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Jorge Jácome: “Este é um filme que quer fazer parte de uma união”

Aí está Super Natural, um filme para lá do multiverso e das modas. Ainda em Berlim (na véspera das boas notícias e do seu primo FIPRESCI, explorando as diferentes dimensões do real), falamos com Jorge Jácome, procurando decifrar algo que é claro como água. “É como se fosse a própria tela de cinema a tentar comunicar com o espectador”, como refere o cineasta. “Isto para os espectadores, humanos, que estão na sala a consigam perceber, consigam entender o que ela está a tentar comunicar.”
O importante perceber é que todo este conceito foi concebido entre o Jorge Jácome, o André Teodósio e o José Maria Vieira Mendes, num misto de brainstorming, e mútuo desafio, quase como um “cadáver esquisito”, em que propostas de escrita motivavam e desafiavam respostas para dar tessitura às imagens, uma vez que “todo o conceito mais estruturado do texto foi concebido durante a montagem”. Ou seja, com Jácome na mesa de montagem e o André Teodósio e o José Maria Vieira Mendes, a escrever, “mas também a reescrever a reescrita. Sucessivamente íamos trocando as diferentes linguagens. Eles editando as minhas imagens e eu editando o texto deles. Foi um processo contante de reenquadramento e de re-imaginar o que o filme iria ser.”
Aspeto fundamental foi a ligação do Teatro Praga e o convite à Companhia madeirense Dançando com a Diferença, incluindo “profissionais com e sem deficiência, num trabalho já com mais de uma década e meia que frequentemente cruzam práticas artísticas com outros criadores, nacionais e internacionais.”
Importante era questionar a ideia de cinema por detrás de tudo isto: mas se calhar para “perceber que não existe uma melhor maneira de se fazer cinema. Seja a filmar em qualquer suporte, seja ele em Super 8, 4K, com uma MiniDV, ou mesmo com o smartphone. Tudo é uma possibilidade para que uma ideia de cinema continue a existir. E perceber que cada câmara é também uma narrativa diferente.”
Super Natural (Ukbar Filmes)
Super Natural é um filme de corpos. Todos os corpos. Físicos, animais, naturais, geológicos, cibernéticos… É o cinema que é convidado a captar essa presença. “E o filme está constantemente a falar de diferentes corpos. Por isso quando estamos a ver o filme também estamos a pensar como é o próprio corpo da imagem que estamos a ver.”
“Eu sou a história que começa quando todas as outras acabam”, pode ler-se no final. A ideia inquieta da boa maneira, pois não sabemos bem se esta intromissão de uma nova narrativa se refere ao próprio filme, por estar a querer contar uma nova narrativa, ou se se trata de uma proposta diferente para experienciar o filme.
“É esta multidimensão que o filme está constantemente a falar”, sugere o cineasta de 35 anos. “Ele está constantemente a querer ser uma nova coisa.” É um objeto vivo, que se metamorfoseia. Até porque quando aparece essa frase, como revela Jorge Jácome, “é como se essa natureza começasse a desaparecer e a construção humana aparecesse. Então existe um lado em que o humano transformou esta natureza virgem, neste caso, na ilha da Madeira, e que a própria ilha passa a ser uma outra coisa, como o filme passa ser também uma outra coisa.” Confuso? Nada disso. É apenas um apelo ao estado de espírito.
Super Natural (Ukbar Filmes)
Como aquele maracujá que, inusitadamente, assume uma forma humana e se exprime. No fundo é isso, “um filme que quer fazer parte de uma união, como uma cor que deseja, que quer ser desejada; quer explodir, quer fazer parte. No fundo, o filme é isso: querer fazer parte de uma possível união entre as coisas. Seja entre o filme e o espectador, seja entre um humano e um lado mais da natureza.” É algo super natural.
Deixemo-nos então levar pela sua própria poesia das palavras deste ‘happening audiovisual’, mas fiquemos a pensar no seu peso.
Já me percebeste, tu és a minha história.
Porque não fizemos isto antes, não é?
Temos de deixar este mundo acabar.
Abraça-me uma última vez.
(Super Natural)
‘Super Natural’ de Jorge Jácome: para lá do multiverso!
Super Natural não é um filme como os outros. Talvez possa ser considerado como uma pequena pérola que se auto-exclui de qualquer narrativa moldada pelos clichés do(s) género(s). No fundo, um cinema que cria a sua própria geografia, surge do invisível e indizível, estende-se muito para além da imagem e toma-nos o pulso. Seguimos, irresistivelmente, uma voz interior que se assume, como se conversasse, questionasse, questionando-nos. E nos levando a pensar quem somos, quem é o outro, em que mundo vivemos. Na primeira longa metragem – depois de curtas muito promissoras, como Flores (2017) e Past Perfect (2019) -, Jácome faz a mouche e aborda o essencial. De tudo. Bravo!
Nunca o ecrã nos interpelou desta forma. Ao mesmo tempo intensa e, pois claro, natural. Como uma investigação escondida nos interstícios das imagens em movimento. Tal como a sua própria conceção, a várias mãos – as de Jorge Jácome, André Teodósio e José Maria Vieira Mendes -, escrevendo, montando, escavando significados e significações. Seguindo essa ousadia formal, quase psicadélica, somos convidados a um mergulho, isto ainda com a imagem a negro, a um mergulho no universo, ao lado da ecologia das coisas, dentro do nosso universo antropocêntrico.
Depois de ter conhecido o novo filme de Jorge Jácome, ainda antes do festival de Berlim de há um ano e meio (onde justamente venceria o prémio da critica internacional na secção Fórum), deu-se o reencontro e o revisionamento do filme enquadrado na sua estreia esta semana. Foi um pouco como mergulhar de novo nas mesmas águas – de certa forma contrariando o aforismo filosófico –, embora um ‘mergulho’ já ancorado com uma experiência sensorial, a permitir uma atenção diferente às imagens, e sobretudo a devida atenção da palavra, tão singela e ao mesmo tempo tão importante. Claro, com outro tempo para absorver tudo isso. E respirar fundo.
E se disséssemos que este é um filme passado num multiverso (ou multidimensão), onde o tempo e o espaço é aquilo que quisermos que seja? Que se trata de um misto de ficção e documentário habitado por seres humanos, pela natureza, mas também por criaturas de outros mundos (reais e imaginários), por deusas da água e seres que abraçam e são abraçados por répteis de material sintético? Num outro contexto, estas palavras-chave poderiam até motivar um apelo diferente. Embora este filme produzido pela Ukbar Filmes, de Pandora da Cunha Telles e Pablo Iraola, esteja bem distante de um qualquer produto saído de uma filial da Marvel. Ou até da Netflix!
Ou será que é apenas o Cinema? Daí a importância deste questionamento permanente. Ou seja, qu’est-ce que le cinema?, quando interrogou Bazin. É que é tão raro sermos questionados ou interpelados de forma tão direta dentro da sala de cinema, como que convidando a uma sonolência terapêutica igual à sentida por Roland Barthes na sala escura, há várias décadas, bem antes do cinema digital. Mesmo quando ele queria sair dela. Mesmo assim, as diferentes formas de cinema presentes em Super Natural sugerem que nos deixemos ir, como que aceitando a sinalização das legendas no ecrã. Pois é o ecrã de cinema que nos desafia. Ainda a negro, os tais sinais elétricos interpelam-nos, como um sussurro de estática, que parece um bater de asas de uma borboleta eletrónica, a sugerir um momento de libertação do cérebro para o que aí vem. E o que aí vem é uma proposta sensorial, quase out of boby, talvez mesmo inédita, pois não recordamos semelhante apelo audiovisual.
Mas quando a legenda interroga “estás aí?”, já nós fomos capturados. E depois reforça: “deixa-te relaxar na poltrona”, “estamos a influenciar-nos em conjunto”. Chegando até à conclusão “porque não fizemos isto mais cedo?” Como se percebe, aqui a liberdade cinematográfica é total, até mesmo para ‘brincar’ com as legendas. Mas sempre com um ponto de interrogação: “não estás a ver a ideia?” ou “queres que te faça um desenho?”
Publicado originalmente no portal Insider.pt.
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