trama russa” apanhado em conversas comprometedoras

Um dos protagonistas no campo judicial da guerra ao independentismo é o juiz titular do juízo de instrução nº 1 de Barcelona, que dá alento a uma investigação sobre alegadas relações dos independentistas com a Rússia. Apesar da falta de provas para avançar com uma acusação e dos pedidos da Audiencia Provincial para que arquive o caso por estar parado há mais de um ano sem novos indícios, o juiz Joaquín Aguirre decidiu em janeiro prorrogar por mais seis meses a investigação, abrindo a possibilidade de acusar Carles Puigdemont de traição, um crime que não está abrangido pela lei da amnistia que iria ser votada pela primeira vez no Parlamento no dia seguinte à decisão do juiz. Esta decisão foi noticiada de imediato e com destaque na televisão pública alemã, numa reportagem intitulada “Separatistas catalães: a porta traseira europeia de Putin?”. E no próprio dia da votação da lei, que acabaria chumbada pelo Junts a 30 de janeiro de 2024, o juiz Aguirre deu uma entrevista ao canal alemão a denunciar “a influência direta da Rússia no processo de independência da Catalunha”.

Esta semana, o diário Red divulga duas gravações de conversas do juiz. A primeira data de 31 de janeiro, o dia seguinte ao chumbo da primeira versão da lei, com Aguirre a conversar com funcionários judiciais. “Dizem que ontem a lei foi chumbada por minha causa”, gaba-se o juiz. O voto contra do Junts deveu-se ao chumbo das suas emendas que incluíam precisamente crimes de traição e terrorismo na lei da amnistia, blindando-a contra futuras manobras dos juizes espanhóis.

A segunda gravação, segundo o diário Red, data de um par de meses antes da publicação, a 21 de junho, de um segundo auto do juiz para contornar a ordem da Audiencia de Barcelona para encerrar a instrução da “trama russa”. Aguirre decidiu abrir um novo inquérito separado do principal e avança com o pedido ao Tribunal Supremo para imputar o crime de traição a Puigdemont e outros ex-governantes. Não estando coberto pela amnistia, a consequência política seria a retirada do apoio do Junts a Pedro Sánchez e esse é um dos temas abordados por Aguirre: “Claro, será a sua sepultura. Será mesmo. Ao governo só lhe faltam dois dias de noticiários alemães. Dois. E já está. Vão levar no cu. Agora há gente que já se está a posicionar. Já tomou partido. E o partido sou eu”, afirmava o juiz em abril. Dias antes de publicar a sua decisão em junho, a “trama russa” voltou aos noticiários alemães, desta vez na cadeia pública SWR Fernsehen, que emite para dois estados daquele país, confirmando as suspeitas de que o autor das fugas de informação será o próprio juiz, apontado por fontes judiciais como sendo “obcecado” por dar projeção internacional à sua cruzada contra o independentismo.

“La Toga Nostra”, reagiu Carles Puigdemont nas redes sociais, anunciando uma queixa por prevaricação e peculato contra o juiz Aguirre, considerando que “quando os juízes fazem política a partir dos seus cargos e usam esses cargos para subverter o estado de direito, isso tem um nome. E está no código penal”.

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