EUA

Judith Butler sente-se presa na rede kafkiana de Trump

27 de setembro 2025 - 14:50

“Serei vigiada? As minhas viagens serão restritas?”, questiona a filósofa judia que passou a constar numa lista enviada ao governo dos EUA com suspeitos de “antissemitismo”.

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Judith Butler

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Judith Butler em 2018. Foto de Centre de Cultura Contemporània de Barcelona
Judith Butler em 2018. Foto de Centre de Cultura Contemporània de Barcelona

As perseguições políticas que marcam agora o cenário norte-americano, e que se intensificam a cada dia sob Trump, acabam de fazer uma vítima ilustre. A 7 de setembro, a filósofa Judith Butler, professora da Universidade de Berkeley, foi incluída numa lista de 160 professores e estudantes da instituição acusados de antissemitismo.

O rol foi enviado pela universidade ao Escritório de Direitos Civis do Departamento (ministério) da Educação. Este órgão, que chegou a ser extinto pelo presidente dos EUA e que deveria proteger vítimas de perseguições, foi em seguida convertido no oposto – um centro de investigação e espionagem de pessoas vistas como tendo tendências de esquerda. Taxá-los de “antissemitas” é um meio de marginalizá-los e impor-lhes sanções. Já são comuns os cancelamentos de vistos e, em não poucos casos, as prisões e deportações.

Ela própria judia, Judith Butler é parte dos intelectuais norte-americanos que reage ao genocídio da Palestina. “Estamos na terra de Kafka”, observou ao ser notificada da sua inclusão na lista de suspeitos. Em carta a David Robinson, conselheiro-chefe da universidade que lhe comunicou esta condição, faz a analogia com K, personagem de Franz Kafka (em O Processo). Acusado de um crime que não lhe é informado e cujos circunstâncias e acusadores são inteiramente opacos, ele tenta defender-se em vão, vendo-setragado por um labirinto jurídico maquínico e sem saída, ao qual se deu, mais tarde, o adjetivo de kafkiano…

Butler frisa, na carta: “Sou uma pessoa relativamente privilegiada, que encontrará uma maneira de sobreviver a quaisquer ações que o governo possa tomar contra mim”. Mas lembra que o mesmo pode não ocorrer com “docentes, funcionários e estudantes [submetidos] a uma vigilância generalizada”, agora também numa das universidades norte-americanas mais importantes e renomadas. A íntegra da sua carta, partilhada com o jornal independente “The Nation”, vem a seguir. (A.M.)


Prezado David Robinson,

Não tenho certeza se nos conhecemos, mas gostaria de me apresentar como uma professora aposentada, atualmente envolvida em atividades financiadas por bolsas na UC Berkeley e nomeada Professora Distinta na Pós-Graduação. Nos meus seminários de Literatura Comparada ao longo de muitos anos, lecionei sobre Kafka e a lei. Frequentemente concentravam-se na maneira como a suspensão do devido processo legal e a normalização da detenção indefinida eram lançadas em termos ficcionais que ressoam com a prática legal real.

Como deve saber, Kafka não foi apenas um grande escritor de língua alemã, mas um membro da comunidade judaica checa que se envolvia no debate sobre as tradições da lei judaica. Formado como advogado, passou a maior parte da sua vida adulta a julgar alegações de lesões físicas sofridas por trabalhadores no emprego. Ele garantia que os procedimentos fossem honrados e que as audiências fossem justas. À noite, e especialmente aos domingos, tentava escrever. As suas parábolas, em particular, investigam se ainda podemos esperar justiça da lei, ou se o processo legal diverge tão dramaticamente do caminho da justiça que agora só podemos contar histórias sobre como a expectativa de justiça é derrotada pelo procedimento legal. Esse é o tema da minha investigação atual, e espero ter um manuscrito concluído até ao final de 2025.

No entanto, parte do que estou a argumentar pode ser encontrado de forma mais dramática num conhecido romance de Kafka, O Processo. Esse romance começa com um funcionário de escritório chamado K que é acordado uma manhã por dois senhores que afirmam representar a lei, mas que parecem ser do seu local de trabalho. O estatuto deles é ambíguo. De qualquer forma, informam-no que há uma alegação contra ele, e ele pergunta com razão: em que consiste a alegação? Eles explicam que não podem dizer, e na verdade parece que não sabem. São emissários ameaçadores que não sabem ou não dirão qual é a alegação real contra K. Quando ele lhes pergunta como pode descobrir a substância da alegação, enviam-no por vários caminhos numa cidade que se assemelha à sua própria Praga, para um edifício cujas portas são intransponíveis. Ele tenta em vão encontrar alguém que possa dizer do que ele está a ser acusado, mas não encontra ninguém. Ele deveria preparar-se para um julgamento, mas como pode fazer isso sem saber do que é acusado? Depois de muitas páginas de espera e indagações sem resultado, torna-se claro que esse processo de espera para saber o que foi dito contra ele é o próprio julgamento. Ele está à espera de um procedimento justo começar, mas ele nunca começa.

Um dos problemas de K é que ele ainda acredita que estão em vigor o devido processo legal e os procedimentos estabelecidos que regem queixas, reclamações e acusações; que o direito de saber e contestar as acusações contra ele fará parte desse procedimento; e que sua própria defesa será levada em consideração antes de qualquer ação ser tomada. Ele tenta encontrar um advogado, mas os juristas que encontra estão igualmente confusos com o caráter arbitrário e ameaçador do processo.

Como alguém formado na tradição jurídica dos EUA, reconhecerá que K está à espera inutilmente que lhe sejam concedidas proteções equivalentes às oferecidas pela 6ª e 14ª Emendas da Constituição [norte-americana], a saber, o direito a um advogado, o direito a um júri imparcial e o direito de saber quem são os seus acusadores e a natureza das acusações e provas contra uma pessoa acusada de irregularidades. Mas estas proteções, sem dúvida, também lhe são familiares, pois são a política declarada da OPHD (Office for the Prevention of Harassment and Discrimination – Escritório para a Prevenção de Assédio e Discriminação). Essa política é a seguinte:

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Para queixas sobre qualquer forma de discriminação e assédio, a OPHD segue o processo de resolução estabelecido na política do sistema da Universidade da Califórnia e corresponde ao procedimento de implementação do campus. Estes processos são desenvolvidos para que cada caso seja revisto e tratado de forma consistente. O nosso objetivo é trabalhar com aqueles que apresentam alegações de má conduta, aqueles que respondem a essas alegações e qualquer outra pessoa que contribua com informações para o processo de coleta de fatos, de uma forma que seja o mais transparente e respeitosa possível para todos os envolvidos. O papel da OPHD concentra-se em oferecer um processo de resolução justo e objetivo, em vez de apoiar uma parte em detrimento de outra.

Essa política pretende garantir que pessoas na posição de K sejam contactadas, informadas sobre a queixa, convidadas para uma reunião e informadas sobre os recursos disponíveis para elas, incluindo a “resolução de queixas” que não envolve acionar o sistema judicial. O aviso na sua carta de que pode haver a necessidade da “produção” de novos materiais não indica se está a pedir a divulgação de informações adicionais ou formas adicionais de alegações infundadas e não julgadas.

Claro, eu não sou K, mas sinto-me estranhamente identificada com o seu padecimento. Pois na carta que me remeteu, você e os seus gabinetes informaram-me apenas que enviaram “um arquivo ou relatório relacionado a alegados incidentes antissemitas” que inclui o meu nome. Dois aspetos desta comunicação saltam aos olhos de qualquer pessoa que tenha lido a obra de Kafka. O primeiro é que sugere, sem afirmar, que fui acusada de antissemitismo ou que o meu nome está associado a um incidente desse tipo. Mas você também é, na verdade, mais cauteloso, já que diz que o incidente de assédio ou discriminação antissemita é “alegado”, o que significa simplesmente que a alegação não foi revista nem julgada, mas foi deixada para se sustentar por si só.

Em vez de tratar o relatório de acordo com o procedimento, como é obrigado a fazer tanto sob a lei constitucional dos EUA quanto sob a política da Universidade da Califórnia, encaminha a alegação, não julgada, para um departamento do governo federal. Se a alegação é justa ou não, parece não ter importância, pois houve uma alegação, e isso parece ser suficiente para encaminhar p meu nome para o Departamento de Direitos Civis do DOE (claramente não os meus direitos civis), onde ele estará numa lista e será usado da maneira que esse departamento e o governo julgarem apropriada.

Estarei agora marcada numa lista governamental? As minhas viagens serão restritas? Serei vigiada? Você não tem nenhum escrúpulo em enviar nomes de “membros da comunidade da UC Berkeley”, como você nos trata na sua carta-padrão, sem ter cumprido as regras básicas do devido processo institucionalizadas tanto na lei dos EUA quanto na política da UC? Além disso, estudantes com vistos e professores adjuntos não protegidos pela liberdade académica estão entre aqueles cujos nomes foram transmitidos. Como sabemos pelas ações tomadas contra estudantes de Columbia, Harvard e Tufts, para citar só alguns casos, todos eles estão potencialmente em risco de serem detidos, deportados, expulsos, assediados, despedidos, ou mesmo sequestrados na rua.

Sou uma pessoa relativamente privilegiada, que encontrará uma maneira de sobreviver a quaisquer ações que o governo possa tomar contra mim, mas a ideia de que você submeteu vários docentes, funcionários e estudantes a uma vigilância generalizada é uma violação impressionante de confiança, ética e justiça.

Exorto a OPHD a insistir nos seus poderes e a recusar-se a ceder às exigências federais. Também exorto a OPHD a assumir uma posição de princípio em favor do devido processo, revisão justa e dos procedimentos que guiaram a UC Berkeley antes desta intervenção sem precedentes no que deveria ser uma questão de autogoverno. Não sacrifiquemos a nossa integridade como instituição a formas legalistas de assédio e extorsão estatal.

Tal como K, eu gostaria de pensar que vivemos num mundo onde as alegações não são tratadas como verdadeiras até serem submetidas aos procedimentos adequados, e onde não colocamos um indivíduo em risco enviando uma alegação infundada e não julgada para o governo federal neste momento da história humana. Talvez eu seja uma tola e só consiga viver no mundo das parábolas. Com sorte por ainda ter os meus livros. Mas não pode ser totalmente tolo resistir à injustiça quando você a vê tão claramente, como, presumo, deve ver.

Atenciosamente,

Judith Butler


Publicado originalmente no The Nation. Traduzido por Antonio Martins para o Outras Palavras. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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