Isolado, Bolsonaro vê o seu poder esvaziar-se

01 de abril 2020 - 20:16

Obcecado por contrariar medidas de combate à Covid-19 decretadas pelo seu próprio governo, presidente do Brasil vê decisões suas barradas pelo Supremo e perde na disputa com governadores dos principais Estados. Discussão sobre a sua possível renúncia ou impeachment toma conta do cenário político. Por Luis Leiria.

porLuís Leiria

PARTILHAR
Bolsonaro: único governante do mundo a posicionar-se contra as medidas de confinamento para combater a epidemia de Covid-19, viu-se isolado como nunca e os seus decretos anulados pelo Judiciário. Foto de Marcello Casal Jr., Agência Brasil
Bolsonaro: único governante do mundo a posicionar-se contra as medidas de confinamento para combater a epidemia de Covid-19, viu-se isolado como nunca e os seus decretos anulados pelo Judiciário. Foto de Marcello Casal Jr., Agência Brasil

Desde que tomou a decisão de lançar uma guerra contra as medidas de isolamento social, contra o encerramento das escolas, dos serviços e do comércio não essenciais, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, vem enfrentando um isolamento político crescente. A opção pela defesa da “volta à normalidade”, tornada pública num pronunciamento em rede de rádio e televisão na noite de 24 de março, foi criticada abertamente pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, pela esmagadora maioria dos governadores dos Estados, pela grande maioria dos partidos, incluindo os que já foram aliados do presidente, e até pelo vice-presidente Hamilton Mourão e, de uma forma mais discreta, pelo próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e o das Finanças, Paulo Guedes.

O raciocínio exposto por Bolsonaro no pronunciamento é o seguinte: se o grupo de risco na epidemia do novo coronavírus é o das pessoas com mais de 60 anos, se são raros os casos fatais de pessoas saudáveis com menos de 40 anos de idade, para quê se fecham escolas? Para ele, a Covid-19 é uma doença quase inócua, “uma gripezinha, ou resfriadinho”, e as suas consequências serão muito piores se o país continuar com o “confinamento em massa”, e o comércio, os estádios e as igrejas fechadas, predominando aquilo que ele considera ser a “histeria” com que o assunto é tratado. Em alternativa, defendeu o isolamento apenas dos grupos de risco: “não transmitir o vírus para os outros, em especial aos nossos queridos pais e avós”.

Confrontado com a devastação que a pandemia está a provocar na Itália, Bolsonaro tem uma resposta na ponta da língua: Brasil e Itália são totalmente diferentes, no clima e no facto de o país transalpino ter muito mais idosos que o Brasil. Além do mais, “Deus é brasileiro”, sustenta, e em breve se comprovará a eficácia da hidroxicloroquina (medicamento usado contra a malária) para pôr fim à Covid-19.

Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, defende que a epidemia "não existe"
Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, defende que a epidemia "não existe"

Bolsonaro nunca o admitiu, mas sabe-se que por trás desta atitude irresponsável está o seu grande inspirador ideológico, o “bruxo” autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, que considera a epidemia do novo coronavírus “a mais vasta manipulação de opinião pública que já aconteceu na história humana” e afirma que “essa endemia simplesmente não existe”. Além disso, para os seguidores de Carvalho, a ONU, e portanto as suas agências, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) são dominadas pelo “marxismo cultural”, o que significa que as orientações da OMS são vistas como uma emanação do comunismo.

Carreatas pífias, decretos anulados pela Justiça

A partir do pronunciamento de dia 24, Bolsonaro lançou uma verdadeira guerrilha contra as medidas de isolamento social. Por um lado, apoiou a realização de carreatas pela reabertura das lojas e de todo o comércio, argumentando que “o povo precisa trabalhar”. Mas as carreatas mobilizaram poucos automóveis e a maioria dos que participaram eram vistosos “carrões” cujos preços nada têm de popular.

Uma campanha publicitária chegou a estar pronta para sair em torno do slogan “O Brasil não pode parar”. O vídeo do lançamento da campanha foi muito partilhado na net, mas a reação negativa que enfrentou foi tão forte que Jair e os filhos desistiram dela.

O presidente tentou também minar as medidas de isolamento com uma revoada de decretos. Um deles incluía as atividades religiosas na lista de serviços essenciais, o que significava a autorização para que os cultos se realizem mesmo durante a vigência do isolamento social. Outro decreto considerava igualmente essencial o serviço das casas lotéricas.

Publicados no dia 26 de março, estes decretos foram suspensos pela Justiça Federal logo no dia seguinte. E o juiz ainda determinou que o governo federal se abstivesse “de adotar qualquer estímulo à não observância do isolamento social recomendado pela OMS”.

Guerra aos governadores

Após o pronunciamento de dia 24, o presidente acirrou também o conflito que vinha mantendo com a maioria dos governadores estaduais, e principalmente os de São Paulo, João Dória, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, eleitos na onda bolsonarista que varreu as eleições de 2018. Dória chegou mesmo a ser conhecido e a popularizar-se como o “Bolsodória” nessas eleições. Ambos estão rompidos com Bolsonaro, que os identifica como inimigos por serem candidatos naturais a disputar com ele as próximas eleições presidenciais. A crise do coronavírus agudizou a disputa, porque as medidas de isolamento social atualmente em vigor no Brasil foram decretadas e aplicadas pelos governos estaduais. Para contrariar essas medidas, o governo federal já tinha publicado, no dia 20, uma medida provisória que estabeleceu como competência federal, e não dos estados, o encerramento de aeroportos e rodovias. Mais uma vez a decisão não se sustentou muito tempo: no dia 24, o Supremo Tribunal Federal decidiu que governadores e prefeitos (presidentes de câmara) têm poderes para restringir a locomoção em estados e municípios, podendo, face à pandemia do novo coronavírus, decretar medidas de validade temporária sobre isolamento, quarentena e restrição de locomoção por portos, aeroportos e rodovias.

A crise atingiu o seu ponto mais dramático durante uma reunião do presidente com os governadores do Sudeste, em videoconferência, em que Bolsonaro se envolveu num “bate-boca” com Dória, O governador de São Paulo começou a sua intervenção desafiando o presidente: “O senhor que é o presidente da República tem que dar o exemplo, e tem que ser o mandatário a dirigir, a comandar e liderar o país e não para dividir”. Bolsonaro reagiu com ira, afirmando que Dória era "demagogo" e "leviano" e acusando-o de agir com vistas à disputa presidencial de 2022.

Confusão e dúvida nas pessoas”

Outros governadores deixaram clara a sua divergência com Bolsonaro: o do Espírito Santo, Renato Casagrande, criticou Bolsonaro por incentivar as pessoas a romperem o isolamento social e saírem de casa: “Temos seguido a OMS e na hora que o presidente opina e tira o valor da pandemia, causa uma confusão e uma dúvida nas pessoas, podendo atrapalhar o trabalho e dificultando nossa ação.”

Outro aliado de Bolsonaro em 2018, o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés, disse-se “estarrecido” com a abordagem defendida pelo presidente. E confirmou que tinha iniciado no seu estado “mais uma quarentena de sete dias por determinação de decreto deste governador, mais sete dias para ficar em casa”.

O mais comentado divórcio político, porém, teve como protagonista o governador de Goiás. Ronaldo Caiado, velho aliado de Bolsonaro, anunciou: “(Quero) que a população saiba que as decisões do presidente no que diz respeito à saúde e coronavírus não alcançam o estado de Goiás. As decisões de Goiás serão tomadas por mim, pela Organização Mundial de Saúde e pelos técnicos do Ministério da Saúde”, acrescentando que rompeu politicamente com o presidente.

Isolado também no governo

No domingo, Bolsonaro decidiu fazer contactos “com o povo”, nos subúrbios pobres de Brasília, violando mais uma vez as regras do isolamento social, para mostrar que “o povo quer trabalhar”. Passeou por mercados e pontos de concentração de vendedores ambulantes e cumprimentou cidadãos de Taguatinga, Ceilândia e Sobradinho. A um ambulante que vendia espetinhos de carne de churrasco (vulgo “churrasquinho de gato”), disse: “Eu defendo que você trabalhe, que todo mundo trabalhe. Lógico, quem é de idade fica em casa”, completando: “Às vezes, o remédio demais vira veneno”.

No final, ainda disse aos jornalistas que o acompanharam no “Coronatour”: “Estou com vontade de baixar um decreto amanhã. Toda e qualquer profissão legalmente existente ou aquela que é voltada para a informalidade, se for necessária para levar sustento para seus filhos, para levar um leite para seus filhos, arroz e feijão para sua casa, vai poder trabalhar”.

No sábado, porém, o ministro da Saúde do seu governo, Luiz Henrique Mandetta, voltara a defender o isolamento social como forma de evitar a propagação da epidemia e criticou as manifestações pela abertura do comércio. Além disso, Bolsonaro recebeu no Palácio da Alvorada Gilmar Mendes, juiz do Supremo, que o alertou contra a tentação de flexibilizar as regras de isolamento social com uma “canetada” (um decreto), pois nesse caso enfrentaria uma difícil batalha na Justiça. No dia seguinte, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, avisou que estava em autoisolamento voluntário em casa “seguindo os protocolos definidos pelo Ministério da Saúde e as orientações da Secretaria de Serviços Integrados de Saúde do STF”, por ter tido contacto com o presidente do Senado que está infetado com o novo coronavírus.

Sérgio Moro e Luiz Henrique Mandetta. Foto de Marcello Casal Jr., Agência Brasil.
Sérgio Moro e Luiz Henrique Mandetta. Foto de Marcello Casal Jr., Agência Brasil.

Isolado politicamente face à Justiça, Bolsonaro perdeu também terreno no seio do seu próprio governo. Mandetta continuou a defender uma política diferente da do presidente, e avisou que não sairá do governo a menos que Bolsonaro o demita. Mas no fim-de-semana esboçou-se uma frente em defesa da política sanitária levada a cabo por Mandetta, que incluiu as duas estrelas maiores do governo depois de Bolsonaro, os ministros Sérgio Moro e Paulo Guedes. Este último, aliás, desde que chegou da viagem aos EUA, onde 23 participantes da comitiva foram infetados pelo coronavírus, refugiou-se no Rio de Janeiro e pouco tem sido visto em Brasília.

Mais um ziguezague

Na segunda-feira, Bolsonaro procurou os militares do seu governo, como último refúgio, e reuniu-se com o general Villas-Boas, ex-chefe do Estado-Maior que é tido ainda como muito influente nas Forças Armadas. Estes convenceram-no a mudar, senão o conteúdo, pelo menos o tom das suas falas. Esta pressão teve como resultado um novo pronunciamento sobre a crise do coronavírus na noite de terça-feira bastante diferente dos anteriores, na forma. Disse ter como objetivo “salvar vidas, sem deixar para trás os empregos”. Sem criticar as medidas de confinamento, disse que a sua preocupação sempre fora salvar vidas: “Tanto as que perderemos pela pandemia como aquelas que serão atingidas pelo desemprego, violência e fome”.

Habituados a estes ziguezagues, os brasileiros pouca importância deram ao novo discurso. Ou, na verdade deram: presentearam-no com um amplo e sonoro panelaço, um dos maiores desde que estes começaram há duas semanas.

Resultado: está aberta a discussão sobre a possibilidade de Bolsonaro renunciar, de sofrer impeachment ou de se manter no governo apenas como uma espécie de bobo da corte, impedido de governar pelo cerco montado pelo Legislativo e pelo Judiciário. Como é costume dizer-se no final das novelas brasileiras, seguem-se as cenas dos próximos capítulos. Uma cena potencialmente trágica vem do lado da epidemia: o Brasil, nesta quarta-feira, já tinha 5.830 casos confirmados de pessoas infetadas pela Covid-19, e 203 mortes.

Luís Leiria
Sobre o/a autor(a)

Luís Leiria

Jornalista do Esquerda.net