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“José Eduardo dos Santos era um gigante com pés de barro”

Francisco Louçã entrevistou Rafael Marques no Socialismo 2018, uma semana antes do congresso extraordinário do MPLA, em que José Eduardo dos Santos cederá o papel de Presidente do partido a João Lourenço, a ocorrer este sábado, dia 8 de setembro.
Rafael Marques é um jornalista de investigação e ativista angolano, conhecido pelos seus relatos sobre a indústria de diamantes e a corrupção no governo de Angola.
Rafael Marques é um jornalista de investigação e ativista angolano, conhecido pelos seus relatos sobre a indústria de diamantes e a corrupção no governo de Angola.

Francisco Louçã: Angola mudou muito com a ascensão de João Lourenço à presidência, mas de onde vem João Lourenço? Como é que ele chega à chefia do MPLA? No congresso, muito em breve passará a ser Presidente do MPLA, se José Eduardo dos Santos se afastar, como tem prometido. De onde vem este homem?

Rafael Marques: Antes de mais, muito obrigado pelo convite, é sempre um prazer estar com o esquerda.net, que tem sido um veículo de disseminação do trabalho que faço em Angola.

João Lourenço vem da direção política nacional das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), é mais conhecido por isso, que é uma incubadora, serviu de incubadora para muitos dirigentes do MPLA. O Vice-Presidente da República também veio da direção política nacional das FAPLA, que era o órgão dos comissários políticos, à época do marxismo-leninismo, e as FAPLA eram o exército governamental até à criação das forças integradas entre o Governo e a UNITA em 1992, que deu lugar às FA. Outras figuras do aparelho atual do Estado, como o ministro de Estado e da Casa de Segurança, General Pedro Sebastião, também vêm da direção política nacional.

Francisco Louçã: Mas o João Lourenço chegou a ser ministro, e depois foi afastado…

Rafael Marques: João Lourenço foi ministro pela primeira vez como parte da sua preparação para assumir o cargo de Presidente. Até então, tinha sido apenas governador provincial e deputado na Assembleia Nacional, onde ficou muito tempo, e, obviamente, Secretário-Geral do MPLA. A ascensão do João Lourenço tem que ver com a necessidade que o próprio José Eduardo dos Santos encontrou de ir entregar ou de devolver o poder ao MPLA, como forma de conseguir manter a capacidade, a hegemonia deste partido na vida política angolana.​​​​​​

Francisco Louçã: Uma das primeiras medidas de João Lourenço foi afastar os filhos de José Eduardo dos Santos das posições económicas e de poder do Estado, o que criou algum confronto com os lugares de poder da família. Ele estaria à espera disso, isso é uma forma de afirmação de João Lourenço, como é que surge esse processo e até onde é que pode ir?

Rafael Marques: Chegou-se a um ponto de desgoverno total em Angola: a época de José Eduardo dos Santos, em que os filhos praticamente pensavam que o país era do pai, e que podiam exigir o que fosse. E tinham mãos em todos os negócios. Não era possível, quem quer que fosse Presidente, manter os contratos todos, e manter as posições que os filhos detinham ao nível da Sonangol, do Fundo Soberano, da Televisão Pública de Angola, e outros contratos bilionários que tinham em sua posse. Porque já tínhamos chegado a um ponto de saturação total. Veja que, mesmo nas eleições anteriores, com todo o tipo de batota, apuravam-se os votos.

 

Nessas últimas eleições, não houve apuramento dos votos em 15 das 18 províncias do país. Isso é um sinal do nível de saturação em que a própria população angolana se encontrava em relação ao MPLA e aos seus dirigentes. De modo que essa foi a solução encontrada para salvar o próprio MPLA.

Francisco Louçã: E qual é a resposta popular, há uma situação de alívio? Há confiança no novo Governo, há desconfiança? Sentem que as pessoas são mais ou menos as mesmas? Qual é a atitude popular neste contexto?

Rafael Marques: A saída de José Eduardo dos Santos representou um grande alívio. As pessoas não podiam mais com as diabruras deste homem, que eram mesmo diabruras. Resultado: João Lourenço veio com o discurso certo, de combate à corrupção, que é a pior doença endémica em Angola. Mas prometeu demasiado. E prometeu demasiado porquê? Porque não está a reformar o Estado no sentido de garantir que os poderes sejam independentes, o poder judicial, o poder governamental. E não está a trabalhar no sentido de reduzir os seus próprios poderes, como nós sabemos e se tem dito há muito tempo, “o poder absoluto corrompe absolutamente”. Dentro de dias, João Lourenço será também Presidente do MPLA. Com os poderes presidenciais, que são imperiais, conferidos pela Constituição, e a presidência do MPLA, a tentação de ser absolutamente corrompido é grande.

Francisco Louçã: Em todo o caso, essa sensação de alívio significa que houve uma mudança no clima político. Mas na vida social, do ponto de vista económico, da vida das pessoas, do salário, do emprego, dos transportes, do acesso à saúde, começou a haver alguma mudança, ou há a esperança de haver alguma melhoria para a população mais pobre de Angola?

Rafael Marques: Temos uma economia estagnada e, em termos de condições de vida da população mais carente, nota-se uma deterioração do seu nível de vida. A pobreza aumentou, o desemprego aumentou, porque a economia estagnou, é monodependente das receitas de petróleo, continuam a fazer-se muitos empréstimos e não há uma política que se vislumbre das ações do Governo capaz de tirar o país da crise nos próximos tempos.

 

A pobreza aumentou, o desemprego aumentou, porque a economia estagnou, é monodependente das receitas de petróleo, continuam a fazer-se muitos empréstimos e não há uma política que se vislumbre das ações do Governo capaz de tirar o país da crise nos próximos tempos.

 ​Porque não há um diálogo, não há uma abertura no sentido daquilo que eu dizia, precisamente, de reformar o estado. Por exemplo, nos hospitais continua a não haver seringas e as pessoas têm de pagar por elas. Mais, há todo um esquema de instalação de empresas privadas que pertencem aos diretores dos hospitais, aos ministros… Essa dupla função em que o dirigente é empresário, mantém-se. Podem não ser os gestores das empresas, mas no momento em que concedem contratos às suas próprias empresas, sem concurso público, estão à mesma a cometer atos de corrupção, e é isso que é preciso abordar de forma vigorosa, para que o combate à corrupção não seja apenas um discurso vendido para o exterior do país, mas um discurso que tenha aplicação prática e que sirva para mudar as condições de vida e de Governo para que tenhamos uma Angola melhor.

Francisco Louçã: E na vida política, os partidos de oposição estão no Parlamento, estão representados, a CASA-CE até criou uma frente um pouco mais ampliada nestas eleições. Isto tem uma expressão do ponto de vista de propostas, tem um impacto na sociedade, representa propostas alternativas consistentes? Como o tens visto?

Rafael Marques: Não. Porque, primeiro, em 2010, com a aprovação da Constituição, retirou-se do Parlamento a capacidade de fiscalização dos atos do Governo e, se o Parlamento não fiscaliza os atos do Governo, é tão simplesmente um carimbo para os atos legislativos e para os atos do Governo e, nesse caso, os ato do MPLA, que tem a maioria, e são obrigados a votar de acordo com as orientações da sua direção. De modo que, por mais propostas que os partidos da oposição apresentem, enquanto não houver reformas que garantam ao Parlamento o seu papel de autonomia do poder executivo, a sua independência do poder executivo, no sentido de servir de fiscal dos atos do Governo, será um Parlamento meramente simbólico.

Francisco Louçã: E na vida social, para terminar, nos movimentos populares, da juventude, no protesto a favor da investigação de assassinatos e da repressão que houve no passado muito recente, tem havido movimentos desse tipo? Ou tem havido expressões da luta democrática das populações e dos jovens?

Rafael Marques: Penso que hoje a sociedade fala mais, perdeu muito do medo que tinha, e hoje compreende também que José Eduardo dos Santos era um gigante com pés de barro e que nem sequer teve a capacidade de organizar a sua própria saída do poder de modo a que pudesse ficar descansado. E isso motiva as pessoas a falarem mais, a abrirem-se mais, a partilharem mais, a protestarem mais. Há dias houve a negociação dos pilotos da companhia aérea nacional, a TAG, que ameaçaram entrar em greve, e a entidade patronal teve de negociar com eles. Antes poderia ter havido o discurso do patriotismo, as ameaças habituais, mas agora é necessário que se negoceie. É necessário que os sindicatos também se reformem, para que representem efetivamente os anseios, as preocupações dos trabalhadores. E, sem sindicatos, não é possível que haja uma luta pela dignificação dos trabalhadores como há noutros países, têm de estar representados.

 

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